As verdades práticas racionais devem reger os movimentos afetivos, tal como os movimentos da sociedade.
A sociedade deve ser regida pela consciência social, tal como a pessoa deve reger-se pela própria consciência pessoal.
A única forma de bem administrar a sociedade é fazer todas as pessoas terem PARTE na gestão da sociedade e suas cotas-partes nos bens, no bem comum.
A luz da razão prática, por si mesma, ao incidir sobre o processo histórico, gera verdades (juízos facticos e éticos, proposições, frases) que permitem a correta qualificação (predicação, classificação, a base da ciência) das condutas, classificando-as em boas (úteis, honestas, adequadas ao florescimento da vida etc) ou más (o contrário), indicando o que é certo e bom.
Como explicaram Cícero e Santo Ambrósio, o que é bom é o que é razoável, natural, útil à vida, útil e conveniente a todos.
A luz da consciência, por si mesma (sendo feita à imagem e semelhança de Deus), gera conhecimentos (idéias) práticos que guiam nossa da vida em harmonia com as exigências sociais (com direitos da sociedade) etc.
O acúmulo destas idéias forma a cultura, a base cultural, onde nascemos, imersos e onde crescemos, como que banhados num caldo cultural, num húmus.
Como ensinou o Concílio Vaticano II, no documento “Dignitatis humanae”, “todos os seres humanos estão obrigados [pela estrutura natural do ser humano] a procurar a verdade,… e, depois de conhecê-la, a abraçá-la e a praticá-la”, pois todos são “dotados de razão e de livre-arbítrio”, devendo “ordenar toda a vida segundo as exigências da verdade”.
As verdades são idéias em adequação à realidade, que retratam a realidade, que a expressam.
Verdades são idéias verdadeiras, “reais”, com poder, como destacava Marx, na 2ª. das teses sobre Feuerbach, onde Marx lembra, na mesma linha de Aristóteles e dos Santos Padres, especialmente São Tomás de Aquino, que “o pensamento humano” pode alcançar “uma verdade objetiva”, pode elaborar idéias que tenham “efetividade”, “poder”, para o autocontrole (autodeterminação, autonomia) humano e para o controle da natureza.
Na terceira tese, Marx criticou o materialismo de seu tempo, algumas ideias erradas de Helvétius (que deixou muitas ideias corretas ligadas a Igreja), que ensinava que as pessoas são frutos das circunstâncias e da educação, lembrando que a consciência humana é ativa, que “as tais circunstâncias são mudadas pelos homens e que o próprio educador deve ser educado”.
Marx, fiel ao que aprendeu inclusive de seu amor juvenil pelo estoicismo (Marx redigiu uma obra sobre “Cleantes”, um dos estóicos mais religiosos), também destacou que “a atividade humana” de transformação social exige “a mudança de si próprio”, para que cada pessoa torne-se sujeito ativo, participativo, não-alienado.
Estas idéias de Marx são perfeitamente cristãs. São idéias cristãs fruto da educação hebraica e cristã de Marx (o liceu, o colégio secundário, de Marx era um antigo colégio jesuíta e quase todos seus colegas eram seminaristas católicos, inclusive um que se tornaria, mais tarde, bispo em Trier, cidade quase toda católica). Outro padre jesuíta, um grande sábio, era o mentor de Marx, o seu professor preferido.
O documento “Dignitatis humanae” (“Dignidade humana”), do Vaticano II, aprovado pelos bispos do mundo todo e pelo Papa, também diz que “a verdade, porém, deve ser buscada de um modo consentâneo à dignidade da pessoa humana e à sua natureza social, a saber, mediante a livre pesquisa”, pelo diálogo (redes), “servindo-se do magistério e da educação, da comunicação e do diálogo”.
João Paulo, no livro “Cruzando o limiar da esperança” explicita melhor este ponto, ensinando que “o ser humano não pode ser obrigado à aceitação da verdade. Para ela somente é impelido pela sua natureza, isto é, pela sua própria liberdade, que o compele a procurá-la sinceramente e, ao encontrá–la, a ela aderir quer com a convicção quer com o comportamento”.
