François Perroux, a fonte principal de Celso Furtado

Celso Furtado, numa linda entrevista que concedeu a pesquisadora Rosa Maria Vieira, em 06.08.2001, mostra as fontes de seu pensamento. Principalmente François Perroux, um grande católico, e também Keynes, a CEPAL, Prebisch, Roberto Simonsen, List, Manoilesco e outros. Celso Furtado defendeu a construção de um grande Estado social e econômico, de proteção social, com planificação democrática (cf. Karl Mannheim, autor que Alceu também cita), no fundo, o mesmo ideal que Alceu, como mostra a biografia de Alceu, “Memórias improvisadas”, feita por Medeiros Lima. 

Vejamos: “RM: E, já que estamos falando de leituras, eu quero perguntar, também, sobre Manoilesco e List. CF: Tomei conhecimento de Manoilesco um pouco mais tarde, quando ele teve muita repercussão no Brasil. 3 0 VIEIRA, R.M.. Entrevista com Celso Furtado RM: …inclusive a FIESP financiou a tradução de seu livro sobre o protecionismo para a indústria. CF: Sim, a tradução a partir do francês, não é? Li esse livro com curiosidade. Aliás, Prebisch fora influenciado por ele. A obra de Manoilesco tem coisas muito positivas.

Mas o que ficou foi o corporativismo, que tem aspectos muito negativos. Como as duas vertentes do pensamento dele não foram separadas, sua influência tendeu a diminuir. RM: Isso provavelmente deve ter partido de críticas do pensamento liberal, digamos assim. CF: Exato… Mas, os dirigentes da FIESP [sob a direção de Roberto Simonsen, lá por 1944 e 1945] perceberam a importância da teoria do protecionismo, do moderno protecionismo. RM: Se me lembro bem, o Roberto Simonsen cita, freqüentemente, o Manoilesco em seus trabalhos. CF: É… ele foi traduzido e difundido por influência de Simonsen. RM: E List, o teórico alemão? CF: Eu fiz só uma resenha sobre o livro dele, que trata da Alemanha. Aliás, tudo que permitia entender o atraso do Brasil me interessava. Manoilesco, por exemplo, me permitia mostrar que o Brasil não podia seguir pelo caminho em que estava. Ele propunha um sistema de proteção do setor moderno de produção e List foi o grande teórico que influenciou Manoilesco. List é de 1840, 1850, e sua obra foi definitiva, porque criou o conceito de indústria infantil. Ele procurava mostrar que toda indústria é frágil no começo e que, portanto, precisa de proteção.

Todas essas idéias foram se estruturando em minha cabeça, como uma forma nova de pensar. Mas a influência maior que tive foi de Keynes. RM: Nessa entrevista dada à Maria da Conceição Tavares e ao Manuel Corrêa de Andrade, lá pelas tantas, o senhor disse algo que me chamou muito a atenção: que a CEPAL tinha sido sua escola de trabalho como economista. Eu queria, então, lhe perguntar se sua aproximação mais intensa com o pensamento de Keynes ocorreu quando passou a fazer parte da CEPAL. Gostaria que me falasse um pouco, também, sobre suas relações intelectuais com Raul Prebisch. CF: A verdade é que o pensamento de Prebisch foi fundamental para mim.

A experiência da CEPAL me permitiu constatar que o Brasil era um país atrasado, e para isso não havia explicação. Isso eu descobri assim que cheguei a Santiago, comparando as estatísticas do Brasil, da Argentina, do México, do Chile. HISTÓRIA ORAL, 7, 2004, p. 21-40 3 1 RM: No Fantasia Organizada o senhor fala sobre isto… CF: Trato disso, sim. Fui encarregado de fazer um mapeamento do desenvolvimento dos países mais importantes da América Latina durante dez anos. Ao fazer esse trabalho, constatei o quanto o Brasil era atrasado. Como explicar? O Brasil tinha mais território, mais população, mais recursos e potencial. Onde estava a sua inferioridade? Superada a teoria da inferioridade racial, a resposta só podia estar na História, e lá fui buscá-la. Tudo isso me obrigou a repensar, a abrir um caminho. E comecei a ver o fim do túnel quando li Keynes.

RM: E onde se deu esta aproximação com Keynes, professor? CF: Na CEPAL. RM: Na CEPAL? O senhor começou por aquele livro do Prebisch, sobre Keynes? CF: Não. RM: é que ele tem um livro… CF: …um pequeno livro feito nessa época. RM: Isso! CF: Não posso dizer que descobri Keynes na CEPAL, porque já o havia estudado antes. Mas até então, eu via o Keynes da “teoria do ciclo econômico”, que era a sua grande contribuição e levava à política de estabilização. Na CEPAL, comecei a perceber a importância da visão macroeconômica da História. Tratava-se, agora, de olhar a História, vendo o macroeconômico, para entender a lógica do atraso e descobrir os fatores que impediam o crescimento de um país como o Brasil. Aí, comecei a ler teoria econômica mais sofisticada.

