A frase dita na oração “Pai Nosso”, “venha a nós o Vosso Reino” é uma frase DEMOCRÁTICA, Socialista. A concepção bíblica do povo de Deus como um “povo de reis” é uma concepção democrática e igualitária.
Fomos criados para o co-governo do Universo, para o co-julgamento, co-redenção, co-regeneração eterna, para vivermos, para sempre, em processo de eterno ressurreição, num processo de melhoria eterno, unidos a Deus e a Comunhão de pessoas boas.
Frei Clodovis Boff, num capítulo do livro organizado por Fábio Régio Bento, “Cristianismo, humanismo e democracia“ (São Paulo, Ed. Paulus, 2005, pp. 96-97), resumiu as idéias cristãs sobre o poder e a política, baseadas no “Plano” de Deus.
As linhas gerais do “Reino de Deus”, da “civilização do amor”, são as linhas do bem comum, da comunhão e da participação. As linhas gerais de um Socialismo eterno, uma Dialética eterna, de melhoria, de luta, de esforço, de agonia e regeneração eterna.
O “Reino de Deus” é meta final, SEM FINAL, pois é ETERNA, do universo, é a realização GRADUAL do bem comum.
Em outras palavras, é a realização em plenitude da natureza em geral e da natureza humana, em especial (o bem é a realização da natureza, cf. o conceito clássico e tradiconal da Igreja).
Hoje, e no fundo sempre, eternamente, temos apenas “o germe e o início” (cf. “Lumen gentium”, n. 9), uma construção em curso, que continuará pela eternidade, sempre tendo em vista um bem maior e mais universal.
Ao nascermos, já estamos imersos na graça, na regeneração eterna, no processo eterno de união e diálogo amoroso com Deus, num processo de criação e ressurreição eterna, bem descrito por Bergson, Teilhard, Alceu e outros.
Parusia procedimental, processual, eterna.
Sobre o “Reino” na história, há, próximo das idéias cooperativistas e democráticas da Igreja, a concepção de Antônio Sérgio (1883-1969), que ensinava que a democracia socialista cooperativa seria a pré-figuração do Reino.
Antônio Sérgio foi um grande cooperativista, defendendo uma síntese de socratismo com cristianismo. Esposava um humanismo idealista, de forte veio ético, profundamente católico.
A regra da centralidade do bem comum, de cada pessoa, é a regra maior da democracia.
Esta regra também faz parte intrínseca da concepção do padre Yves Maria Congar, em obras como “Os leigos na Igreja” (São Paulo, Ed. Herder, 1966) e “A hierarquia como serviço, segundo o Novo Testamento e os documentos da Tradição”.
O padre e dominicano Congar foi um dos principais luminares do Concílio Vaticano II, especialmente no ponto sobre a concepção da Igreja como “Povo de Deus”, uma concepção democrática e republicana.
As idéias de Clodovis, Suenens, John Courtney Murray e de Congar são boas exposições das linhas gerais da concepção cristã sobre a distribuição (universalização) dos bens e do poder entre o povo, especialmente do “poder”, que é também uma espécie de “bem”:
“É interessante notar como no Novo Testamento, especialmente no Apocalipse, o sonho mais alto da democracia, ou seja, a soberania universal efetiva, como governo de tudo por todos, representa um ideal escatológico.
A idéia bíblica de um “povo de reis” (Ex 19, 6; Dn 7, 13.22-27; 1Pd 2,9; Ap 1,6; 5,6) corresponde ao ideal da “soberania popular” de Rousseau, (…).
O último capítulo da Bíblia resume assim a plenitude da história: “E eles reinarão pelos séculos dos séculos” (Ap 22,5). Sobre quem? Sobre ninguém. Quem sabe sobre o cosmos. Mas talvez a idéia assintótica de uma “realeza universal” simbolize, em seu paradoxo mesmo, a reconciliação cósmico-escatológica.”
Deus, no livro de “Êxodo” (19,5-6): “se prestardes realmente atenção à Minha Voz, e mantiverdes a Minha Aliança”, “sereis para Mim um reino de sacerdotes, uma nação sagrada”, boa, uma nação de reis e rainhas, que se autodeterminam, que se autogovernam, pela via do diálogo.
A oitiva da “voz” de Deus ecoa (ressoa, expressa-se) pela voz da consciência e seguir a própria consciência é autodeterminar-se, é ser livre, é ver, em si, o processo de libertação, que se prolonga eternamente.
