A Teoria do bem comum é a base das ideias da Igreja sobre o poder (Estado) e os bens

Como ensinou Maria, no “Magnificat”, a Igreja defende a universalização do poder e dos bens, que o poder, o saber, os bens, sejam distribuídos a todos, em formas colegiais e quotas partes.

A Teoria da Igreja sobre o poder e os bens é baseada na ideia do bem comum, do poder-serviço, do poder  e dos bens, destinados a todos, sob limites estatais, regras sociais e estatais, regrados pelas regras racionais e dialógicas do bem comum (pelo Povo, organizado, pelo diálogo do povo).

A teoria do “bem comum” é a a linha de luz e calor (cf. o padre Manuel Bernardes), que perpassa toda a história da Itália, Bélgica, Irlanda, Espanha, Portugal, os países da América Latina e de outros países cristãos e católicos.

Na Itália, houve estrelas como G. Dossetti, Aldo Moro, Giorgio La Pira, G. Lazzati, Gasperi, Zaccagnini e outros, defensores da teoria do poder público como serviço ao povo, como instrumento e servo do povo.

Outros nomes, para ilustrar este ponto, são Maritain, Mounier, Romulo Murri, Sturzo, G. Donati, F. R. Ferrari, tal como os cardeais Schuster e Dalla Costa.

Mesmo a Internacional Comunista prestou depoimento de elogio da boa linha da Igreja no movimento “mãos estendidas” à Igreja, desde 1935. O movimento das “mãos estendidas” teve a origem em Stalin, que se aproximava da Igreja Ortodoxa, da qual foi seminarista até quase chegar à ordenação, na Georgia. O movimento das “mãos estendidas” foi bem expresso, na parte teórica, por líderes como Togliatti, que ensinavam que a “utopia religiosa” é fermento revolucionário. Também está exposta nos melhores textos de Antônio Gramsci (1891-1937), onde mostra que a Igreja criticava o modernismo e o liberalismo, adotando uma linha popular.

No Brasil, este movimento de mãos estendidas tem um símbolo em grandes frases ditas em público, por Luiz Carlos Prestes, frases que recolhi noutras postagens deste blog.

O melhor símbolo é a figura de Luiz Ignácio Maranhão Filho, do Comitê Central do antigo PCB. Luiz Maranhão foi torturado e morto pela ditadura de 64, mas antes organizou o livro “A marcha social da Igreja” (Rio, Ed. Encontro, 1967), escrevendo um capítulo do livro, com introdução de Alceu Amoroso Lima . Luiz Ignácio Maranhão Filho foi católico e comunista, conciliando os dois ideais.

A linha democrática e popular é a linha do melhor do clero e dos leigos da Igreja. Esta linha, que é a linha do humanismo cristão, da teoria do bem comum, fica evidente em luminares como: João XXIII, o Cardeal Suenens, Cardeal Lercaro, Cardeal Martini, Manning, Mercier e outras grandes figuras da Igreja.

João XXIII, na “Mater et Magistra” (n. 65), explicou que a Igreja defende, como ideal político, uma síntese de socialização com personalização, que é a base antropológica do ideal histórico de uma democracia popular, real, ponto bem destacado por Lercaro e Dom Hélder.

A ética hebraica, a cristã e a estóica concordam num ponto essencial: a pessoa deve viver para o todo (para a sociedade) e também, em boa síntese, para si mesmo, unindo, numa síntese, a autonomia pessoal e a social.

João XXII lembrou que o Estado (e toda a estrutura da sociedade) deve promover o bem comum, que é “o conjunto das condições sociais” que possibilitem a todas as pessoas “a plenitude do seu desenvolvimento”, o florescimento da natureza. O Estado deve ser social e interventor, mas sob o controle do povo, da sociedade organizada.

São João XXIII lembrou que cada pessoa deve ter sua “efetiva autonomia” (libertação, independência, autodeterminação), “em sincera harmonia e em benefício do bem comum”. Cada sociedade deve ter a “forma” de “autênticas comunidades”, onde “os seus membros” sejam “tratados sempre como pessoas humanas”, “participantes” dos processos decisórios e dos bens, permitindo às pessoas “cultivarem melhor e aperfeiçoarem os seus dotes naturais”.

A linha de luz e vida de João XXIII é a linha da teoria do bem comum, esposada também pelo Cardeal Lercaro, Dom Hélder e outros expoentes da Igreja. Foi também a linha de outro grande expoente da Igreja, Dom Louis Joseph Liénart (1884-1973), Cardeal e bispo de Lille, na França. Esta é a linha preponderante do Vaticano II, da maior parte da Igreja.

