O descompasso entre a administração atual e as elites tradicionais norte-americanas explode. A cena política, eletrizada pelas declarações e caprichos de Trump, assim como pelas condenações de adversários cada vez mais exasperados, parece uma permanente rixa cultural, na qual conservadores, populistas e progressistas, alimentados pelo ódio, não poupam golpes baixos, sob o olhar dos parceiros internacionais de Washington, assim como de seus concorrentes. Esse pandemônio se deve inteiramente ao novo presidente? Talvez não. A deriva maniqueísta do debate norte-americano é na verdade anterior ao presidente Trump. Longe de ser a causa da extrema polarização atual, o inquilino da Casa Branca, contudo, encarna sua expressão mais visível.
Um aglutinador… contra si mesmo
No entanto, Trump – para quem o mundo é um caos (a mess), e o homem, “o mais maldoso de todos os animais” [3] – não parece longe de pensar que Brzezinski, falecido no último 26 de maio, era, no fundo, o oráculo supervalorizado de uma época datada. A “nova ordem mundial” não seria a “ordem do novo mundo”? O presidente dos Estados Unidos não lamentaria muito se assim fosse, desde que algumas promessas à sua base eleitoral fossem cumpridas, os Estados Unidos superassem seus concorrentes no plano militar e saísse vitorioso dos acordos bilaterais que viesse a firmar no futuro. Trump não acredita, portanto, que o interesse norte-americano repouse em parcerias mutuamente benéficas na Ásia-Pacífico, Europa e Oriente Médio.
Abalados por esse incessante turbilhão de questionamentos sistemáticos, os pilares de apoio da “grande estratégia” gestada a partir das acomodações de forças pós-Segunda Guerra Mundial parecem – à primeira vista – vacilar. Os profissionais da diplomacia norte-americana assistem a essas perturbações sem poder reagir. Dois terços dos postos de trabalho do Departamento de Estado não foram preenchidos pela administração, pois o presidente os julga “totalmente inúteis” [4]. A esse desdém, os especialistas em política internacional opõem seu cordial desprezo, declarando que o presidente não tem visão, projeto diretor ou estratégia.
O primeiro problema dos comentaristas atuais da política externa norte-americana é supor uma estabilidade que estaria em risco com a atual administração de Trump, como no caso de Robert Zoellick, ex-presidente do Banco Mundial, secretário de Estado adjunto e diretor-geral da Goldman Sachs. “A política externa de Trump representa uma ruptura em relação à dos presidentes tanto democratas como republicanos, desde Harry Truman [presidente de 1945 a 1953]”, explica. Esses ex-presidentes sempre consideraram os interesses nacionais e internacionais como duas faces da mesma moeda [6].
Há verdades e inverdades nesse julgamento, e também é preciso distinguir o plano da ideologia (a “visão”) do plano da prática (as “políticas”). Do ponto de vista instrumental da prática, o dogma de uma estabilidade bipartidária é um mito. Trump se inscreve (com inaptidão e brutalidade) em um dos ciclos curtos de oscilação tática entre “maximalismo” e “retração” que marca, há muito tempo, a diplomacia dos Estados Unidos [7]. Ele não é o primeiro. Dwight Eisenhower (1953-1961) tinha acabado com o ativismo da primeira Guerra Fria.
Alinhamento nacionalista e militarista
A mais célebre é a de Walter Russell Mead, que divide a política externa norte-americana em quatro tendências arquetípicas, cada uma delas relacionada ao pensamento de figuras políticas marcantes: a de Alexander Hamilton, primeiro secretário do Tesouro (1789-1795), “realista” e determinada pelos desafios comerciais [11]; a do presidente Thomas Jefferson (1801-1809), permeada pelos ideais democráticos; a de Woodrow Wilson, defensor dos princípios morais; e a de Andrew Jackson (1829-1837), nacionalista e militarista [12].
Essa filiação jacksoniana é suficiente para esclarecer a originalidade do trumpismo? Sem dúvida não, pois o jacksonismo, mais político que filosófico, prioriza a prática, e não a visão. Em outros termos, apesar de seu estilo abrasivo e grosseiro dissimular esse aspecto, o atual presidente, jacksonista ou não, continua na prática a respeitar a linha de conduta habitual de uma América que não tem amigos, e sim partners, acionistas minoritários de estruturas de apoio político e militar offshore, e de quem Washington é o acionista majoritário, sempre atento ao retorno de seus investimentos e participações.
Se existe uma ruptura de Trump no campo das relações internacionais, ela não se situa no plano do estilo ou da prática política (escolha de alianças, designação de adversários, influência nos tribunais internacionais), e sim no plano da visão. Trump não quer mais exportar democracia. No Washington Post, Anna Applebaum denuncia “a sombria promessa de Trump de um retorno a um passado mítico” [13]; em outras palavras, a traição herética da ordem liberal ocidental.
