A explicação da Parusia é, no fundo, a explicação do que queremos para o Futuro. Cada Projeto ou bom Plano é uma Pré-Figuração, um Projeto para a construção do Futuro, do aumento do Bem comum no Universo.
A regra da centralidade do bem comum, de cada pessoa, é a regra maior da teologia e da democracia. Esta regra também faz parte intrínseca da concepção da Igreja, como foi explicado pelo padre Yves Maria Congar, em obras como “Os leigos na Igreja” (São Paulo, Ed. Herder, 1966) e “A hierarquia como serviço, segundo o Novo Testamento e os documentos da Tradição”.
O padre e dominicano Congar foi um dos principais luminares do Concílio Vaticano II, especialmente no ponto sobre a concepção da Igreja como “Povo de Deus”, uma concepção democrática e republicana.
As idéias de Clodovis, Suenens, John Courtney Murray e de Congar são boas exposições das linhas gerais da concepção (“noção”, teoria) cristã sobre a distribuição (universalização) dos bens e do poder entre o povo, especialmente do “poder”, que é também uma espécie de “bem”:
“É interessante notar como no Novo Testamento, especialmente no Apocalipse, o sonho (aspiração, pré-figuração) mais alto da democracia, ou seja, a soberania universal efetiva, como governo de tudo por todos, representa um ideal escatológico.
A idéia bíblica de um “povo de reis” (Ex 19, 6; Dn 7, 13.22-27; 1Pd 2,9; Ap 1,6; 5,6) corresponde ao ideal da “soberania popular” de Rousseau, (…). O último capítulo da Bíblia resume assim a plenitude da história: “E eles reinarão pelos séculos dos séculos” (Ap 22,5), operando, aumentando o Reino, a República Cooperativa Eterna, em construção eterna. Reinarão sobre quem? “Sobre ninguém. Quem sabe sobre o cosmos. Mas talvez a idéia assintótica de uma “realeza universal” simbolize, em seu paradoxo mesmo, a reconciliação cósmico-escatológica.”
Deus, no livro de “Êxodo” (19,5-6), explicou bem a relação dialógica com os seres humanos: “se prestardes realmente atenção à Minha Voz, e mantiverdes a Minha Aliança”, “sereis para Mim um reino de sacerdotes, uma nação sagrada”, boa, uma nação de reis e rainhas, que se autodeterminam, que se autogovernam, pela via do DIÁLOGO, DA DEMOCRACIA VIVA
A oitiva da “voz” de Deus ecoa (ressoa, expressa-se) pela voz da consciência e seguir a própria consciência é autodeterminar-se, é ser livre, é ver, em si, o processo de libertação, que se prolonga eternamente.
Em outras palavras, o ideal da parusia (do grego “Parousía”, presença salvífica, redentora) e do Céu é a “soberania universal efetiva” das pessoas (da sociedade), a total desalienação, a plenitude da vida, a humanização GRADUAL do universo, a renovação ETERNA E GRADUAL, PROCESSUAL, de tudo, com a participação ativa humana (vide, neste ponto, o papel de Maria, dos santos e do próprio Cristo, que é uma pessoa humana e também divina).
O Reino de Deus é, na verdade, uma Grande República Popular, Cooperativa, Socialista e Participativa.
O progresso humano é uma espiral no sentido da fusão (união consensual) entre o Céu e o universo, do aumento da Presença (“Shikanah”) de Deus nas consciências e em tudo. “Este mundo” é “a antecâmara do Palácio” (cf. “Mishná”, do livro “Avot”, 4,21), do Reino, preparado para todos, numa construção conjunta, participativa, sem fim.
Nas palavras de São Paulo, da “Carta aos Romanos” (8,21): “toda criatura será libertada da corrupção para participar na liberdade da glória dos filhos de Deus”.
O ideal de libertação e de justiça social deve ser concretizado, o máximo possível, desde já, na história, TAL COMO NA ETERNIDADE, QUE É A CONTINUAÇÃO DA HISTÓRIA, na medida do que pudermos (por graus, por degraus na “escada de Jacob”), pois a história é formada de degraus do processo ascensional-evolutivo, descrito por Giambattista Vico (1668-1744), no livro “Princípios de uma ciência nova em torno da natureza comum das nações”, 1725. Degraus, na forma heliocoidal, como a escada vista por Jacob, sendo esta idéia adotada por Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) e Friedrich Engels, para designar o processo evolutivo do universo.
O ideal de bem comum foi resumido pelo profeta Miquéias, no livro “Miquéias” (6,8): “Eu te declaro, ó homem, o que é bom; e que é o que o Senhor pede de ti”, “que pratiques a justiça e ames a misericórdia [a bondade, a benignidade]”.