A luz natural da razão gera idéias verdadeiras e adequadas ao bem comum, que formam o que se convencionou chamar de “lei natural”, de “tão” (no taoísmo), de “caminho”.
A luz da consciência aponta trilhos que são como que equilíbrios finos (daí, a frase de Paulo VI, da paz como um “movimento equilibrado”), ajustes finos, medidas finas.
Ocorre o mesmo com a música, que trabalha com medidas finas e se os sons se misturam de forma caótica geram barulhos insuportáveis.
A conciência movimenta-se principalmente pela luz da razão, sendo este movimento natural, correto, bom. A consciência também se movimenta bem à luz dos afetos e dos instintos, quando estes estão bem regrados, bem ordenados, pela luz da razão.
Os afetos (emoções) foram chamados, historicamente, de “paixões” (movimentos afetivos intensos) e o catolicismo sempre ensinou que, como partes vitais da natureza humana, os afetos, as paixões e os instintos são bons em si mesmo.
Este foi sempre o ensino dos Santos Padres, do tomismo e dos Papas. Também foi a doutrina católica exposta por Rene Descartes, no “Tratado sobre as paixões” (há a mesma tese na “Ética” de Spinoza, uma síntese do melhor do estoicismo com o melhor do judaísmo, das idéias hebraicas.
O movimento afetivo e instintivo, sob as luzes da razão, torna-se bom.
Contudo, se o movimento for desordenado (irracional) tornam-se más paixões (porque irracionais, saindo dos limites razoáveis).
São estas más paixões (por serem desordenadas) as que aprisionam e cegam (no sentido ético) as consciência dos capitalistas e latifundiários (e demais criminosos), presos também em estruturas más (o capital e o latifúndio) que são cristalizações, concreções (pecados sociais, cf. expressão de João Paulo II) das más idéias (dos erros, das mentiras) de paixões desordenadas que desgovernam suas vidas, gerando naufrágios tanto no prisma pessoal (ver, a propósito, os romances de Zola, que descrevem naufrágios humanos por conta de paixões desordenadas) quanto no que diz respeito às sociedades, cidades, nações etc.
A Igreja nunca ensinou, como alguns estóicos (Cícero, Sêneca, Plutarco e alguns outros não incidiram neste erro) e alguns budistas, que as paixões em si são más.
As paixões são boas, pois a natureza, apesar de decaída, é boa, e isso vale para o corpo, os prazeres, o prazer sexual, os afetos, os instintos etc.
Tudo isto está claro na “Suma Teológica” ou no “Tratado das paixões” de Descartes, tal como estava bem exposto na “Ética a Nicômaco” de Aristóteles e nos livros sobre ética de Cícero (bem apreciados por Santo Ambrósio ou São Jerônimo).
Sobre a distinção entre boas e más paixões, nascidas do apetite sensitivo, vale a pena o livro de São Francisco de Sales, “Tratado do amor de Deus” (Porto, Livraria Apostolado da Imprensa, 1950, p. 32, 34/35), que lembra que Santo Agostinho mostrou que os melhores estóicos admitiam que os sábios pudessem ter afeições (“eupatias”, “boas paixões”):
“… as paixões e afeições são boas ou más, viciosas ou virtuosas, conforme o amor donde procedem é bom ou mau” e “Santo Agostinho reduziu a quatro todas as paixões e afetos. “O amor, diz ele, que tende a possuir aquilo que ama, chama-se desejo; alcançando-o e possuindo-o, chama-se gozo; fugindo ao que lhe é oposto, chama-se temor; e, se este mal lhe sucede, e o sente, chama-se tristeza; e estas paixões são más, se o amor é mau; boas, se ele é bom”.
São Francisco de Sales também escreveu: “por isso, o maior homem de bem de todo o paganismo, Epitecto [um escravo estóico], não abraçou este erro de não haver paixões no homem sábio”.