RM: Em suas análises, a questão do Estado tem um papel central. O senhor tem uma leitura sobre a intervenção do Estado no Brasil que é paradigmática. Neste sentido, queria lhe perguntar sobre a importância do François Perroux. Ele tem algum papel no momento em que o senhor começa a definir a questão da importância do Estado? CF: O pensamento de François Perroux foi seguramente o que mais me influenciou, pela importância de sua teoria do “pólo de crescimento”, que permite compreender que o crescimento econômico resulta de uma vontade política. Perroux me orientou para pensar o papel do Estado. É a partir da criação do Estado Nacional que se pode falar de desenvolvimento. RM: O senhor se lembra o que leu de Perroux, em especial? 3 2 VIEIRA, R.M.. Entrevista com Celso Furtado CF: A Economia do Século XX, aqueles grandes volumes… Mas eu também fui aluno de Perroux, em Paris, segui suas conferências. Ele lecionava na mesma faculdade onde fiz o doutorado. Assistir a uma aula de Perroux era um espetáculo, porque ele fazia uma gesticulação muito curiosa. Aliás, lembro-me de que ele foi acusado de ter sido collabo… sem fundamento. Seus próprios pares da Universidade o absolveram. RM: Professor, o seu caminho para descoberta do papel do Estado é um caminho que foi sedimentado pelo Keynes ou pelo Perroux? CF: Por Perroux.

Keynes, em relação à questão do Estado, dá, digamos assim, a sinalização do ponto de vista econômico. É o teórico da dinâmica macroeconômica. Na realidade, ele criou a necessidade de uma dinâmica. O modelo keynesiano é um modelo estático, mas é claro que na sua época representou um tremendo avanço. Keynes valorizou o papel do Estado. A partir dele cabia pensar em política econômica e não mais, simplesmente, no mercado para regular a economia. Foi um salto enorme. Isso nos deixou fascinados: o Brasil era atrasado porque não havia uma política econômica e o mercado não iria resolver os problemas do país. Ia deixar o Brasil onde estava, acumulando cada vez mais atraso. A ruptura qualitativa na minha visão do mundo dá-se aí: compreender o papel do Estado, perceber que o desenvolvimento, no fundo, é obra de uma ação política, e que essa ação política poderia ter sido facilitada por uma certa estrutura social, uma classe burguesa dinâmica, como houve na Europa… RM: O que não era o caso do Brasil… CF: De fato. Aqui a classe dirigente era passiva, dominada intelectualmente de fora. Havia que se formar uma vontade política. Passei, então, a ver o mundo como um desafio. Fazer política é enfrentar desafios. Não cabe esperar por soluções espontâneas. Não pode haver infra-estrutura sem política, sem planejamento. O mercado é maravilhoso, mas não transforma a infra-estrutura a médio e longo prazos.

RM: Numa de suas entrevistas recentes o senhor disse uma frase muito significativa: “Não há mercado sem Estado”. CF: Exato. Penso, por exemplo, nas cidades italianas do passado. Uma cidade como Veneza foi um verdadeiro Estado nacional, regida por uma vontade política que defendia os seus interesses para valer. HISTÓRIA ORAL, 7, 2004, p. 21-40 3 3 RM: Professor, ainda dentro desta linha, eu encontrei no seu Auto-retrato intelectual algumas referências a Mannheim, quanto à questão do planejamento democrático. Pelo que eu estou percebendo, o senhor pensou, originalmente, a questão do planejamento na Faculdade de Direito, quando entrou em contato com a preocupação americana com a administração. Mas, há um dado momento em que Mannheim aparece em seu pensamento. Gostaria de saber até onde o senhor reconhece a influência de Mannheim nessa questão do planejamento democrático.

E, também, uma outra coisa: até onde a noção de intelligentsia de Mannheim influenciou suas concepções a propósito dos intelectuais? CF: Para mim, Mannheim foi fundamental. Ele me iluminou, me tirou do tecnicismo. Pude perceber que há valores, que o planejamento não decorre apenas de uma boa estratégia. Há que estar iluminado por valores, para ser democrático. Mannheim me ensinou a ver a sociedade como um sistema de valores, antes de tudo. RM: Quando se dá este contato o pensamento de Mannheim? CF: Muito cedo, na época em que chegavam aqui as traduções de suas obras feitas pelo Fondo de Cultura. Eu estava na Faculdade de Direito. O livro de Mannheim publicado por essa época, início da Segunda Guerra, foi Ideologia e Utopia. Havia outro livro dele sobre planificação social, mas eu me concentrei no Utopia… RM: Essa idéia, essa concepção de intelectual que o senhor tem, como alguém capaz de intervir… CF: É inspirada em Mannheim… No conceito de intelligentsia”.