O ideal bíblico de democracia plena (participativa, não-capitalista, social, popular, comunitária, cooperativa etc), uma das bases do Projeto de Deus, consta no bojo da expressão “povo de reis”: na parusia (nosso ideal, meta e exemplo, a estrutura da “cidade celeste”, que irá informar e fundir-se com a cidade temporal) as pessoas reinarão (controlarão) sobre si mesmas, controlando, ETERNAMENTE, como bons cultivadores, a natureza (o universo) e as próprias vidas.
Como ensinou Saadia Gaon (882-942), o filósofo judaico de maior autoridade abaixo de Maimônides, “o valor de cada pessoa e seu destino são preciosos para Ele”, para Deus. Saadia viveu na Babilônia e escreveu o livro “Livro de crenças e opiniões”, explicando o duplo caminho da verdade: a razão e a revelação, demolindo os erros dos caraítas (precursores do fundamentalismo, do integrismo). Saadia adotou uma mistura de platonismo com idéias hebraicas, a mesma mistura adotada pela filosofia cristã e que está também no núcleo da filosofia hebraica e da filosofia muçulmana.
A parusia significa O IDEAL EM CURSO, em processo, da reconciliação entre o Céu e a terra, a reconciliação de Prometeu, como explicou Roberto Lyra Filho, um dos maiores juristas, que deixou textos sobre teologia da libertação.
O Céu é o contrário do inferno (negação da natureza, isolamento, ódio ao próximo, ao outro). O Céu é a plenitude (a perfeição, a bondade, o aperfeiçoamento pela eternidade) da vida humana, da glorificação da criação, da obra do Criador, da PESSOA, DO MOVIMENTO HUMANO, DO TRABALHO HUMANO.
Por esta razão, Roberto Lyra Filho usou o título de “A reconciliação de Prometeu” para seu ensaio de teologia da libertação mesclado com direito alternativo (interpretação favorável aos oprimidos).
Em outros termos, o Céu é a libertação processual, a perfeição crescente (o que os olhos não viram, e verão, gradualmente) do ser humano e do universo, a ordenação cada vez mais racional (e emocional, pois Deus criou as emoções, as paixões) da criação para o bem comum.
A ampliação da presença divina na natureza, algo que é um processo pela eternidade, para adequar a criação ao atributo maior do Criador, que é a bondade (tornar tudo regrado pelo bem comum, ampliando o bem a cada momento).
O ideal da parusia, do Reino dos Céus, é baseado na autodeterminação (na libertação), no autogoverno pessoal e social, na autonomia, na autogestão pessoal e social, participativa, com planificação participativa, com comunhão. Este é, também, nosso ideal político, jurídico, econômico e pedagógico: o máximo de autonomia pessoal e social, liberdade, autogestão, com planificação participativa, com comunhão.
Nos termos de Dom Hélder, o ideal cristão é um ideal do máximo de personalização com o máximo de socialização, numa boa síntese que retrata a plenitude da natureza pessoal e social do ser humano.
Clodovis Boff constatou também que a parte boa (o trigo) das idéias de Rousseau tem origem no jusnaturalismo, da Paidéia e do pensamento judaico-cristão. O jusnaturalismo ensina que o consenso racional e consciente (participação), em torno do bem comum, é a base natural e racional da legitimidade do poder. Esta parte boa das idéias de Rousseau já estava presente, em germe, nas cidades (nos ordenamentos jurídicos positivos) gregas e antigas (inclusive hebraicas), tal como nos parlamentos, cidades, universidades, ordens e congregações europeus. Exemplos disso são as estruturas das cidades-estados da Itália, a estrutura da Suiça, a Carta Magna de 1215, o parlamento da Islândia etc.
Em cada cidade e vila medieval, repetindo a estrutura das cidades da Paidéia e dos hebreus, existia um concelho (conselho, “soviet” em russo…rs), um “conventus publicus vicinorum” (“convento público de vizinhos”). A expressão revela a relação entre o governo democrático das ordens e congregações religiosas e das cidades e vilas. Afinal, o movimento das comunas, dos mosteiros, conventos, ordens mendicantes e universidades forma, no fundo, uma só corrente de idéias, florescendo na esfera temporal e na eclesiástica.
Frei Clodovis Boff, neste mesmo texto, sobre “Fé cristã e democracia”, expôs, sucintamente, o núcleo da concepção cristã do poder: o poder deve ser um “serviço”, como ensinou textualmente o próprio Cristo (mais adiante há um capítulo específico sobre este ponto). Assim, Boff concluiu que, no ditado popular “vox populi, vox Dei”, há “uma verdade democrática, que a teologia deveria ser capaz de resgatar”. A expressão “ideal escatológico” significa a meta ideal que devemos realizar aqui na terra, para unir o Céu e a terra, num “novo mundo”, ou seja, parte essencial do ideal ético e humanista do cristianismo.