Em outras palavras, o ideal da parusia (do grego “Parousía”, presença salvífica, redentora) e do Céu é a “soberania universal efetiva” das pessoas (da sociedade), a total desalienação, a plenitude da vida, a humanização do universo, a renovação de tudo, com a participação ativa humana (vide, neste ponto, o papel de Maria, dos santos e do próprio Cristo, que é uma pessoa humana e também divina).
O progresso humano é uma espiral no sentido da fusão entre o Céu e o universo, do aumento da Presença (“Shikanah”) de Deus nas consciências e em tudo. “Este mundo” é “a antecâmara do Palácio” (cf. “Mishná”, do livro “Avot”, 4,21), do Reino, preparado para todos, numa construção conjunta, participativa, sem fim.
Nas palavras de São Paulo, da “Carta aos Romanos” (8,21): “toda criatura será libertada da corrupção para participar na liberdade da glória dos filhos de Deus”.
O ideal de libertação e de justiça social deve ser concretizado, o máximo possível, desde já, na história, na medida do que pudermos (por graus, por degraus na “escada de Jacob”), pois a história é formada de degraus do processo ascensional-evolutivo, descrito por Vico, um grande católico. Também por Hegel, em seus melhores textos, que o velho Marx amava.
Degraus, na forma heliocoidal, como a escada vista por Jacob, sendo esta idéia adotada por Goethe e Engels, para designar o processo evolutivo do universo.
O ideal de bem comum foi resumido pelo profeta Miquéias, no livro “Miquéias” (6,8): “Ele te declaro, ó homem, o que é bom; e que é o que o Senhor pede de ti”, “que pratiques a justiça e ames a misericórdia [a bondade, a benignidade]”.
O ideal bíblico de democracia plena (participativa, não-capitalista, social, popular, comunitária, cooperativa etc), uma das bases do Projeto de Deus, consta no bojo da expressão “povo de reis”: na parusia (nosso ideal, meta e exemplo, a estrutura da “cidade celeste”, que irá informar e fundir-se com a cidade temporal) as pessoas reinarão (controlarão) sobre si mesmas, controlando, como bons cultivadores, a natureza (o universo) e as próprias vidas.
Como ensinou Saadia Gaon (882-942), o filósofo judaico de maior autoridade abaixo de Maimônides, “o valor de cada pessoa e seu destino são preciosos para Ele”, para Deus. Saadia viveu na Babilônia e escreveu o livro “Livro de crenças e opiniões”, explicando o duplo caminho da verdade: a razão e a revelação, demolindo os erros dos caraítas (precursores do fundamentalismo, do integrismo).
A parusia significa o processo da reconciliação entre o Céu e a terra, a reconciliação de Prometeu, como explicou Roberto Lyra Filho, um dos maiores juristas, que deixou textos sobre teologia da libertação.
O Céu é o contrário do inferno (negação da natureza, isolamento, ódio ao próximo, ao outro).
Trata-se, assim, da plenitude (da perfeição, da bondade, o aperfeiçoamento pela eternidade) da vida humana, da glorificação da criação, da obra do Criador. Por esta razão, Roberto Lyra Filho usou o título de “A reconciliação de Prometeu” para seu ensaio de teologia da libertação com direito alternativo. Em outros termos, o Céu é a libertação, a perfeição do ser humano e do universo, a ordenação racional da criação para o bem comum. A ampliação da presença divina na natureza, algo que é um processo pela eternidade, para adequar a criação ao atributo maior do Criador, que é a bondade (tornar tudo regrado pelo bem comum, ampliando o bem a cada momento).
O ideal da parusia, do Reino dos Céus, é baseado na autodeterminação (na libertação), no autogoverno pessoal e social, na autonomia, na autogestão pessoal e social, participativa, com planificação participativa, com comunhão.
Este é, também, nosso ideal político, jurídico, econômico e pedagógico: o máximo de autonomia pessoal e social, liberdade, autogestão, com planificação participativa, com comunhão. Nos termos de Dom Hélder, é um ideal do máximo de personalização com o máximo de socialização, numa boa síntese que retrata a plenitude da natureza pessoal e social do ser humano.
Clodovis Boff constatou também que a parte boa (o trigo) das idéias de Rousseau tem origem no jusnaturalismo, da Paidéia e do pensamento judaico-cristão.
O jusnaturalismo ensina que o consenso racional e consciente (participação), em torno do bem comum, é a base natural e racional da legitimidade do poder. Esta parte boa das idéias de Rousseau já estava presente, em germe, nas cidades (nos ordenamentos jurídicos positivos) gregas e antigas (inclusive hebraicas), tal como nos parlamentos, cidades, universidades, ordens e congregações europeus. Exemplos disso são as estruturas das cidades-estados da Itália, a estrutura da Suiça, a Carta Magna de 1215, o parlamento da Islândia etc.
