Um trecho do livro de MAURICE LEBLANC, “Agência Barnett& Cia”, sobre o impagável ARSENE LUPIN, Robin Hood lá por 1920…

” DAI A CÉSAR O QUE É DE CÉSAR…
É esta a história de alguns fatos que, pouco antes da grande guerra [1914-1918] alvoroçaram a opinião pública, tanto mais que só foram conhecidos por fragmentos e informes contraditórios.

Que vinha a ser aquela curiosa personagem que tinha o nome de Jim Barnett, e que, da maneira mais divertida, se encontrava envolvida nas mais fantasistas aventuras? Que se passava naquela misteriosa agência privada, Barnett & Cia., que parecia atrair os clientes apenas para os despojar com maior segurança?
Hoje, que as circunstâncias permitem expor o problema em suas minúcias e resolvido com inteira certeza; apressemo-nos em dar a César o que é de César, e atribuir os delitos de Jim Barnett a quem os cometeu, isto é, ao incorrigível Arsène Lupin. Ele não se incomodará por isto…
AS GOTAS QUE TOMBAM
TOCARAM a campainha do pátio do vasto palacete que a baronesa Assermann ocupava no elegante bairro de Saint-Germain. Logo a seguir apareceu a criada trazendo uma sobrecarta.
— Está aí um homem que a senhora mandou vir às quatro horas.
A Sra. Assermann abriu a sobrecarta e leu estas palavras impressas num cartão: Agência Barnett & Cia. informações gratuitas.
— Conduza esse cavalheiro ao meu toucador.
Valéria — a bela Valéria, como lhe chamavam havia já trinta anos, ai dela: — era uma pessoa gorda e madura, ricamente vestida, cuidadosamente pintada, e que conservara grandes pretensões. Seu rosto exprimia orgulho, às vezes dureza, amiúde certa candura não isenta de encanto. Esposa do banqueiro Assermann, envaidecia-se de seu luxo, de suas relações, de seu palacete e, em geral, de tudo quanto lhe dizia respeito.
A crônica mundana lhe censurava certas aventuras um tanto escandalosas. Afirmavam até que o marido quisera divorciar-se. Ela foi primeiro aos aposentos do barão Assermann, homem idoso, achacado, retido ao leito havia semanas por causa de crises cardíacas pediu notícias suas e, distraidamente, ajeitou-lhe os travesseiros atrás das costas. Ele murmurou:
—Tocaram a campainha?
—Sim — respondeu a mulher —. Foi aquele detetive que nos recomendaram para o nosso caso. Parece que se trata de alguém notabilíssimo.
—Tanto melhor — afirmou o banqueiro —. Esta história me amofina, e por mais que reflita, não compreendo nada.

Valéria, que tinha aspecto igualmente preocupado, saiu do quarto e dirigiu-se à sua saleta particular. Lá encontrou um indivíduo estranho, bem proporcionado de corpo, ombros quadrados, aparência vigorosa, mas vestido com uma sobrecasaca preta, ou por outra, esverdeada, cuja fazenda brilhava como a seda de um guarda-chuva. O rosto, enérgico e vigorosamente talhado, era jovem, mas estragado por uma pele áspera, rugosa, vermelha, uma pele de tijolo. Os olhos frios e zombadores, por trás de um monóculo que ele colocava indiferentemente à direita ou à esquerda, animavam-se de uma alegria juvenil.
— O Sr. Barnett? — indagou a dona da casa.
Ele se inclinou e, antes que ela tivesse tempo de retirar a mão, beijou-a, com um gesto largo seguido de um imperceptível estalar da língua, como se apreciasse o perfumado sabor daquela mão.
— Jim Barnett, para servi-la, senhora baronesa. Recebi sua carta, e foi só o tempo de escovar minha sobrecasaca…
Atônita, ela hesitava em mandar pôr aquele intruso pela porta fora. Mas ele lhe opunha tal desenvoltura de fidalgo conhecedor de seu código de cortesia mundana, que ela só pôde pronunciar:
— Disseram-me que o senhor está habituado a elucidar casos complicados…
O homem sorriu com ar convencido:
— Isto em mim é mais dom, o dom de ver claro e de compreender.
A voz era doce, o tom imperioso, e toda a atitude conservava uma espécie de discreta ironia e ligeira troça. Parecia tão seguro de si e de seus talentos que era impossível aos outros se subtraírem à sua própria convicção, e Valéria mesma sentiu que, desde o primeiro momento, se submetia ao predomínio daquele desconhecido, vulgar detetive, chefe de uma agência particular. Desejosa de tomar qualquer desforra, insinuou:
—Talvez seja preferível combinarmos… as condições…
—Totalmente inútil — declarou Barnett.
—Entretanto, — ela sorriu a seu turno — o senhor não trabalha pela glória?…
—A Agência Barnett é inteiramente gratuita, senhora baronesa.
Esta pareceu contrariada.
—Eu preferiria que nosso acordo previsse ao menos uma indenização, uma recompensa.
—Uma gorjeta — chasqueou ele.
