Dirigir-se pela própria consciência é a quintessência do jusnaturalismo democrático da doutrina da Igreja.
A expressão “lei natural” é uma imagem, um elogio da razão, do poder da razão natural, da inteligência humana, da sabedoria do povo.
No prisma subjetivo, lei natural é o poder criador da inteligência; no prisma objetivo, é o patrimônio cultural acumulado, o conjunto de idéias práticas, de preceitos, de regras racionais do bem comum, de ciência, conhecimento acumulado.
Agir eticamente é agir de acordo com nossa natureza racional e com a natureza em geral, ou seja, como já ensinavam Aristóteles e os estóicos, é agir racionalmente.
A própria fé e a graça são ajudas para que possamos agir racionalmente, pois a graça supõe, exige, a natureza (“gratia supponit naturam”), aperfeiçoando-a, mantendo tudo o que temos de bom e positivo, especialmente as luzes naturais da razão (mas também fortalece a vontade e melhora os afetos, as paixões, afina e aumenta mesmo o prazer, coisa criada por Deus).
A ação racional é a ação pessoal e social pautada pelo bem.
O bem é a perfeição do ser, da natureza. A ética cristã é a ética do bem, da realização do ser humano, da vida digna, plena, abundante e feliz.
Afinal de contas, como ensinou São Irineu de Lyon, “a glória de Deus é o homem vivo” (“gloria Dei, vivens homo”, cf. “Contra as heresias”, IV, 20) e “o que não é assumido não pode ser salvo” (cf. “Contra heresias”, V, 14,1). A centralidade da vida é a centralidade do bem comum.
Maquiavel, como bom católico, estava certo ao estudar o “principado” (o poder) e Estado à luz da razão e da experiência, como algo natural, na linha de Tucídides, de Aristóteles e vários escritores pagãos e da Igreja.
O erro de Maquiavel, no que não agiu como católico, foi o erro do liberalismo (no tocante à economia), ter estudado o Estado sem um julgamento ético. Ter defendido um Estado, uma vida política, uma vida pública, ao arrepio da ética, do bem do povo, com o pretexto da “razão de Estado”.
No entanto, o Estado também está sujeito à ética, às regras racionais do bem comum, que são as exigências, aspirações e necessidades humanas.
Isso não quer dizer “moralismo”, pois o Estado deve ser tolerante e não deve exigir certas condutas que a ética exige da pessoa concreta, mas, no fundo, é a mesma ética que rege a vida pessoal e social.
O Estado e a sociedade devem estar sujeitos às regras racionais e sociais exigidas pelo bem comum. Num parêntese, Maquiavel queria um Estado nacional para unir a Itália e este nacionalismo era saudável, não implica em teses imorais, e sim numa tese ética, de autonomia da nação. Esta parte dos textos de Maquiavel é também cristã e ele morreu como católico. No fundo, reproduzia a tese-projeto de Dante de Alighieri, autor que Marx apreciava.
Da mesma forma, o erro de Calvino e de Lutero foi de ter separado a religião da ética e da filosofia. No entanto, os melhores textos de Lutero sobre o Estado são textos jusnaturalistas, como será demonstrado em outras postagens.
O aristotelismo está bem claro nos textos de Filipe Melanchton (1497-1560), o maior dos teólogos luteranos. Melanchton foi vital para a publicação, no meio protestante, de autores clássicos como Aristóteles, Cícero, Quintiliano, Ovídio e Tucídides. Melanchton é a talvez o elo principal da pacificação entre católicos e luteranos. Outro elo é formado por Christian Scheibler (1589-1653), o “Suárez protestante”.
João de Calvino (1509-1564) também escreveu bons textos sobre a “luz natural da razão”, textos recolhidos no livro “John Calvin´s Teachings upon Human Reason” (New York, 1963), tal como no livro de André Biéler, “O pensamento econômico e social de Calvino” (São Paulo, Ed. Presbiteriana, 1990). Esta parte dos textos de Calvino é “católica”, em boa harmonia com o catolicismo de seus tempos de estudante católico.