No que tange à “visão”, é igualmente necessário relativizar. O atual locatário da Casa Branca trai os ideais norte-americanos. Mas quais? Sob a forma liberal intervencionista, esses ideais foram apenas um momento do paradigma externo dos Estados Unidos, da forma como a história permite que seja visto. Da presidência de George Washington à de William McKinley, ou seja, de 1789 a 1901, de fato existiu um primeiro consenso diplomático norte-americano, muito diferente daquele descrito por Applebaum ou Krauthammer. Essencialmente isolacionista, a política externa de Washington se limitava então a dominar o continente norte-americano, fazendo frutificar seu comércio e evitando se envolver em alianças restritivas. Foi apenas com a conquista do posto de primeira economia mundial, no início do século XX, que os Estados Unidos, convertendo sua prosperidade em poder, projetaram-se politicamente em escala global, fenômeno cuja virada espetacular, em detrimento da Espanha, teve como marco a “esplêndida guerrinha” de 1898 no Caribe.
Woodrow Wilson, por outro lado, é considerado o próprio protótipo de idealista no plano diplomático: em 1917, se entrou em guerra contra a Alemanha, foi em nome do direito e de uma forte concepção de superioridade moral norte-americana. Contudo, opor a realpolitik de Roosevelt, o “guerreador”, ao viés idealista de Wilson, “o padre”, não parece pertinente [16]. Um exemplo que demonstra essa ponderação, entre outros, é a forma como Albert Beveridge, senador e conselheiro próximo de Roosevelt, definia a missão dos Estados Unidos, segundo seu discurso no Senado, em 9 de janeiro de 1900, intitulado “Em defesa do imperialismo norte-americano”: “Deus nos fez mestres organizadores para estabelecer um sistema em um mundo onde reina o caos. A nós foi conferido o espírito do progresso para vencer as forças reativas sobre toda a Terra. Deus nos fez adeptos do governo com o qual devemos administrar os povos selvagens e senis. Sem essa força, o mundo recairá na escuridão e na barbárie” [17]. Esse discurso reforça antes o idealismo universalista que a realpolitik. Da mesma forma, mas no sentido inverso, o cientista político Stanley Hoffmann ressaltou a ambivalência do idealismo wilsoniano: “Wilson é uma figura exemplar porque seu nobre ideal de uma moral não maquiavélica para o chefe de Estado termina em tragédia e porque, como defensor dos interesses da nação, ele muitas vezes incorria em maquiavelismos” [18].
A unanimidade do segundo consenso
Essa convergência, interiorizada pela elite norte-americana, forma a base do segundo consenso, compartilhado tanto pelos republicanos quanto pelos democratas, e que pouco a pouco substituiu o primeiro “consenso isolacionista” (Stephen Krasner). Do início do século XX até nossos dias, a célula fundadora dessa visão de conjunto não foi colocada em questão pelas agitações políticas conjunturais das diferentes administrações entre maximalismo e retração. Essa coerência de visão se deve ao fato de que a matriz filosófica e espiritual da República norte-americana continha em seu princípio, desde 1776, tanto o imperialismo rooseveltiano, o moralismo wilsoniano e o realismo de segurança nacional de Truman quanto a diplomacia dos direitos humanos de Bill Clinton. Essa plasticidade fundadora permitiu que a partição do segundo consenso – síntese entre prosperidade comercial, missão moral e potência global – fosse harmoniosamente executada, para além das oposições intelectuais que os “realistas” e os “idealistas” norte-americanos às vezes sobrevalorizam no plano teórico.
É a essa unanimidade do segundo consenso que se deve confrontar o fenômeno Trump para tentar medir a capacidade real de ruptura que ele poderia eventualmente representar. Apegado tanto à ideia de prosperidade comercial como à de potência global de seu país, Trump de fato é o primeiro a se recusar a queimar o incenso diante da terceira vertente do tríptico, a da missão moral. Ao renunciar a esse aspecto, ele retorna não exatamente ao isolacionismo singular do período entreguerras, durante o qual o slogan “America first” [América em primeiro lugar] poderia aparentemente se encaixar, e sim ao distanciamento diplomático que, de Washington a McKinley, e sob a égide da Doutrina Monroe de 1823, precedeu o surgimento da potência rooseveltiana-wilsoniana dos anos 1890 a 1920, que constituiu o segundo consenso.
Alguns elementos fazem pensar que Trump é consciente desse status herético. “A partir de hoje, a política desse país jamais será a mesma”, escreve no prefácio de seu discurso de posse. Palavras de refundação que talvez seja imprudente reduzir a simples falatório do personagem contumaz. Conselheiro de segurança nacional de Trump, o general McMaster emprestou sua pluma a uma explicação textual no Wall Street Journal de 1º de junho de 2017, prevenindo que o presidente a quem servia tinha “a visão clara de que o mundo não é uma ‘comunidade global’, e sim uma arena na qual as nações, os atores não governamentais e os atores econômicos se engajam e lutam por vantagens e benefícios. Nós trazemos a essa arena uma força militar, política, econômica, cultural e moral sem concorrência. Em vez de negar essa natureza elementar das relações internacionais, nós a assumimos” [19].