Valéria insistiu:
— É claro que eu não posso…
— Dever-me um favor? Uma mulher bonita nunca deve coisa alguma a ninguém.
E, ato contínuo, sem dúvida para corrigir um pouco o atrevimento deste dito galante, acrescentou:
“Aliás, senhora baronesa, não tenha receio de nada. Qualquer que sejam os serviços que eu lhe possa prestar, arranjar-me-ei de modo que fiquemos inteiramente quites.”
Que significavam essas palavras obscuras? Teria o sujeito a intenção de pagar-se a si próprio? E de que natureza seria esse encontro de contas?
Valéria teve um arrepio de constrangimento e corou. De fato, o Sr. Barnett suscitava nela uma confusa inquietação, não sem analogia com os sentimentos que experimentamos na presença de um gatuno. Pensava ela, também… Deus meu, sim… pensava que talvez se tratasse de um apaixonado que tivesse escolhido essa maneira original de se introduzir em sua casa. Mas como sabê-lo? E, de qualquer forma, como reagir? Achava-se intimidada e dominada, ao mesmo tempo confiante e absolutamente disposta a submeter-se, acontecesse o que acontecesse. E assim, quando o detetive a interrogou sobre as causas que a tinham levado a pedir o concurso da Agência Barnett, ela falou sem circunlóquios nem preâmbulo, conforme ele exigia que falasse. A explicação não foi longa: O Sr. Barnett parecia apressado.
—Foi no penúltimo domingo — disse ela —. Eu reunira alguns amigos para o “bridge”. Deite-me muito cedo e adormeci como de costume. O barulho que me acordou lá pelas quatro horas — quatro e dez exatamente — foi seguido de outro que me pareceu o de uma porta que se fecha. Esse ruído vinha do meu toucador.
—Quer dizer, deste aposento? —interrompeu o Sr. Barnett.
—Sim, peça que é contígua, de um lado, ao meu quarto (O Sr. Barnett inclinou-se respeitosamente em direção daquele quarto), e, do outro lado, ao corredor que leva à escada de serviço. Não sou medrosa. Depois de um momento de espera, levantei-me.
Novo cumprimento do Sr. Barnett diante daquela visão da baronesa saltando da cama.
— Então, — disse ele — a senhora se levantou…
—Levantei-me, entrei aqui, acendi a luz. Não havia ninguém, mas esta pequena vitrine estava caída, com todas as suas tetéias e estatuetas que aí se encontravam, algumas das quais estavam quebradas. Fui ao quarto de meu marido, que lia na cama. Não ouvira nada. Muito inquieto, chamou o mordomo que começou imediatamente a fazer investigações, as quais, logo que amanheceu, foram continuadas pelo comissário na polícia.
—E o resultado? — perguntou o Sr. Barnett.
—Ei-lo. Quanto à chegada e à partida do indivíduo, nenhum indício. Como entrara? Como saíra? Mistério. Mas descobriu-se, debaixo de um tamborete estofado, entre os cacos das tetéias, uma vela pela metade e um furador de cabo de madeira muito suja. Ora, sabíamos que durante a tarde anterior, um bombeiro consertara as torneiras do lavatório de meu marido, no seu quarto de vestir. Interrogou-se o patrão, que reconheceu o utensílio e em cuja casa se encontrou a outra metade da vela.
—Por conseguinte, — interrompeu Jim Barnett — por esse lado, existe uma certeza?
—Sim, mas contrariada por outra certeza igualmente indiscutível, e verdadeiramente desconcertante. Provou o inquérito que o operário tomara às seis horas da tarde o rápido para Bruxelas e lá chegara à meia-noite, três horas portanto antes do incidente.
—Diacho! E esse operário voltou?
—Não. Perderam-lhe a pista em Antuérpia, onde ele gastava dinheiro sem contar.
—E é tudo.
—Tudo.
—Quem seguiu este caso?
—O inspetor Béchoux.
O Sr. Barnett manifestou extrema alegria.
—Béchoux? Ah! o excelente Béchoux! um de meus bons amigos, senhora baronesa. Temos trabalhado muitas vezes juntos.
—Foi ele, com efeito, quem me falou da Agência Barnett.
—Provavelmente porque não resolvia nada, não é?
—De fato.
—O bravo Béchoux! como eu me sentiria feliz em lhe prestar serviço!… assim também como à senhora, pode crer… Principalmente à senhora!…
Barnett dirigiu-se para a janela, onde apoiou a testa e permaneceu alguns instantes refletindo. Tamborilava sobre a vidraça e assobiava uma musicazinha de dança. Afinal, voltou para perto da Sra. Assermann e prosseguiu:
“A opinião de Béchoux, a sua, senhora baronesa, é a de que houve tentativa de roubo, pois não?”
—Sim, tentativa infrutífera, já que nada desapareceu.
—Admitamo-lo. De qualquer maneira, essa tentativa tinha um objetivo preciso, e que a senhora deve conhecer. Qual é?
— Ignoro-o — replicou Valéria, após ligeira hesitação.
O detetive sorriu.
Permita-me, senhora baronesa, que, respeitosamente, eu dê de ombros.