A “Confissão de Fé de Westminster” foi elaborada na Assembléia de Westminster, em 1643. Foi adotada pelas principais igrejas presbiterianas. Esta “Confissão”, tal como as outras do cristianismo, também é jusnaturalista. A “Confissão de Westminster” ensina, na linha católica, que “a luz da natureza e os trabalhos da criação e da Providência manifestam a bondade, a sabedoria e a potência divina, o suficiente para não deixarem desculpas aos homens”.
A razão pode distinguir entre o bem e o mal, operando pela mediação da natureza. Neste ponto, a Confissão de Westminster é católica, segue a Tradição da Igreja. O erro, a meu ver, é a noção equivocada de predestinação, desprezando o papel ativo da pessoa, em cooperação com a graça, tal como o livre arbítrio (a liberdade humana), as boas obras e o esforço salvífico da razão, da filosofia. Deus nos chama à santificação, que é a autonomia, o máximo de uso da razão, da natureza humana, das paixões, dos afetos, da ciência, do trabalho humano.
Lutero redigiu textos horríveis sobre a razão, chamando-a de “meretriz do Diabo”, acusando-a de ser “cega como uma toupeira” e outras expressões malucas. Como será visto em outras postagens, o anglicanismo, um semi-catolicismo, manteve a linha racional do catolicismo e do judaísmo. O metodismo e o arminianismo, tal como as Igrejas ortodoxas, também são semi-católicas.
O catolicismo e o judaísmo têm em comum o fato de valorizarem o livre arbítrio e a razão, como provam os textos de Maimônides, de Levi bem Gerson (1288-1344, em “As guerras do Senhor”), de Santo Alberto Magno e de Santo Tomás de Aquino.
Este apreço à razão pelo anglicanismo, o judaísmo e o catolicismo (basta considerar os textos de Pico della Mirandola, o humanismo renascentista etc) foi vital no desenvolvimento da democracia, como causas teóricas, junto com as mudanças dos meios de produção, da economia etc.
A ética é o “caminho da vida”, são regras práticas para proteção e aumento da vida e vida digna.
A doutrina dos dois caminhos está clara em Mt 7,13-14, tal como em Lc 13,24;Dt 30,15;Eclo 21,10; Jo 10,9-10 ; Mt 22,14; Rm 12,16-21; Rm 13,8-12; e Mt 5,14-18 (e 7,12-14; 19,16-26; e 22,34-40). Foi bem desenvolvida na “Didaque”, 1-6; e na “Carta” do Pseudo-Barnabé, obras dos séculos I e II d.C..
O caminho da vida é o caminho da verdade (da ciência, do diálogo, da cultura) e do bem comum, como foi destacado na obra “O Pastor”, de Santo Hermas, bispo na Macedônia, que teria sido mencionado por São Paulo, na “Carta aos Romanos”, tal como por Santo Irineu, Clemente de Alexandria e Orígenes.
O caminho da vida é a via da “luz”, das “boas obras”, das virtudes, da “razão”. Cristo é o “Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14,6), é o “Logos”, ou seja, seguimos Cristo ao seguir (caminhar) pelas regras da verdade (das idéias racionais, verdadeiras, práticas, reais, correlatas com o bem, por isso, das idéias ou regras do bem) e este é o “caminho” da Vida, da vida plena, para todos.
Os textos bíblicos relacionam bem a “piedade” com a “caridade” e a “justiça”. A piedade ou religiosidade é a pessoa justa e caridade, que atende às necessidades vitais do próximo (cf. Mt 25). Que não faz isso é hipócrita, é falso. O termo “esmola” vem do grego “eleemosune”, de “piedoso”, “caridoso”, “justo”, tendo sempre referência ao bem comum, aos necessitados.
No “Catecismo da Igreja”, há a frase “a vida moral é um culto espiritual” (cf. Rm 12,1; Fl 3,3; e “Veritatis splendor”, 107). Este ponto foi bem exposto na “Gaudium et Spes” (7,446), do seguinte modo: “o bem comum compreende o conjunto daquelas condições de vida social, que permitam aos homens, às famílias e às sociedades possam conseguir mais fácil e desembaraçadamente a própria perfeição” (realização, plenitude, felicidade, vida plena). As exigências do “Reino de Deus” são as exigências racionais do bem de todos, do bem comum.
