Economia mista é economia normal, racional

Frei Firmino de Centelhas (1819-1887), no livro “Compêndio de filosofia católica-racional” (São Paulo, Henrique Schroeder, 1864, p. 174), adotado por vários seminários brasileiros, ensinava a mesma concepção popular sobre o poder dos antigos escolásticos e de Suárez (sendo a mesma de Cícero, Santo Agostinho e de Aristóteles): “os homens e as circunstâncias determinaram quem havia de exercer a autoridade civil, bem como o modo de exercê-la”.

O poder tem sua fonte imediata no consentimento. Firmino também ensinava que “a felicidade de uma nação” (o bem comum) depende de “leis justas” (p. 175), tal como de uma boa estrutura política e administrativa.

Pio XII, na encíclica “Con singolare”, ensinou que

… no final do século XVIII, a ciência do direito romano estava se orientando para as concepções da escola do direito natural”, a “sã doutrina do direito natural, tal como havia sido ensinada dentro da Igreja pelos representantes da philosophia perennis e havia chegado a seu ápice com as obras de um Tomás de Aquino e de um Suárez”.

Está correta a análise de Pio XII: no final do século XVIII, o período neoclássico, a concepção jurídica mais difundida era o jusnaturalismo, especialmente com as fórmulas de Suárez. Ocorre que, infelizmente, como constatou Pio XII, este movimento democrático, nas estruturas jurídicas e políticas, sofreu contaminação pelos erros do liberalismo, a “filosofia do iluminismo” (também teísta, e não materialista, frise-se). O liberalismo respalda os interesses da burguesia, constituindo a “democracia liberal”, contaminando a democracia com erros do capitalismo.

A “filosofia do iluminismo”, ligada ao liberalismo, estava ligada ao movimento da fisiocracia, tal como aos textos menos errados de Adam Smith. A fisiocracia e os textos liberais foram úteis na promoção da democracia política, ao lado de outras correntes jusnaturalistas. No entanto, junto com boas idéias presentes no liberalismo político, fluíram más idéias do liberalismo econômico, que respaldavam a luta política da burguesia.

Os fisiocratas e Adam Smith denunciaram os monopólios privados com a chancela (concessões) do Estado. Erraram, no entanto, ao atacarem boas idéias, como: o controle dos preços; o controle, os limites ou a proibição dos juros; a regulamentação estatal da produção; o movimento associativo dos trabalhadores e o controle por estes das atividades econômicas; a proteção estatal e alfandegária; as estatais (“estancos”, cf. João Camillo de Oliveira Torres); a atividade fomentadora, planificadora , assistencial e promocional do Estado etc. Estes pontos do “mercantilismo” foram corretamente resgatados no movimento socialista.

Os textos de Frederich List e de Henry Carey (1793-1879) resgatam as boas idéias de Colbert e do século XVII. Idéias de controle público da economia, de proibição de exportação de matérias-primas, controle das importâncias e do câmbio, importância da indústria etc. List e Carey fazem parte da corrente do nacionalismo, que buscou ampliar a intervenção do Estado na economia, para ordená-la no sentido do bem comum. No Brasi, houve bons esboços de controle da economia especialmente para a tutela da economia popular. Por exemplo, o Decreto-lei n. 869 (de 18.11.1938) e a “Lei Malaya” (Decreto-lei n. 7.666), de Getúlio e Agamennon Magalhães (este e Sérgio Magalhães combinavam nacionalismo, trabalhismo e catolicismo). Um bom conjunto de leis sociais destruiria os monopólios privados, que são grandes parasitas e sanguessugas, as grandes tênias, no corpo da sociedade. Esta é a linha de Alceu, de Barbosa Lima Sobrinho, de Alberto Torres, Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, Getúlio e outros. 

Para Pio XII, o “ápice” do jusnaturalismo católico foi exposto por Suárez e este é claríssimo na defesa da soberania do povo, utilizando os melhores textos de Aristóteles, Santo Tomás de Aquino, dos Santos Padres, da Escola de Salamanca e de outros luminares da Igreja.

Como explicou Pio XI, na “Quadragésimo anno” (n. 21), “a lei natural” (as leis da razão, logo, da ética) representa “a vontade de Deus promulgada através dela”. A tese que a “lei natural” representa “a vontade de Deus” significa que a razão humana (fonte da lei natural) reflete e tem pontos comuns com a razão divina. A lei natural é o fluxo constante das ideias práticas e razoáveis, do povo, para o auto-governo do próprio povo. 

No fundo, esta tese significa que conhecemos a razão divina por nossa razão, que a razão presente em todas as pessoas reflete a razão divina, ou seja, a voz do povo é a voz de Deus. Em outros termos: a consciência da sociedade é a mediação, o meio pelo qual Deus (e sua vontade, planos) é conhecido. Assim, a soberania (razão e vontade divina) reside em Deus, mas por meio da razão e da liberdade (vontade livre e racional) humana.

Conclusão: “a lei natural” é um conjunto de idéias, de ditames, nascidos da reflexão e da experiência da inteligência, comum a Deus e aos homens, claro que em máxima magnitude em Deus. Parte das idéias e da vontade de Deus é perceptível pela natureza e por outras mediações. Assim, as idéias (o plano) de Deus surgem, assim, na consciência humana, por idéias semelhantes (idéias verdadeiras, ou seja, de acordo com a natureza dos seres), também presentes na consciência (na inteligência), de Deus (Santa Teresa de Ávila explica estes passos, tal como Suárez). Uma parte das idéias de Deus, refletidas na natureza, pela semelhança que temos com Deus (inteligência e vontade livres), são também acessíveis pela luz natural da razão e estas idéias verdadeiras e práticas formam o que se convenciou chamar de “lei natural”, “lei moral” ou “justiça natural”.

O tomismo, como o kantismo, estabelece o papel legislador da razão humana (o legislador natural que gera a lei natural, a justiça natural) e este papel legislador da razão significa que o povo, a sociedade, é a legisladora natural para si mesma. Por isso, Cristo disse: “conhecereis a verdade [as idéias verdadeiras] e a verdade vos libertará” (cf. Jô 8,32).