E, sem aguardar a resposta, apontando um dedo irônico para um dos painéis de fazenda que forravam a saleta, por cima do rodapé, indagou, como se pergunta a uma criança que escondeu um objeto:
“Que é que há debaixo daquele painel!?”
— Nada… — redarguiu ela, embaraçada —. Que quer isto dizer?
O Sr. Barnett, em tom sério, declarou:
— Isto quer dizer que a mais sumária das inspeções permite verificar que os bordos do retângulo de fazenda estão um pouco fatigados, senhora baronesa, que, em certos lugares, parecem separados do madeiramento por uma frincha, e que há todos os motivos para supor que ali se acha dissimulado um cofre-forte.
Valéria estremeceu. Como, através de indícios tão vagos, o Sr. Barnett pudera adivinhar?… Com um movimento rápido, fez deslizar o painel designado. Pôs à mostra, assim, uma portazinha de aço, e, febrilmente, acionou os três botões da fechadura do cofre. Sentia-se perturbada por uma desrazoável inquietação. Embora fosse impossível a hipótese, perguntava a si mesma se a estranha personagem não a teria roubado durante os poucos minutos em que ficara só.
Com o auxílio de uma chave tirada do bolso, abriu e teve imediatamente um suspiro de satisfação. Havia ali, único objeto guardado, um colar de pérolas magnífico, que ela apanhou vivamente, e cujos três fios se enrolaram à volta de seu pulso.
O Sr. Barnett se pôs a rir.
“Agora está mais tranqüila, senhora baronesa. Ah! mas o caso é que os gatunos são tão hábeis, tão audaciosos! É preciso desconfiar, senhora baronesa, porque, na verdade, é uma peça belíssima, e eu compreendo que lhe tenham roubado.”
Ela protestou.
—Mas não houve roubo. Se é que quiseram apoderar-se dela, a tentativa falhou.
—Acredita isto, senhora baronesa?
—Se eu acredito isto! Mas se o colar aqui está! Se eu o tenho em minhas mãos. Uma coisa roubada desaparece. Ora, ei-lo aqui.
Ele retificou tranqüilamente:
—Eis aqui um colar. Mas está segura de que seja o seu colar? Está certa de que este tenha um valor qualquer?
—Como! — exclamou ela exasperada —. Mas não há ainda quinze dias que meu joalheiro o avaliou em meio milhão.
—Quinze dias… quer dizer cinco dias antes da noite… Mas atualmente?… Note que não sei de nada… Não fiz uma avaliação por peritos… Apenas suponho… E pergunto-lhe se nenhuma suspeita se mistura à sua certeza.
Valéria não se movia. De que suspeita falaria ele? A propósito de quê? Uma confusa ansiedade a invadia, suscitada pela displicência verdadeiramente penosa de seu interlocutor. Na concha de suas mãos, sopesava o amontoado de pérolas, e eis que aquela massa lhe parecia tornar-se cada vez mais leve. Fitava-as, e seus olhos distinguiam coloridos diferentes, reflexos desconhecidos, uma igualdade impressionante, uma perfeição equívoca, um conjunto completo de pormenores inquietadores. Assim, nas sombras de seu espírito, a verdade principiava a luzir, mais e mais distinta e ameaçadora.
Modulou Barnett um risinho de satisfação:
“Perfeito! Perfeito! A senhora começa a perceber! Está no bom caminho!… Mais um pequeno esforço, senhora baronesa, e verá claro. Tudo isto é tão lógico! O adversário não rouba, mas substitui. Destarte, nada desaparece, e se não tivesse havido aquele maldito barulhinho da vitrine, tudo se passaria nas trevas e permaneceria no desconhecido. A senhora ignoraria até nova ordem que o colar verdadeiro desaparecera, e que ostentava sobre seu alvo colo uma jóia de pérolas falsas.”
A familiaridade da expressão não a escandalizou. Pensava em coisa muito diversa. O Sr. Barnett inclinou-se diante dela, e sem lhe dar tempo de respirar, caminhando direto ao alvo, articulou:
“Portanto, um primeiro ponto esclarecido: o colar desapareceu. Não nos detenhamos em tão boa pista, e, agora que sabemos que ele foi roubado, procuremos, senhora baronesa, quem o roubou. Assim o quer a lógica de um inquérito bem conduzido. Logo que conheçamos o nosso ladrão, estaremos muito perto de reaver dele o objeto de seu roubo… terceiro estágio da nossa colaboração.”
E bateu cordialmente nas mãos de Valéria, dizendo:
“Tenha confiança, baronesa. Estamos progredindo. E, logo de início, se me permite, uma hipotesezinha. A hipótese é um excelente processo. Suponhamos assim que seu marido, se bem que doente, pudesse, naquela noite, arrastar-se de seu quarto até aqui, que se tenha munido com a vela e, para qualquer eventualidade, do instrumento esquecido pelo bombeiro, que haja aberto o cofre-forte, que tenha desastradamente virado a vitrine, e que fugisse com medo que a senhora o ouvisse — como tudo se torna claro! Como seria natural que o cofre-forte tivesse sido aberto sem efração, pois que o barão Assermann, no correr dos anos, enquanto gozava do doce favor de penetrar em seus aposentos particulares, deve ter em muitas noites, entrando aqui em sua companhia, assistido ao manejo da fechadura, notado os estalidos e os intervalos, contado o número de encaixes deslocados e, a pouco e pouco, desta maneira, vir a conhecer as três letras do segredo.”