O poder civil tem como “fim próprio” o de “velar pelo bem comum” (cf. DH, 3), sendo esta finalidade (os marcos e exigências do bem comum) o limite do poder e também seu fundamento racional.
Os bispos e o Papa, na “Gaudium et spes” (n. 74,446) concluíram corretamente que “a comunidade política [o Estado, a organização da sociedade] existe por causa” do “bem comum: nele obtém sua plena justificação [fundamento, legitimidade] e sentido, de onde deriva o seu direito primordial e próprio” de auto-reger-se, de autodeterminar-se. A finalidade da sociedade e do Estado fundamenta, assim, o dever e o direito de participar na vida pública.
Na “Gaudium” (n. 75), está bem dito: “todos os cristãos [e pessoas] estão obrigados, por consciência, a desenvolver em si o senso de responsabilidade [de participação] e do devotamento ao bem comum”, sendo esta a fórmula para “harmonizar a autoridade com a liberdade, a iniciativa pessoal com a solidariedade” (um grande Estado social e econômico, estatais, com liberdade econômica para todos, pequenos empreendimentos, micros, autonomia na economia, com mecanismos de co-gestão, cooperativismo, difusão de bens, circuitos virtuosos etc).
No caso da pessoa e da sociedade, o bem é a ação racional, a ação própria do ser humano, a ação humana por excelência, que nos aperfeiçoa. Em outros termos, a regra da racionalidade e da autonomia da pessoa (logo, a autonomia da ética e da política, centradas no bem comum) está bem clara no melhores textos papais, dos Doutores da Igreja, nos Catecismos oficiais, nos melhores textos de teologia mística, moral e social.
O poder legítimo é o poder conforme à razão, à consciência, ao bem comum. A centralidade da ética na religião foi bem destacada por Santo Tomás, ao destacar que Deus é o Sumo Bem, o Poder pautado pela Inteligência e pelo bem comum.
O “caminho” de Deus (para o Céu, o Reino) é o caminho da ação conforme à razão, à lei natural, das ações racionais, AUTONOMAS, LIVRES, adequadas e exigidas pelo bem comum. Por isso, como ensinou Marciano Vidal, Santo Tomás, no prólogo da questão segunda da primeira parte da “Suma Teológica”, escreveu:
“Quando dizemos que o ser humano foi feito à imagem de Deus, entendemos por imagem, como disse o Damasceno, um ser dotado de inteligência, livre arbítrio e domínio de seus próprios atos. Por isso, depois de ter tratado do exemplar, de Deus, e de quanto produz o poder divino segundo Sua vontaade, resta-nos estudar Sua imagem, isto é, o ser humano, como princípio que é também de suas próprias ações por ter arbítrio e domínio de seus atos”.
O ser humano foi criado para a libertação. A graça e a fé ajudam a razão nesta tarefa, sem anularem a razão, que é aperfeiçoada e protegida. Como foi destacado na “Veritatis splendor” (n. 37), por João Paulo II, com base no Decreto tridentino sobre a Justificação, a “ordem ética” é a “ordem de salvação”, não há religião sem ética, ponto que Lèvinas também ressaltou. Nos termos de São Martinho de Braga (morto em 580), a “vida honesta” é o caminho para o Céu, para a participação no poder divino, como explica em seu livro “Honestae vitae”, baseado no tratado “Dos deveres”, de Sêneca; tal como Santo Ambrósio baseou-se no “Dos deveres”, de Cícero.
A regra “segue os ditames de sua própria consciência” é a regra maior da teologia moral, como foi ensinado por Santo Afonso de Ligório e antes deste patrono da teologia moral, por Santo Tomás de Aquino, por Santo Agostinho, Santo Ambrósio, São Basílio e pelos maiores Doutores e Santos da Igreja.