Em cada cidade e vila medieval existia um concelho, um “conventus publicus vicinorum” (“convento público de vizinhos”).
A expressão revela a relação entre o governo democrático das ordens e congregações religiosas e das cidades e vilas. Afinal, o movimento das comunas, dos mosteiros, conventos, ordens mendicantes e universidades forma, no fundo, uma só corrente de idéias, florescendo na esfera temporal e na eclesiástica.
Frei Clodovis Boff, neste mesmo texto, sobre “Fé cristã e democracia”, expôs, sucintamente, o núcleo da concepção cristã do poder: o poder deve ser um “serviço”, como ensinou textualmente o próprio Cristo (mais adiante há um capítulo específico sobre este ponto).
Assim, Boff concluiu que, no ditado popular “vox populi, vox Dei”, há “uma verdade democrática, que a teologia deveria ser capaz de resgatar”. A expressão “ideal escatológico” significa a meta ideal que devemos realizar aqui na terra, para unir o Céu e a terra, num “novo mundo”, um processo eterno de melhoria do universo e do próprio Deus, pois Deus também melhora, com o tempo. Esta é a base essencial do ideal ético e humanista do cristianismo.
A Bíblia, no “Apocalipse” (cap. 22), ensina textualmente: “eles reinarão para todo o sempre”, iguais a anjos e filhos de Deus.
A meta humana é ser como os anjos, mas com corpos e num universo renovado, humanizado. Em outros termos, seremos seres humanos com corpos novos, com luz, espiritualizados, mais rápidos, não passíveis de morte, de sofrimento e imortais. Há um bom texto de Trotski, sobre o “homem novo”, que segue passo a passo os textos de Santo Tomás de Aquino sobre o corpo glorioso, renovado.
A meta (finalidade) humana é a divinização (por adoção), tornando cada pessoa um filho de Deus, com participação no Poder divino. A imagem de Deus em nós deve ser ampliada e destacada, num processo eterno, dado que a bondade e o poder de Deus estão sempre além de tudo o que possamos imaginar (cf. Rm 8,29; II Ped 1,4; Col 2,10; e II Cor 3,18).
O Amor transformador de Deus, o Espírito Santo, opera sempre e nunca se pode exaurir esta Fonte de santidade, de alegria, de vida.
Em outros termos, a meta humana é a imortalidade, a liberdade, uma inteligência em ascensão contínua, eterna, ampliando sempre o amor apaixonado pelo Amor. Os textos bíblicos são claros: “Apocalipse”, Isaías, Daniel, cartas de São Pedro e outros. No “Apocalipse”, há os textos de Ap 5,10; 20,4; 20,6; 22,5.
No Antigo Testamento, especificamente o texto de “Daniel” (7, 18 e 27). Em Ap 5,10, este ideal futuro fica mais explícito: “Tu os constituíste reino e sacerdotes para o nosso Deus e eles reinarão sobre a terra”. Há a mesma idéia em Ap 20,4: “serão sacerdotes de Deus e de Cristo, e reinarão com Ele”. Deus, que se autodefiniu como “Amor”, é essencialmente libertador, busca aliados livres, “filhos”, e não escravos ou seres reificados.
Deus liberta a pessoa e dá plenitude ao universo. O poder divino é libertador.
A natureza divina é essencialmente democrática, está aberta à união com as pessoas, mantendo e melhorando a natureza humana, sem nunca anular a subjetividade e a liberdade, ao contrário, elevando-as. Num parêntese, isso fica claro na diferença entre a possessão diabólica (que escraviza o corpo) com o êxtase, que é um diálogo afetuoso.
Da mesma forma, Deus une as pessoas numa comunhão social (comunhão mística) que respeita a subjetividade e individualidade de cada membro. Uma união onde se um membro sofre, todos sofrem; se um membro se alegra, todos se alegram.
O Poder divino, o maior poder do universo, é bondoso, acata e realiza a liberdade humana e pauta-se pela razão (regras inteligentes, racionais e supra-racionaisais), visando o bem de todos. Trata-se, assim, de um poder democrático, exemplo para os poderes públicos.
Deus é a Democracia Viva, a Alegria Viva, o Amor vivo, o máximo de Emoção, de “loucura” no melhor sentido, de Luta, de Paixão, de Razão, de Vida. É Fogo, Amor, é Criança, é Ação viva, é Criação eterna, Regeneração eterna.