A “hipotesezinha”, como dizia Jim Barnett, pareceu aterrorizar a bela Valéria à medida que ele a desenvolvia na sua presença em fases sucessivas. Dir-se-ia que ela as via desenvolverem-se, e recordava-se.
Fora de si, balbuciou:
— O senhor está louco! Meu marido é incapaz… Se veio alguém naquela noite… não pode ser ele… Isto está fora de toda possibilidade…
Ele insinuou:
—Existia alguma cópia do seu colar?
—Sim… Por prudência, ele mandara fazer uma, na época da compra, há quatro anos.
—E quem a possuía?
— Meu marido — afirmou ela em voz baixa.
Jim Barnett concluiu alegremente:
—É esta a cópia que a senhora tem em mãos! Foi ela que se substituiu às suas pérolas verdadeiras. As outras, as verdadeiras, ele as tirou. Por que motivo? Estando o barão de Assermann, por sua fortuna, acima de toda acusação de roubo, devemos encarar motivos de ordem íntima… vingança… necessidade de atormentar, de fazer mal, talvez de punir? Não acha? Uma mulher jovem e bonita pode cometer certas imprudências, muito legítimas, mas que um marido julga com alguma severidade… Desculpe-me, baronesa. Não me cumpre entrar nos segredos de seu lar, mas apenas procurar, de acordo com a senhora, onde se encontra o seu colar.
—Não! — exclamou Valéria, com um movimento de recuo — Não! Não!
De repente se sentiu farta daquele insuportável auxiliar que, em alguns minutos de palestra, quase galhofeira por instantes, e de forma contrária a todas as regras de um inquérito, descobria com diabólica facilidade todos os mistérios que a envolviam, e lhe mostrava, com ar escarninho, o abismo onde o destino a precipitava. Ela não queria mais ouvir sua voz sarcástica: “Não!”, repetia obstinadamente.
Ele se inclinou.
— Como preferir, minha senhora. Longe de mim a idéia de importuná-la. Aqui estou para prestar-lhe serviço, e na medida em que isto lhe agradar. No ponto em que estamos, aliás, estou persuadido de que poderá dispensar o meu auxílio, tanto mais que, não podendo seu marido sair, não terá por certo cometido a imprudência de confiar as pérolas a alguém, e deve tê-las escondido num canto qualquer de seu apartamento. Uma busca metódica as entregará. Meu amigo Béchoux parece-me muito indicado para esta tarefazinha profissional. Uma palavra ainda. No caso de ter necessidade de mim, telefone esta noite para a Agência, das nove às dez. Meus cumprimentos, senhora.
De novo lhe beijou a mão, sem que ela ousasse esboçar a menor resistência. A seguir retirou-se num passo saltitante, bamboleando-se sobre os quadris com satisfação. A porta do pátio não tardou a fechar-se.
Naquela mesma tarde, Valéria mandou chamar o inspetor Béchoux, cuja presença contínua no palacete Assermann não podia parecer senão natural, e principiaram as buscas. Béchoux, policial estimável, discípulo do famoso Ganimard, e que trabalhava segundo os métodos correntes, dividiu o dormitório, o quarto de vestir, e o gabinete particular em setores que revistou sucessivamente. Um colar com três fios de pérolas constitui um volume que não é possível dissimular, mormente de pessoas profissionais como ele. No entanto, após oito dias de encarniçados esforços, e também depois de noites laboriosas, em que, aproveitando o hábito do barão Assermann de tomar soporíficos, esquadrinhou até o leito e por baixo deste, o inspetor Béchoux desanimou. O colar não podia estar no palacete.
Malgrado suas repugnâncias, Valéria pensou em retomar contacto com a Agência Barnett e em pedir socorro à intolerável personagem. Que importava que este lhe beijasse a mão e a chamasse de “cara baronesa”, se atingisse o alvo?
Mas um acontecimento, que tudo anunciava, sem que se pudesse julgar tão próximo, precipitou a situação. Num fim de tarde, foram procurá-la às pressas: seu marido achava-se presa de uma crise assustadora. Prostrado no divã, à entrada do quarto de vestir, sufocava. O rosto descomposto exprimia sofrimentos atrozes.
Apavorada, Valéria telefonou ao médico. O barão sussurrou:
—É tarde demais… tarde demais…
—Não é tal… — disse ela — juro-te que tudo correrá bem.
Ele tentou levantar-se.
—Quero beber… — pediu o enfermo, cambaleando em direção ao quarto de vestir.
—Mas, meu marido, nesta garrafa tens água.
—Não… não… dessa água não…
—Por que este capricho?