A Bíblia, no “Apocalipse” (cap. 22), ensina textualmente: “eles reinarão para todo o sempre”, iguais a anjos e filhos de Deus. A meta humana é ser como os anjos, mas com corpos e num universo renovado, humanizado.
Em outros termos, seremos seres humanos com corpos novos, com luz, espiritualizados, mais rápidos, não passíveis de morte, de sofrimento e imortais, num Universo melhor, em curso, sempre trabalhando, operando, agindo, se movendo. Há um bom texto de Trotski, sobre o “homem novo”, que segue passo a passo os textos de Santo Tomás de Aquino sobre o corpo glorioso, renovado.
A meta (finalidade) humana é a divinização (por adoção), tornando cada pessoa um filho de Deus, com participação no Poder divino.
A imagem de Deus em nós deve ser ampliada e destacada, num processo eterno, dado que a bondade e o poder de Deus estão sempre além de tudo o que possamos imaginar (cf. Rm 8,29; II Ped 1,4; Col 2,10; e II Cor 3,18). O Amor transformador de Deus, o Espírito Santo, opera sempre e nunca se pode exaurir esta Fonte de santidade, de alegria, de vida.
Em outros termos, a meta humana é a imortalidade, a liberdade, uma inteligência em ascensão contínua, eterna, ampliando sempre o amor apaixonado pelo Amor.
Os textos bíblicos são claros: “Apocalipse”, Isaías, Daniel, cartas de São Pedro e outros. No “Apocalipse”, há os textos de Ap 5,10; 20,4; 20,6; 22,5. No Antigo Testamento, especificamente o texto de “Daniel” (7, 18 e 27). No livro do “Apocalipse” (5,10), este ideal futuro fica mais explícito: “Tu os constituíste reino e sacerdotes para o nosso Deus e eles reinarão sobre a terra”. Há a mesma idéia em Ap 20,4: “serão sacerdotes de Deus e de Cristo, e reinarão com Ele”. Deus, que se autodefiniu como “Amor”, é essencialmente libertador, busca aliados livres, “filhos”, e não escravos ou seres reificados.
Deus liberta a pessoa e dá plenitude ao universo, a cada momento, pela eternidade. O poder divino é libertador. A natureza divina é essencialmente democrática, está aberta à união com as pessoas, mantendo e melhorando a natureza humana, sem nunca anular a subjetividade e a liberdade, ao contrário, elevando-as. Num parêntese, isso fica claro na diferença entre a possessão diabólica (que escraviza o corpo) com o êxtase, que é um diálogo afetuoso.
Da mesma forma, Deus une as pessoas numa comunhão social (comunhão mística) que respeita a subjetividade e individualidade de cada membro. Uma união onde se um membro sofre, todos sofrem; se um membro se alegra, todos se alegram.
O Poder divino, o maior poder do universo, é bondoso, acata e realiza a liberdade humana e pauta-se pela razão (regras inteligentes, racionais e supra-racionaisais), visando o bem de todos. Trata-se, assim, de um poder democrático, exemplo para os poderes públicos.
O Plano ou “Reino divino” deve ser o espelho para a organização de uma sociedade (comunhão) plena, que assegure a liberdade e a igualdade para todos.
Nas palavras de Paulo VI, na “Populorum progressio” (n. 47, de 26.03.1967), a profecia (a atividade racional e supra-racional de previsão e interpretação, ligada à esperança) e o ideal da parusia implicam no dever ético de “construir um mundo em que” todas as pessoas “possam viver uma vida plenamente humana, livre de servidões… em que a liberdade não seja uma palavra vã”, um mundo onde as pessoas sejam “artífices dos seus destinos” (n. 65, da “Populorum”).
Tal como devemos melhorar nosso ser e nossa vida pessoal, assim temos o mesmo dever em relação à vida social. Este é o espírito da ascese, da purificação, da catarse (do grego “kátharsis”, “purificação”). Este é o ideal de controle da pessoa sobre a vida pessoal e do controle da sociedade sobre a vida social. Este ideal está na Bíblia e também na Paidéia (em Pitágoras, Empédocles e em outros filósofos, como destacou bem Rodolfo Mondolfo e outros autores). O processo de catarse visa aprimorar a espiritualidade (santificação), fazer com que a razão tenha controle sobre as paixões e a vida, visa o autocontrole, o autodomínio pessoal e social. Não significa menos emoção ou menos prazer, e sim mais emoção e prazer, pois as coisas regradas de forma inteligente são sempre melhores.