São Francisco de Sales, amigo do grande São Vicente de Paulo, reconheceu que os bons pagãos também se salvavam e obtinham a bem-aventurança durante a vida e após a morte.
A salvação, para cristãos e para não-cristãos, ocorre pela orientação da vida em prol do bem comum (da “pátria”, da sociedade que os cercava, onde viviam, da humanidade), pela prática das “virtudes” (ações racionais visando o bem), pelo cultivo da “ciência” e por vingarem as afrontas contra o povo e indignarem-se e combaterem os tiranos.
Vejamos a conclusão de São Francisco de Sales na obra referida acima:
“Na vontade há, como no apetite sensitivo, movimentos chamados afetos; mas os da vontade chamam-se ordinariamente afeições, os outros, paixões. Os filósofos gentios podiam amar a Deus, a pátria, a virtude, as ciências; aborreceram o vício, desprezaram as honras, a morte ou a calúnia, desejaram a ciência: podiam até ser bem-aventurados depois da sua morte; animaram-se a vencer os obstáculos que encontravam na aquisição da virtude, temeram a censura, fugiram de cometer muitas faltas, vingaram as afrontas públicas [ao povo], indignaram-se contra os tiranos, sem interesse próprio. Todos estes movimentos residiam na vontade, visto que nem os sentidos, nem por conseqüência o apetite sensual, são capazes de ser aplicados a estas coisas, e, portanto, estes movimentos eram afetos do apetite intelectual ou racional, e não paixões do apetite sensual”.
Quando os textos éticos usam o termo “paixão” no sentido pejorativo significa os afetos (movimentos do apetite sensitivo) desordenados, irracionais.
As paixões, segundo Aristóteles e Tomás, dividem-se em dois grandes grupos: a cobiça/concupiscência no sentido sexual e a agressividade/irascibilidade, dois movimentos/tendências básicas do apetite sensitivo.
A sexualidade e a agressividade são, em si mesmas, sadias, desde que bem canalizadas pela luz natural da razão pessoal e social.
Tornam-se más quando estão desordenadas, irracionais.
Tudo deve ser pautado pela luz natural da razão pessoal e social. A essência da ética é pautar tudo de forma racional e em adequação ao bem comum. Isto vale para a psicologia, a vida pessoal e a vida social.
No tocante à vida social, esta deve ser regida pela razão de todos, pela razão comum, pela união das razões pessoais, união que é feita pela via do diálogo (da comunicação participativa).
Estes movimentos afetivos são motores importantes para a prática das virtudes e são, assim, bons, desde que estejam ordenados e governados pela idéia do bem. Por exemplo, como ensinou Santo Tomás de Aquino, Deus nos deu a ira para combatermos o mal, as opressões, para os bons combates, para as boas lutas, como fez Santa Joana de Arc, que livrou a França do imperialismo inglês e deu um golpe de morte nos senhores feudais pela unificação de um Estado centralizado, que Richelieu aperfeiçoou (destruindo dezenas de castelos, o poder militar dos nobres, dos latifundiários) e que a Revolução Francesa concluiu.
O mesmo São Francisco de Sales ensinava que as sem paixões (sem os movimentos afetivos poderosos), nenhuma boa ação é praticada.
Os grandes santos e o próprio Cristo eram homem apaixonados, com poderosas paixões, mas ordenadas pela sociedade para que todos seus atos servissem ao bem comum, ou seja, os movimentos afetivos e instintivos movimentavam-se de forma inteligente, de forma racional.
Conclusão: a regra para a boa ordenação da vida pessoal é a mesma regra para a boa ordenação da sociedade.
A vida pessoal deve ser pautada pela consciência pessoal, pela razão e pelo bem comum.
A vida social deve ser pautada pela consciência social (pela interligação das consciências pessoais pelo diálogo), pela participação de todos no poder, para que tudo sirva ao bem comum, ao bem de todos.