O Cardeal Liénart era chamado de “Cardeal vermelho” (“Cardinal rouge”) ou “Cardeal dos operários” (“Cardinal des ouvriers”). O bom Liénart foi um dos grandes responsáveis pela difusão do modelo francês de Ação Católica, com base em ramos especializados inseridos. Esteve no Brasil em 1955 e influenciou Dom Hélder nos trabalhos deste nas favelas do Rio do Janeiro.

Enrique Dussel teceu grande elogio ao Cardeal Liénart, no livro “De Medellin a Puebla” (vol. I, São Paulo, Ed. Loyola, 1981, p. 23).

O padre Liénart apoiou o movimento grevista em Lille, em 1929. Isto, gerou um ataque do empresariado da cidade. Em 1930, Pio XI ordenou Liénart como bispo e, em seguida, Cardeal (com apenas 46 anos, na época, o cardeal de menor idade).

No início do Concílio Vaticano II, Liénart declarou “Hoc schema mihi non placet” (“esta minuta não tem meu placet, meu apoio”) e, com esta frase, tendo o apoio implícito de João XXIII, alterou, com os demais bispos do pólo da esquerda, a estrutura do Vaticano II. João XXIII apoiou o pólo de esquerda dos bispos. O apoio do Papa, tal como o apoio de Paulo VI após a morte de João XXIII, foi decisivo para a aprovação dos melhores textos do Vaticano II.

A revista “La Civiltà Cattolica” (n. 3344, IV, p. 105-117, 1989), dos jesuítas, uma grande porta-voz do Vaticano, no editorial, lembrou que a Revolução Francesa” foi um “grande sinal dos tempos”, pois “exprimia e dava atuação histórica aos grandes valores [idéias, ideais] humanos da liberdade, da igualdade, da democracia, promovendo os direitos do homem frente ao poder absoluto e despótico” e “representava para a própria Igreja a libertação da dependência do poder civil, que a constrangia”. Da mesma forma, a Revolução superava a “confusão entre sociedade civil e sociedade religiosa”.

O “sujeito da autoridade política é o povo”. Esta premissa basilar está bem clara nos textos de Cícero, dos estóicos e dos grandes juristas romanos, especialmente Gaio e Ulpiano, muito estimados pela Igreja. Está, por exemplo, nos textos de Gaio, especialmente nos trechos deste jurista, que muitos consideraram cristão, conservados no livro “Mosaicarum et Romanarum legum Collatio”, onde um escritor tentou demonstrar como o melhor do direito romano, a parte democrática, estava em adequação com as Leis de Moisés.

Os textos semi-cristãos e democráticos de Gaio influenciaram também a “Lex Romana Visigotorum”, a organização jurídica dos povos bárbaros. Gaio era jusnaturalista e ensinava que a “lei é o que o povo ordena e estabelece” (cf. “Instituciones”, “Commentarius primus”, n. 2). Em todos os textos de Gaio, o sujeito político principal é o “Populus”, o “Povo”, o que é o enunciado fundamental da doutrina jusnaturalista da democracia (na mesma linha de Thomas Jefferson, Thomas Paine, Robespierre e outros luminares da democracia).

O enunciado de Gaio é também o enunciado de Mably, Spedalieri, Giuseppe Toniolo, de Ozanam, Windsthorst, Ketteler, Buchez e outras estrelas da doutrina social da Igreja.

Também é o núcleo (o miolo, o cerne) da concepção política do humanismo hebreu e também da Paidéia. Esta concepção põe a pessoa no centro do mundo, como senhora natural do mundo (cf. Gen 1,26), dado que fomos criados para a liberdade, para a autonomia e para o controle do universo.

Conclusão: a genealogia do poder tem como causa imediata o povo organizado (no fundo, a união de mentes gerada pelo diálogo), como destacaram Cícero, os Santos Padres e também Suarez, Bellarmino e outros grandes luminares da Igreja.

A Igreja sempre ensinou que o poder político (na terminologia medieval, o poder secular, o poder temporal) é algo mundano, algo humano, regido pelas leis naturais, pela ação da liberdade humana. Pode ser bom ou mal, sendo bom o poder que é regido por boas idéias. Esta linha está clara inclusive nos textos mais agrestes dos Papas São Gregório VII e de Bonifácio VIII.

O sistema capitalista é perverso e iníquo porque reifica, aliena, usurpa o poder político, pondo-o à serviço da oligarquia, do grande capital. Por esta razão, tal como por outras, fica claro que democracia e capitalismo são coisas antitéticas, contrárias, opostas, como destaca bem autores como Frei Betto, Emir Sader e outros grandes escritores.