—Quero beber de outra… desta…
Tornou a cair sem forças. Ela abriu rapidamente a bica do lavatório que o marido apontava, depois procurou um copo, que encheu e que, finalmente, ele recusou beber.
Seguiu-se um longo silêncio. A água corria tranqüilamente ali ao lado. A fisionomia do moribundo se atormentava.
Fez-lhe sinal de que desejava falar. Ela se inclinou. Mas ele deve ter tido medo de que os criados ouvissem, pois ordenou:
“Mais perto… mais perto…”
Valéria hesitou, como se temesse as palavras que ele queria dizer. Foi tão imperioso o olhar do marido que, subitamente dominada, ela se ajoelhou e quase colou o ouvido a seus lábios. Foram sussurradas palavras incoerentes, e das quais, quando muito, podia ela adivinhar o sentido.
As pérolas… o colar… É preciso que tu saibas, antes que eu parta… Olha… nunca me amaste… Casaste comigo por causa da minha riqueza…”
Ela protestou, indignada, contra uma acusação tão cruel naquela hora solene. Mas ele agarrou-lhe o pulso e repetiu-lhe confusamente, com uma voz de delírio:
“… por causa da minha riqueza, e provaste-o com o teu procedimento… Não foste uma boa esposa, e é por isto que eu te quis punir… E desfruto uma terrível satisfação… Mas é preciso que assim seja… e concordo em morrer porque as pérolas desaparecem… Não as ouves tombar e ir com a corrente? Ah! Valéria, que castigo!… As gotas que tombam… As gotas que tombam…”
Não tinha mais forças. Os criados o levaram para a cama. Em breve chegou o médico, e vieram também duas velhas primas a quem tinham avisado e que não se afastaram mais do quarto. Pareciam atentas aos menores gestos de Valéria, e prontíssimas a defender as gavetas e as cômodas contra toda e qualquer tentativa.
Foi longa a agonia. O barão Assermann morreu ao amanhecer o dia, sem pronunciar outras palavras. Em atenção ao pedido formal das duas primas, colaram-se imediatamente selos em todos os móveis do quarto. E começaram as compridas horas fúnebres do velório.
Dois dias mais tarde, depois do enterro, Valéria recebeu a visita do notário do marido, que lhe pediu uma entrevista particular.
Ele mantinha uma expressão grave e aflita, e foi logo dizendo:
—A missão que devo cumprir é penosa, senhora baronesa, e desejaria terminá-la tão prontamente quanto possível, ao mesmo tempo que, antecipadamente, lhe asseguro que não aprovo, nem poderia aprovar o que foi feito em seu detrimento. Esbarrei, porém, com uma vontade inflexível. A senhora conhecia a obstinação do Sr. Assermann, e apesar de meus esforços…
—Peço-lhe que se explique, senhor — suplicou Valéria
Vamos, pois, aos fatos, senhora baronesa. Ei-los: tenho entre as mãos um primeiro testamento do Sr. Assermann, datado de uns vinte anos atrás, e que a designava então como legatária universal e única herdeira. Mas devo dizer-lhe que, no mês passado, ele me confiou ter feito outro… pelo qual deixava todos os seus haveres às duas primas.
—E o senhor tem esse outro testamento?
—Depois de me ter lido, ele o fechou nesta secretária. Desejava que não tivessem conhecimento do mesmo senão uma semana após sua morte. Os selos só poderão ser retirados nessa data.
A baronesa Assermann compreendeu então por que o marido lhe aconselhara, alguns anos antes, na época de violentos desacordos entre os dois, vender todas as suas jóias e com esse dinheiro comprar um colar de pérolas. Sendo falso o colar, achando-se Valéria deserdada e sem possuir bens nenhum, ficaria sem recursos.
Na véspera do dia aprazado para o levantamento dos selos parou um automóvel diante de uma loja modesta da Rua de Laborde, que ostentava esta inscrição:
Agência Barnett & Cia.
Aberta das duas às três horas.
Informações gratuitas.
Desceu uma dama de luto pesado e bateu.
— Entre — gritaram do interior.
Ela entrou.
“Quem está aí?” prosseguiu uma voz que ela reconheceu, e que partia da sala atrás da loja, separada da Agência por uma cortina.
— A baronesa Assermann.
—Ah! Mil perdões, baronesa. Queira sentar-se. Vou imediatamente.
Valéria Assermann esperou, examinando o escritório. Era quase que desguarnecido de todo: uma mesa, duas velhas poltronas, paredes nuas, sem quaisquer fichários nem a menor papelada. Uma aparelho telefônico formava o único ornato e o único instrumento de trabalho. Sobre um cinzeiro, entretanto, pontas de cigarro de grande luxo, e, por todo o aposento, um odor suave e delicado.
A cortina do fundo suspendeu-se e Jim Barnett apareceu alerta e sorridente. A mesma sobrecasaca surrada, gravata de laço feito, e principalmente mal feito. Monóculo pendurado na ponta de um cordão negro.
Ele se precipitou para uma das mãos, cuja luva beijou.
