Ernest Renan (1823-1892) teve forte formação eclesial no seminário e foi também professor de hebraico no Colégio da França. Pois Renan, no livro “Cristianismo e judaísmo” (editado com outras obras de Renan, no livro “Qué es uma nación”, Buenos Aires, Ed. Elevación, 1947, p. 45 em diante), soube expor corretamente a relação entre judaísmo (pensamento bíblico, hebraico) e o cristianismo.
Renan demonstrou que o cristianismo mantém, em si, todo o ardor dos profetas por justiça social, por um mundo renovado, sem iniqüidade, acolhendo também, em boa síntese, o melhor da Paidéia. Apesar dos erros de Renan (e de Bruno Bauer), há bons textos em Renan, que foram apreciados pela Igreja, como fica patente nos melhores textos de Joaquim Nabuco e de Alceu Amoroso Lima, dois grandes católicos.
Renan soube demonstrar que as melhores idéias da Paidéia (especialmente da Grécia) e da Bíblia se uniram para gerar a Revolução Francesa e o Estado democrático. Os textos de Renan foram admirados por Joaquim Nabuco, pelo amor à democracia e à razão. Renan deixou bons textos de elogio sobre a vida de grandes expoentes da Igreja, como Lamennais, Agustín Thierry (que Marx considerava como o criador da teoria sobre a influência das classes sociais na história), Pasteur e outras grandes estrelas (inclusive Littré, que se converteu antes de morrer).
Como Werner Jaeger destacou, em sua obra “Cristianismo primitivo e paidéia grega”, a recepção do melhor das idéias gregas (da Paidéia) ocorreu pela semelhança de conteúdo (devido à harmonia entre a razão e a fé, entre a consciência humana e a consciência divina) e porque “os judeus já estavam helenizados nos tempos de São Paulo” e inclusive “na Palestina” (especialmente na Galiléia). Por outro lado, a cultura grega recebeu profunda influência semita, desde o berço.
A recepção da Paidéia trouxe boas idéias harmônicas com o pensamento hebraico, mas também trouxe idéias erradas. A “helenização do cristianismo” tem inúmeros pontos bons e alguns pontos ruins. Os pontos bons devem ser cuidadosamente conservados (pois são frutos da Providência) e os maus (certo desprezo ao corpo, ao trabalho manual etc) devem ser erradicados, depurados, purificados, superados. A parte boa da Paidéia grega deve ser mantida, pois constitui o bom trigo, tendo origem remota em Deus, dado que toda idéia verdadeira é boa (conduz ao bem comum) e vem de Deus, no final das contas.
A Igreja seguiu os passos dos hebreus e valorizou a razão (a filosofia, a ciência, a política etc) desde o início. Os cristãos, como fica claro nos textos dos Santos Padres, aprenderam gramática em obras como a “Gramática”, de Denis da Trácia; medicina com Hipócrates, Pedaneo Dioscórides e Galeno (129-201); geometria com Euclides; astronomia com Cláudio Ptolomeu (de 100 a 138 até 170 d.C.,o autor do “Almagesto”); aritmética com o livro de Diofanto; construção (arquitetura) com o livro “Da arquitetura”, de Marcus Vitrúvio (70-25 a.C.), tal como com “Dos aquedutos de Roma”, de Frontino; engenharia com Arquimedes; agricultura com Marco Pórcio Catão (234-149), Varrão, Virgílio, Gargílio, Marcial e Júnio Moderato Columela; poesia com Horácio; economia com Xenofonte, Platão e Aristóteles; etc. Tudo isso foi recepcionado pela via do diálogo (da inculturação).
Os Santos Padres aprenderam a ciência política democrática com autores como Aristóteles, Cícero, os grandes juristas romanos, Demóstenes, Platão, os estóicos e outros. Acolheram todas as idéias verdadeiras, por serem racionais e por estarem em harmonia com a Bíblia.