O ideal bíblico é um ideal de democracia plena, de comunhão baseada no diálogo, no bem comum, nos direitos humanos. O ideal religioso e racional exige que todos “reinem”, que todos governem a si mesmos.
A ascese é uma forma natural (usada bastante no meio esportivo e cultural) de obter o autodomínio, o auto-controle, a ordenação da pessoa para um bom convívio social, especialmente por “freqüentes exames de si mesmo”, cf. documento da Sagrada Congregação dos Seminários para os bispos brasileiros. A CONSTRIÇÃO é o meio GERAL, NORMAL E NATURAL de AUTO-CURA, PURIFICAÇÃO, MELHORIA. Ir num Padre e confessar-se é ÓTIMO, mas mesmo quem não faz isso, volta a Graça, se há arrependimento, consciência e propósito para melhorar a vida, a si mesmo.
Há os mesmos conselhos nos livros de Michel Quoist, Thiamer Toth, na “Mediator Dei” de Pio XII e outros documentos. São Paulo e os estóicos já relacionavam a ascese com o trabalho dos ginastas, corredores e o mesmo vale para os estudiosos.
As regras da teologia moral, como “corrigere phantasiam” (“corrige a fantasia, a imaginação”) aplicam-se também à teologia política. Como ensinou Pio XII, na “Mediator Dei” (20.11.1947), “os exercícios espirituais de Santo Inácio” devem ser “um dos meios” para “a regeneração e a reconstrução do mundo”, para organizar tudo em prol do bem comum.
A teologia moral e a teologia mística coincidem com o ideal da teologia política: as pessoas devem reger a própria vida, usando a razão (aperfeiçoada pela graça), tal como devem controlar o universo (as coisas, os bens) e a sociedade (cf. Gn 1,26-28), para o bem comum (o florescimento da personalidade de cada pessoa). Este controle é feito pela razão pessoal e social, pela participação, pelo diálogo, pela concórdia, a cooperação humana, pautada pelo amor, pelo ideal do bem comum.
A alquimia, como demonstrou Jung, no livro “Psicologia e alquimia” (1944), tal como no livro “Paracelso” (1942), desenvolveu-se à luz da teoria humanista dos hebreus (vide tradição sobre Maria, a Judia, e seus fornos) e da Igreja: a alquimia ensinava que as pessoas são como pedras ou minérios, devem ser refinadas, depuradas, melhoradas, aperfeiçoadas, pela educação, pelos costumes, as leis e as boas estruturas sociais e estatais (há a mesma base no sufismo, com raízes cristãs), para que tudo fosse pautado pelo diálogo e pelas exigências do bem comum. Os sábios da alquimia eram respeitados pela Igreja. Os hebreus têm a honra de terem uma alquimista, chamada Maria, que teria fabricado fogões e fornos que influenciaram a química. Os árabes têm Geber, do século VIII, que Roger Bacon considerava como “mestre dos mestres”. Geber também era respeitado e citado por Avicena.
O sábio alquimista, para ver claro, teria que purificar-se, pautar sua vida pelas regras (obrigações) do bem comum, aplicando-se esta mesma regra a todos. De fato, nossa percepção aumenta na medida em que ouvimos com atenção e cuidado nossa consciência. Crescemos em consciência, em percepção, em sabedoria (em santidade) na medida em que abrimos nossa consciência aos clamores dos oprimidos, dos injustiçados, na medida em que cuidamos do próximo (como destacou Leonardo Boff).
Conclusão: o “ideal escatológico” ensina que, nas esferas celestes, no universo humanizado e todo cheio de Amor (da Presença de Deus, o Espírito plenificará a criação, vivificando-a, cf. “Dominum et Vivificantem”, encíclica de João Paulo II, de 18.05.1986)). No universo, este mesmo universo que é criação regida por Deus, renovado, melhorado, “reinaremos”, “como anjos”, co-governaremos o universo com Deus, sempre MELHORANDO, sempre lutando, em “agonia”, em Paixão, Cruz, superando limites, obstáculos, pois o Bem cresce na superação do mal (ausência do bem).
O “Trono” de Deus é o “Céu”, que está aberto, em curso. O Coração de Deus busca Filhos ATIVOS, AUTONOMOS, que agem livremente, como TRABALHADORES ASSOCIADOS E AUTÔNOMOS na SEARA, trabalhando na Cooperativa do Universo.
O Reino é uma República, uma Democracia Viva, um Palácio do Povo, um trono aberto, um Poder aberto, a cada pessoa e também à união com a criação inteira. A parusia é a plenitude da união do Céu com a terra, do Criador com a criação, criação que ficará plenamente empapada pelo Amor, passando a desenvolver-se pela luz da consciência, com o controle consciente do povo sobre a história, sobre si mesmo e o universo, ação eterna.