“Como vai, baronesa? Para mim é um verdadeiro prazer… Mas que é que houve? Está de luto? Nada de sério, espero. Ah! Meu Deus, como sou distraído! Lembro-me… o barão Assermann, não é? Que catástrofe! Um homem tão encantador, que a amava tanto! E então, onde é que estávamos?”
Ele tirou do bolso um caderninho que folheou.
“Baronesa Assermann… Perfeito… recordo-me… pérolas falsas. Marido gatuno… Mulher formosa… Mulher muito formosa… Deve telefonar-me. ..
“Pois bem, minha cara senhora, — concluiu com uma familiaridade crescente — continuo esperando esse telefonema.”
Ainda desta vez, Valéria ficou desconcertada com a personagem. Sem querer apresentar-se como mulher a quem a morte do marido tivesse acabrunhado, ainda assim experimentou sentimentos penosos, aos quais se juntaram a angústia do porvir e o horror da miséria. Acabava de passar quinze dias horríveis, com visões de ruína e privação, com pesadelos, remorsos, pavores, desesperos, cujos traços lhe marcavam duramente o rosto abatido… E eis que se encontrava face a face com um homenzinho satisfeito, desenvolto e borboleteador, que não tinha absolutamente ar de compreender a situação.
Para dar à entrevista o tom que lhe convinha, ela narrou os fatos com muita dignidade, e, evitando recriminar o esposo repetiu as declarações do notário.
“Perfeito! Muito bem!… pontuava o detetive, com um sorriso aprovador… Perfeito!… Tudo isto se encadeia admiravelmente. É um prazer ver em que ordem se desenrola o drama apaixonante.”
—Um prazer? — interrogou Valéria, cada vez mais desamparada.
—Sim, um prazer que o meu amigo, o inspetor Béchoux, deve ter sentido vivamente… Pois suponho que lhe tenha explicado…
—O quê?
—Como, o quê? Ora essa, o nó da intriga, a mola da peça! Hem, é bastante cômico, não? Como Béchoux deve ter rido!
Jim Barnett, pelo menos, ria a bandeiras despregadas.
Ah! A idéia do lavatório! Aí está um verdadeiro achado! É mais uma farsa do que um drama, aliás! Mas como está habilmente arquitetado! Confesso que logo farejei o truque, e, quando a senhora me falou de um oficial de bombeiro, vi imediatamente a relação entre o conserto efetuado no lavatório e os projetos do barão Assermann. Disse aos meus botões: “Mas, macacos me mordam, tudo se reduz a isto. Ao mesmo tempo em que o barão combinava a substituição do colar, reservava para si um ‘bom esconderijo para as pérolas verdadeiras!” Pois que, para ele, era o essencial, não? Se ele a tivesse simplesmente privado das pérolas, para lançá-las ao Sena como um embrulho sem valor, dos quais nos queremos desembaraçar, isso não passaria da metade de uma vingança. A fim de que essa vingança fosse completa, total, magnífica, precisava guardar as pérolas a seu alcance, e, por conseguinte, ocultá-las num esconderijo muito próximo e verdadeiramente inacessível. E foi o que se fez.”
Jim Barnett divertia-se muito e continuava a rir.
“E foi o que ocorreu, graças às instruções que deu, e a senhora poderá ouvir daqui o diálogo entre o oficial de bombeiro e o banqueiro: “Escute cá, meu amigo, faça o favor de examinar este cano de escoamento debaixo do meu lavatório; desce até o rodapé, e sai do meu quarto de vestir num declive quase imperceptível, não é? Pois bem, esse declive, você ainda pode atenuá-lo mais, e vai até aqui, neste canto escuro, levantar um pouco o encanamento de maneira que forme uma espécie de argola onde, sendo necessário, pudesse alojar-se um objeto. Caso se abra a torneira, a água encherá imediatamente essa argola e arrancará o objeto. Compreende, meu amigo? Sim? Então, no lado do cano que fica encostado à parede, para que não possa ser visto, faça-me um furo com cerca de um centímetro de diâmetro… Exatamente neste ponto… Às mil maravilhas! Ótimo! Agora tape esse orifício com esta rolha de borracha. Pronto? Não me resta senão agradecer-lhe e resolver entre nós esta questãozinha. Estamos de acordo, pois não? Nem uma palavra a ninguém. Silêncio. Olhe, aqui tem isto para tomar esta tarde, às seis horas, uma passagem para Bruxelas. E aqui estão três cheques para receber lá, um por mês. Dentro de três meses, tem inteira liberdade para voltar. Adeus, meu amigo…” E nesse momento um aperto de mão. E na mesma noite, aquela noite em que a senhora ouviu barulho em seu toucador, substituição das pérolas e deposição das verdadeiras no esconderijo preparado, quer dizer, no interior do encanamento. E agora compreende? Sentindo-se perdido, o barão a chama: “Um copo de água, por favor. Não, não da água da garrafa… mas daquela que ali há.” A senhora obedece. E é o castigo, o castigo terrível posto em movimento por sua própria mão que abre a bica. A água corre, carrega as pérolas, e o barão entusiasmado resmunga: “Ouves? elas vão embora… elas caem nas trevas.”
