Elogio do grande Marco Túlio Cícero

Santo Agostinho, tal como Santo Ambrósio e São Jerônimo, apreciava os melhores textos de Cícero. O próprio Cícero seguia os passos dos “peripatéticos” (da escola de Aristóteles) e dos estóicos, como ele mesmo diz no primeiro parágrafo de seu livro “Dos deveres” (“De Officiis”, São Paulo, Ed. Saraiva, 1965, p. 27), onde escreveu:

“meu filho,… não deixe tambem de ler minhas obras, nas quais a doutrina pouco difere da dos peripatéticos, pois, eles e eu nos ligamos a Sócrates e a Platão. Use seu próprio pensamento, quando se tratar da essência das coisas” e “aos estóicos [especialmente Panécio], aos acadêmicos, aos Peripatéticos cabem nos ensinar deveres” (p. 29), concluindo que “seguiremos, de preferência, os estóicos, mas sem servilismo, como é nosso costume; nós nos saciaremos em suas fontes, quando julgarmos apropriado, mas não abdicaremos nosso ponto de vista, nosso juízo e nosso arbítrio”.

Nesta obra, Cícero escreveu textos como:

“A natureza pôs em todo o ser animado o instinto de conservação, para defender seu corpo e sua vida, para evitar o que prejudica, para procurar todo o necessário com que viver; o alimento, o abrigo e outras coisas desse gênero. Deu, a cada espécie, nos dois sexos, uma atração mútua que os leva à multiplicação, e certo cuidado de sua prole. Mas há diferença entre o homem e o animal; pois este obedece unicamente aos sentidos, só vive o presente, o que está diante dele e não tem qualquer sensação de passado e futuro. O homem, ao contrario, com a ajuda da razão, que é o seu galardão, percebe as conseqüências, a origem, a marcha das coisas, compara-as umas com outras, liga e reata o futuro ao passado; envolve, de um golpe de vista, todo o curso de sua vida, e faz provisão do necessário para iniciar uma profissão.

É ainda recorrendo a razão que a natureza aproxima o homem do homem, fazendo-os conversar e viver em comum. (…)

A honestidade consiste em descobrir a verdade pela perspicácia do espírito, ou em manter a sociedade humana dando a cada um o que é seu e observando fielmente as convenções [os acordos, consensos]; encontra-se, ainda, ou na grandeza e força da alma indômita e inquebrantável ou nessa ordem e medida perfeita das palavras e ações, resultando daí a moderação e a temperança.

Das outras três, a mais fecunda e extensa é a que leva a manter a sociedade, cimentando a união entre os homens. Divide-se em duas partes: a justiça, a mais esplêndida das virtudes, primeira qualidade do homem de bem; e a caridade, que também pode ser denominada bondade ou generosidade. O primeiro dever imposto à Justiça é não fazer mal a ninguém, a mesmos que se tenha de repelir uma ofensa; o segundo é usar em comum os bens de comunhão. (…)

Desde que cada um tem sua parte nos bens de origem comum, cada um deve conservar seu lote, e se quiser levar vantagem, viola as leis sociais. Mas, como muitas vezes, seguindo as nobres palavras de Platão, não nascemos sozinho, assim o que possuímos devemos, em parte, à nossa terra e à nossa gente.

Segundo os estóicos, todos os produtos da terra se destinam aos usos dos homens, e os próprios homens são criados por seus semelhantes, a fim de que possam se ajudar uns aos outros; devemos, por isso, tomar por guia a natureza”.

Os livros de Cícero – “A República”, “As leis” e “Deveres” – foram incorporados na teoria jurídica de Santo Agostinho como um conjunto de idéias democráticas populares. Fazem parte do grande acervo, tesouro, de ideias cristãs e naturais, que formam o que se convencionou chamar de “filosofia cristã”, uma síntese aberta, ecumênica, eclética, aberta a toda verdade, venha de onde vier.