O bom Deus nos criou para se unir a cada pessoa, convivendo conosco, compartilhando nossa Vida, nossos Amores, nossas dores, nossas ideias, sonhos etc.
O Plano ou “Reino divino” deve ser o espelho para a organização de uma sociedade (comunhão) plena, que assegure a liberdade e a igualdade para todos. Nas palavras de Paulo VI, na “Populorum progressio” (n. 47, de 26.03.1967), a profecia (a atividade racional e supra-racional de previsão e interpretação, ligada à esperança) e o ideal da parusia implicam no dever ético de “construir um mundo em que” todas as pessoas “possam viver uma vida plenamente humana, livre de servidões… em que a liberdade não seja uma palavra vã”, um mundo onde as pessoas sejam “artífices dos seus destinos” (n. 65, da “Populorum”).
Tal como devemos melhorar nosso ser e nossa vida pessoal, assim temos o mesmo dever em relação à vida social. Este é o espírito da ascese, da purificação, da catarse (do grego “kátharsis”, “purificação”). Este é o ideal de controle da pessoa sobre a vida pessoal e do controle da sociedade sobre a vida social.
Este ideal está na Bíblia e também na Paidéia (em Pitágoras, Empédocles e em outros filósofos, como destacou bem Rodolfo Mondolfo e outros autores).
O processo de catarse visa aprimorar a espiritualidade (santificação), fazer com que a razão tenha controle sobre as paixões e a vida, visa o autocontrole, o autodomínio pessoal e social.
O ideal bíblico é um ideal de democracia plena, de comunhão baseada no diálogo, no bem comum, nos direitos humanos. O ideal religioso e racional exige que todos “reinem”, que todos governem a si mesmos.
A ascese é uma forma de obter o autodomínio, o auto-controle, a ordenação da pessoa para um bom convívio social, especialmente por “freqüentes exames de si mesmo”, cf. documento da Sagrada Congregação dos Seminários para os bispos brasileiros (há os mesmos conselhos nos livros de Michel Quoist, Thiamer Toth, na “Mediator Dei” de Pio XII e outros documentos).
As regras da teologia moral, como “corrigere phantasiam” (“corrige a fantasia, a imaginação”) aplicam-se também à teologia política. Como ensinou Pio XII, na “Mediator Dei” (20.11.1947), “os exercícios espirituais de Santo Inácio” devem ser “um dos meios” para “a regeneração e a reconstrução do mundo”.
A teologia moral e mística coincidem com o ideal da teologia política: as pessoas devem reger a própria vida, usando a razão (aperfeiçoada pela graça), tal como devem controlar o universo (as coisas, os bens) e a sociedade (cf. Gn 1,26-28), para o bem comum (o florescimento da personalidade de cada pessoa).
Este controle é feito pela razão pessoal e social, pela participação, pelo diálogo, pela concórdia, a cooperação humana, pautada pelo amor, pelo ideal do bem comum.
A alquimia, como demonstrou Jung, desenvolveu-se à luz da teoria humanista da Igreja: a alquimia ensinava que as pessoas são como pedras ou minérios, devem ser refinadas, depuradas, melhoradas, aperfeiçoadas, pela educação, pelos costumes, as leis e as boas estruturas sociais e estatais (há a mesma base no sufismo, com raízes cristãs), para que tudo fosse pautado pelo diálogo e pelas exigências do bem comum.
O sábio alquimista, para ver claro, teria que purificar-se, pautar sua vida pelas regras (obrigações) do bem comum, aplicando-se esta mesma regra a todos. De fato, nossa percepção aumenta na medida em que ouvimos com atenção e cuidado nossa consciência, na medida em que abrimos nossa consciência aos clamores dos oprimidos, dos injustiçados, na medida em que cuidamos do próximo (como destacou Leonardo Boff).
Conclusão: o “ideal escatológico” ensina que, nas esferas celestes, no universo humanizado e todo cheio de Amor (da Presença de Deus, o Espírito plenificará a criação, vivificando-a, cf. “Dominum et Vivificantem”, encíclica de João Paulo II, de 18.05.1986).
No universo, este universo, renovado, melhorado, num movimento eterno de evolução, de melhoria, de luta, reinaremos (no fundo, co-criadores, co-redentores, co-gestores, administradores, pastores, cultivadores, guardiões etc) “como anjos”, co-governaremos o universo com Deus.
O “Trono” de Deus é o “Céu”, um trono aberto, um Coração apaixonado por cada pessoa, um Poder aberto, a cada pessoa e também à união com a criação inteira.
A parusia é o processo de união do Céu com a terra, do Criador com a criação, criação que ficará plenamente empapada pelo Amor.