A baronesa escutara, muda e transtornada, e no entanto, mais do que o horror e todo o ódio de seu marido, evocava uma coisa que se desprendia dos fatos com assustadora precisão.
—Então, o senhor sabia?… — murmurou —. O senhor sabia a verdade?
—Claro, — retrucou ele — é o meu ofício.
—E não me disse nada!
—Como! Mas foi a senhora, baronesa, quem me impediu de dizer o que eu sabia, o que eu estava a pique de saber, e foi a senhora quem me despediu, um tanto brutalmente. Eu sou um homem discreto não insisti. E, além do mais, não seria necessário verificar?
—E verificou? — balbuciou Valéria.
—Oh! Simples curiosidade.
—Em que dia?
—Naquela mesma noite.
—Naquela mesma noite? Pôde penetrar na casa? Naquele apartamento? Mas eu não ouvi…
—O hábito de operar sem ruído… O barão Assermann também pouco ouviu… E contudo…
—Contudo?…
—Para me certificar, alarguei o buraco do cano… sabe? Aquele buraco por onde as tinham introduzido.
Ela estremeceu.
—Então?… então?… o senhor as viu?…
—Vi.
—As pérolas?…
As pérolas estavam lá.
Valéria repetiu baixinho, com voz estrangulada:
— Então, se estavam lá, o senhor teria podido… apanhá-las …
Ele confessou ingenuamente:
— Deus meu, creio que sem mim, Jim Barnett, elas teriam sofrido o destino que o Sr. Assermann lhes reservara para o dia previsto de sua morte próxima, o destino que lhe descreveu… lembre-se… “Lá vão elas… tombam nas trevas…Gotas que tombam…” E sua vingança ter-se-ia realizado, o que seria uma lástima. Um colar tão belo… uma peça de coleção!
Valéria não era mulher de sobressaltos de violência e explosões de cólera que estragassem a harmonia de sua pessoa. Mas, desta vez, foi sacudida por tal furor que pulou sobre o Sr. Barnett e procurou agarrá-lo pela gola.
— É um roubo! O senhor não passa de um aventureiro… Bem que eu o suspeitava… Um aventureiro! Um cavalheiro de indústria!
A expressão “cavalheiro de indústria” deliciou o rapaz.
— Cavalheiro de indústria!… encantador… — murmurou ele.
Mas Valéria não se detinha. Trêmula de raiva, caminhava pela sala gritando:
—Não me deixarei enganar! O senhor vai devolver-me o colar, e já! Do contrário, previno a polícia.
—Oh! que projeto feio! — exclamou ele — e como é que uma mulher bonita como a senhora pode ser tão indelicada para com um homem que se mostrou todo dedicação e probidade!
Ela deu de ombros e ordenou:
—O meu colar!
—Mas está à sua disposição, que diabo! Julga que Jim Barnett furta as pessoas que lhe fazem a honra de se utilizarem dele? Bolas! que seria feito da Agência Barnett & Cia., cuja voga se funda, precisamente, em sua reputação de integridade e no seu desinteresse absoluto? Nem um vintém; não reclamo nem um vintém de meus clientes. Se eu ficasse com as suas pérolas, seria um ladrão, um cavalheiro de indústria. E eu sou um homem honesto. Eis aqui o colar, cara baronesa!
Ele mostrou um saco de fazenda que continha as pérolas apanhadas e colocou-o sobre a mesa.
Estupefacta, a “cara baronesa” agarrou o precioso colar com mão trêmula. Não podia acreditar nos próprios olhos. Seria admissível que aquele indivíduo restituísse assim?… Mas de súbito deve ter receado que aquilo não passasse de um bom mas transitório impulso, pois se dirigiu para a porta, num passo estugado, e sem o mínimo agradecimento.
“Como está apressada! — disse ele rindo —. A senhora nem sequer as conta! Trezentas e quarenta e cinco. Aí estão todas… E são as verdadeiras, desta vez…”
—Sim, sim… — disse Valéria… — sei…
Tem certeza, não? São mesmo aquelas que seu joalheiro avaliava em quinhentos mil francos?
—Sim… as mesmas.
—Garante-o?
—Garanto — afirmou ela muito distintamente.
—Neste caso, eu as compro.
—O senhor compra-as? Que significa isto?
—Isto significa que, achando-se sem fortuna, será obrigada a vendê-las. Em lugar de quinhentos mil francos, eu lhe proponho dez milhões. Ah! Ficou tão embasbacada! Dez milhões é uma soma!
—Dez milhões!
—Exatamente o valor a que monta, dizem, a herança do Sr. Assermann.
Valéria detivera-se defronte da porta.
—A herança de meu marido—disse ela—. Não compreendo a relação… Explique-se.
De mansinho, destacou Jim Barnett as sílabas:
A explicação cabe em poucas palavras. A senhora tem de escolher: este colar de pérolas ou então a herança.
—O colar de pérolas… a herança?… —repetia sem entender.
—Sim, meu Deus. Essa herança, conforme a senhora me disse, depende de dois testamentos, o primeiro a seu favor, o segundo a favor de duas velhas primas ricas como Creso, e, parece, más como bruxas. Se não encontrarem o segundo, o primeiro será o válido.