Os Santos Padres colheram as melhores idéias da Paidéia, em autores como Virgílio, Sêneca, nos estóicos, Aristóteles, Políbio e outros. Um autor que foi muito utilizado pelos Santos Padres foi Diodoro da Sicília (90 ou 80-20 a.C.), a obra “Biblioteca histórica”. Diodoro descreveu a história do Egito, dos Assírios, dos Líbios, da Grécia, das ilhas da Ásia Menor, dos Medos, dos Citas, da Etiópia e de outros povos. Diodoro narrou o confronto entre Antíoco Epifânio e os hebreus.
A linha historiográfica de Políbio e de Diodoro da Sicília (elogiado por Eusébio de Cesaréia) era estóica. Esta era a linha também de Dion Cássio (elogiado por Montaigne, pelas idéias estóicas) e a linha do Pseudo-Apolodoro (que viveu lá por 150 a.C., em Atenas), no livro “Biblioteca” (a obra pode ter sido escrita depois de Cristo, atribuída a Apolodoro de Atenas). Com base nestes historiadores, quase todos estóicos, os cristãos começaram a redigir textos sobre a história, como a “Crônica” de São Jerônimo, de Abraão até sua época.
Os primeiros cristãos deram seqüência ao trabalho de síntese dos judeus entre as idéias hebraicas-semitas e o melhor da Paidéia, como fica claro nos textos de Fílon e de Flávio Josefo. Flávio Josefo, no livro “Antiguidades judaicas”, usou os textos de Dionísio de Halicarnasso e outros, na mesma linha dos textos de Diodoro e de Políbio. Flávio Josefo e Filon, tal como os grandes Santos Padres, apontaram a influência semita desde o berço da cultura grega, ponto importantíssimo para a recepção da Paidéia, pela Igreja.
Por exemplo, Bossuet, que era admirador da Paidéia, no livro “Discurso sobre a história universal” (1681), seguiu os passos de Diodoro da Sicília (90-30 a.C.). Diodoro foi um historiador grego, autor de “Biblioteca Histórica” (também conhecida como “História universal”). Há a mesma base em Shakespeare (católico ou filho de católico, pró-católico), Corneille, Racine e outros grandes católicos.
Os elogios de Leão XIII, Pio XI, Pio XII, João XXIII, dos bispos do mundo todo no Vaticano II, de Paulo VI, de João Paulo II e Bento XVI à democracia são continuidade de textos mais antigos, dos Santos Padres. Estes textos mais antigos ficam patentes no texto de Pio VII, no Natal de 1797, onde lembrou, numa homília, que a forma democrática de governo nada tem de contraditório com a Revelação. Pio XII repetiu este ponto no Natal de 1944.
A harmonia entre catolicismo e democracia também foi a linha geral do Secretário de Estado de Pio VII, o Cardeal leigo Hércules Consalvi (1757-1824), o que prova que os leigos podem ser cardeais excelentes, tal como podem participar de Sínodos e Concílios (como ocorria antigamente, nos antigos Concílios). O amor à democracia estava também nas idéias do Cardeal Rampolla, Secretário de Estado de Leão XIII e seu sucessor natural. O Cardeal Ercole (Hércules) Consalvi teve a honra de ter sido signatário da “Concordata” da Igreja com Napoleão Bonaparte, em 1801, reconciliando a Igreja com a estrutura democrática do Estado moderno. A biografia de Consalvi foi feita por Fischer, “Kardinal Consalvi” (Moguncia, 1899) e por Angelucci, “Il grande secretario della Santa Se” (Roma, 1924). Há também o livro “Memórias”, organizado por Crétineau Joly, em Paris, 1864.
Conclusão: a teologia da Igreja, especialmente a moral e política, tem um “ideal histórico” (cf. o documento da antiga Ação Popular), o ideal humanista (do melhor da Paidéia e da Bíblia) de uma democracia popular, participativa, social, horizontal, toda pautada pelo bem comum. As idéias cristãs conduzem a um regime justo, um regime misto, uma economia mista, onde o povo seja a origem imediata do poder, o titular (sujeito) do poder, pautando tudo em prol do bem comum, do bem do povo, para assegurar condições de vida plena e abundante para todos. Maritain e Alceu demonstraram bem esta proposição.