Esse texto caiu como uma bomba no establishment diplomático norte-americano. A força militar é evocada em primeiro lugar, e a força moral, por último, o que era algo moderadamente inesperado para a pluma de um leitor assíduo de Tucídides, assim como H. R. McMaster [20]. Suspeitar que Trump não tenha lido A Guerra do Peloponeso não ajuda, pois ele age como se conhecesse na íntegra o célebre diálogo em que os talassocratas atenienses dão uma dura lição nos habitantes de Melos que tentam evitar o pagamento de tributos: “Do nosso lado, não usaremos belas frases; não argumentaremos que nossa dominação é justa […]. Chega desses longos discursos que despertam apenas desconfiança! […] Nós sabemos, e vocês também sabem: a justiça não é levada em consideração na argumentação dos homens, exceto se as forças forem iguais por parte de um e outro; caso contrário, os fortes exercem seu poder e os fracos devem obedecer a eles” [21].
Outros dirigentes norte-americanos, antes e depois do atual presidente, expressaram sua recusa em fazer da política externa uma ideologia messiânica e sua vontade de confiá-la a um conjunto de correlação de forças interessadas, com investimentos focados e participação resiliente. “The chief business of the American people is business” [O negócio principal do povo norte-americano são os negócios]: assim como de Jackson, Trump procede, no plano da práxis diplomática, segundo essa palavra de ordem proclamada em 1925 por Calvin Coolidge, trigésimo presidente dos Estados Unidos. Desse ponto de vista, não são as revistas de política internacional que se devem percorrer para aproximar-se do enigma Trump, mas – talvez – as revistas como a Forbes. Esse periódico, que representa a quintessência dessa obsessão pelo “sucesso”, força e dinheiro que marca uma parte da cultura norte-americana, entrevistou Trump longamente em novembro de 2017. Nada de desprezo, hostilidade ou elogio no tratamento do artigo, apenas a simples curiosidade técnica de fazedores de dinheiro intrigados pelo percurso de um deles, que se diferencia de seus iguais apenas por uma dose mais marcada de vulgaridade, brutalidade e falta de cultura – e, nesse sentido, por uma forma paradoxal de honestidade.
Esse propósito comunitário permite à Forbes uma leitura distanciada e amoral mais profunda que a do New York Times: “Herdar as chaves do governo norte-americano é comparável ao fato de chegar à direção de uma corporação como a General Electric ou a Microsoft”, constatam placidamente os autores. “É preciso assumir uma parte de continuidade – honrar os compromissos precedentes e gerir a empresa/país da melhor forma possível, voltando-se para novas prioridades ou políticas. O espírito transacional de Trump, contudo, não considera as coisas dessa forma (da mesma maneira que muitos de seus apoiadores, que esperam antes de tudo mudanças radicais). Se ele considera que os políticos precedentes chegaram a acordos ruins (bad deals), ele simplesmente não vê nenhuma razão para honrá-los, seja à custa da reputação da América ou da percepção de uma estabilidade da política norte-americana” [22].
Enquanto a história se encarrega de julgar essa presidência barroca e difícil de decifrar, o problema fundamental é que Trump reduz a política externa de seu país a uma série de deals (acordos). Todos os seus predecessores agiram dessa forma, porém com uma roupagem mais polida e educada. Não se trata também da característica do atual presidente de anunciar uma coisa (a revisão pragmática das relações com a Rússia) e fazer outra (prolongar a tensão russo-norte-americana), ou ainda de sua decisão de fazer da imprevisibilidade um fim diplomático em si, como teoriza Nikki Haley, a representante norte-americana na ONU.23 Quanto à sua obsessão por Andrew Jackson, de fato ela é singular, mas, sem dúvida, fornece um ponto de vista explicativo para parte do enigma.
O verdadeiro problema de Trump parece a limitação territorial de seu talento pessoal, excessivamente valorizado por ele mesmo. Talvez seu espírito transacional permita de fato julgar com acuidade o conteúdo dos acordos que ele desfaz ou renegocia, mas a ausência de fineza na interação parece impedi-lo de julgar simultaneamente o contexto mais geral desses mesmos acordos e suas consequências a longo prazo. Esse estupor, que poderia ser considerado mera hipótese nesses últimos meses, hoje ganha contornos de probabilidade. Anunciada em 6 de dezembro de 2017, a transferência da embaixada norte-americana para Jerusalém constitui um exemplo de inquietação. Não se trata de um simples erro, mas de uma falha colossal, que alinha Washington às posições do Likud e acaba com qualquer legitimidade dos Estados Unidos como garantidor de um processo de paz equitativo. Nesse caso, não houve nenhuma sabedoria relacional nem mesmo conhecimento transacional. Trump não negociou nada: deixou tudo nas mãos de seu protegido, sem contrapartida aparente.
* Olivier Zajek é mestre de conferência em Ciência Política da Universidade Jean-Moulin – Lyon-III, França.
* Publicado em Le Monde Diplomatique Brasil.
Notas:
1 Michelle Goldberg, “Anniversary of the Apocalypse” [Aniversário do apocalipse], The New York Times, 6 nov. 2017.