Surdamente, declarou ela:
—Amanhã devem tirar os selos e abrir a secretária. O testamento lá se encontra.
—Lá se encontra… ou não — gracejou Barnett —. Confesso até que na minha humilde opinião, ele não se encontra mais ali.
—Será possível?
—Muito possível… quase certo mesmo… Parece-me lembrar-me, com efeito, que na noite de nossa conversa, quando fui apalpar o cano do lavatório, aproveitei para fazer uma visitinha domiciliar nos aposentos de seu esposo. Ele dormia tão bem!
—E tirou o testamento? — indagou ela, fremente.
— Desconfio muito. São estes rabiscos, não?
Desdobrou uma folha de papel timbrado, em que ela reconheceu a letra do Sr. Assermann, e pôde ler estas frases:
“Eu, abaixo assinado, Leão José Assermann, banqueiro, em razão de certos fatos que ela não esqueceu, declaro que minha mulher não poderá apresentar a mínima pretensão sobre a minha fortuna, e que…”
Não terminou. A voz se lhe estrangulava. Prestes a desfalecer, caiu sobre uma poltrona, gaguejando:
“O senhor roubou este papel!… Não quero ser cúmplice… É preciso que as vontades de meu pobre marido sejam executadas!… É preciso!”
Jim Barnett esboçou um movimento de entusiasmo:
—Ah! o que está fazendo, minha cara amiga, é muito digno! Aí reside o dever, no sacrifício, e eu aprovo-a plenamente… tanto mais que se trata de um dever muito pesado. Pois que, afinal, essas duas primas são indignas de qualquer interesse, e é a senhora mesma quem se imola aos mesquinhos rancores do Sr. Assermann. O quê? Por alguns pecadilhos da mocidade, aceita semelhante injustiça! A bela Valéria ficará privada do luxo a que tem direito, e reduzida a grande miséria! De qualquer forma, suplico-lhe que reflita, baronesa. Pese bem o seu ato, e compreenda todo o seu alcance. Se escolher o colar, isto é, para que não exista desentendimento entre nós, se este colar sai desta sala, o notário, como de justiça, receberá amanhã este segundo testamento, e a senhora será deserdada.
—Senão?
—Senão, de nada sei, não existe segundo testamento, e a senhora herda integralmente. Dez milhões que voltam graças a Jim.
A voz era sarcástica. Valéria sentia-se constrangida, com a garganta apertada, inerte como uma presa entre as mãos daquela personagem infernal. Nenhuma resistência possível. No caso de ela não lhe entregar o colar, o testamento se tornaria público. Com semelhante adversário, qualquer súplica seria vã. Ele não cederia.
Jim Barnett foi por um instante à saleta dos fundos, tapada por uma cortina, e teve a impertinente audácia de voltar com o rosto besuntado de pomada que enxugava gradativamente, como um ator que tira a pintura.
Assim surgiu outro rosto, mais jovem, com uma pele fresca e saudável. O nó postiço foi trocado por uma gravata na moda. Um jaquetão de bom corte substituiu a velha sobrecasaca reluzente. E ele agia tranqüilamente, como pessoa a quem não se pode denunciar nem trair. Nunca, estava certo, ousaria Valéria dizer a ninguém uma palavra sobre tudo aquilo, nem mesmo ao inspetor Béchoux. O segredo era inviolável.
Ele inclinou-se para ela e disse a rir-se:
“Vamos! tenho a impressão de que a senhora vê as coisas mais claramente. Tanto melhor! Afinal de contas, quem saberá jamais que a rica Sra. Assermann usa um colar falso? Nenhuma de suas amigas. Nenhum de seus amigos. De sorte que ganhará uma dupla batalha, conservando ao mesmo tempo a sua legítima fortuna e um colar que toda a gente acreditará verdadeiro. Não é encantador? E a vida não lhe parece de novo deliciosa? A bela vida movimentada, diversa, divertida, amável, em que se podem fazer todas as pequenas loucuras que se tem o direito de fazer em sua idade?”
Nem por um instante, sentia Valéria vontade de fazer pequenas loucuras. Lançou sobre Jim um olhar de ódio e furor, levantou-se e, ereta, sustentada por uma dignidade de grande dama que opera uma saída difícil num salão hostil, partiu.
Em cima da mesa deixava o saquinho de pérolas.
“E aí está o que se chama uma mulher honesta! — exclamou Barnett cruzando os braços com virtuosa indignação —, O marido a deserda para puni-la de seus deslizes… e ela não observa as vontades do marido! Existe um testamento… e ela o surripia! Primas velhas… e ela as despoja! Que abominação! e que belo papel o do justiceiro que castiga e põe as coisas em seu verdadeiro lugar!”
Rapidamente, Jim Barnett tornou a pôr o colar no seu verdadeiro lugar, isto é, no fundo de seu bolso. Depois, tendo acabado de vestir-se, com um charuto nos lábios, o monóculo no olho, deixou a Agência Barnett & Cia”.