O núcleo da consciência, nossa principal faculdade, é a inteligência. Logo, agir racionalmente, de forma inteligente, é o coração da ética e também da comunhão (união, para que todos sejam “um”) mística com Deus e com o próximo.
O termo “nèpèsh” (“coração”), na Bíblia, significa “ser vivo”, “alma”, o equivalente a “psykhé” (palavra grega usada na Versão dos Setenta), “consciência”. A consciência é o “coração” do ser vivo, a sede da inteligência (“diánoia”), as “entranhas” da pessoa. A medicina da época, como pode ser visto em Galeno, considerava o “coração” como a sede da inteligência, o centro da pessoa.
Estes pontos foram expostos por Santo Tomás, mas também estão nos textos de teólogos e juristas como o beato Contardo Ferrini (“cf. “Manual das Pandetas”), Marciano Vidal (um de meus favoritos, com Enrique Dussel), Constantinus Van Gestel (“La doctrina social de la Iglesia”, 1961), Bernhard Haring (“A Lei de Cristo”), Johannes Messner (cf. “O direito natural”), Jacques Leclerc (“Curso de direito natural” e “Introdução à sociologia”), Arthur Utz O.P. (“Ética social”, 1960), Jean Villain, Heinrich Pesch (“Manual de economia nacional”, 1924), Calvez e Perrin (“A Igreja e a sociedade econômica”, 1960), Brucculeri, Mounier (1905-1950), Auer, Joseph Fuchs (cf. “Lex naturae”, 1955), Javier Hervada (“Compendio de Derecho Natural”, Ed. Eunsa, 1980) ou B. Schüller.
Há a mesma tese nos livros de Georges Goyau (1869-1939), Otto Schilling, Robert Linhardt, Pesch, Gundlach, Nell-Breuning, Van Gestel, Rutten, Böckle, K. Demmer, E. Hamel, J. N. Schasching ou Nolens. Obviamente, há a mesma lição em Maritain, Alceu e outros luminares da Igreja.
Para exemplificar, vale a pena lembrar de alguns livros de Goyau, que foi um grande historiador francês, presidente da organização dos publicistas católicos: “O Papa, os católicos e a questão social” (1895), “Em torno do catolicismo social” (1897-1912), “Alemanha religiosa 1800-1870” e “A Igreja em marcha” (1928-1936).
Seria possível citar outros milhares de textos para abonar estas afirmativas. Vejamos, por exemplo, textos de Santa Catarina de Sena (colhidos no livro “As cartas de Santa Catarina de Sena”, São Paulo, Ed. Paulus, 1997, pp. 102-111). Santa Catarina (1347-1380), uma das 33 Doutores da Igreja, enfatizava a importância da razão, do bem comum, das idéias e da cidadania:
“que a razão domine como senhora”; “o governante justo, na medida dos seus poderes e de suas obrigações, procura… o bem de todos (“Il bene universale d´ogni persona”)”; “se é governante, nela brilhará a pérola da justiça, pois agirá em conformidade com o direito”, [zelará pelos] interesses de toda a cidade”, [pelo] bem comum”; e “os florentinos querem homens de governo maduros, capacitados, não crianças. Agi desse modo. Procurai conservar os cidadãos na cidade”.
A consciência humana e social, principalmente mediante a razão (a inteligência humana), é a “legisladora natural”. Esta preposição (tese) fundamental do jusnaturalismo foi acatada e elogiada por Kant, em suas idéias jusnaturalistas, expressas na “Crítica à razão prática”, sua melhor obra, inspirada nos melhores textos de Rousseau.
O ideal de distribuir bens e poderes consta também no ideário e nos textos de Victor Hugo, que escreveu: “a consciência do homem é o pensamento de Deus”. Numa carta a Lamartine (1790-1869), em 24.06.1862, Victor Hugo também defende o ideal distributista: “universalizar a propriedade – o que é o contrário de aboli-la – suprimindo o parasitismo, significa conseguir esse ideal: todos os homens proprietários e nenhum homem patrão, eis para mim a verdadeira economia social e política”. O correto é abolir a miséria, difundir os bens, erradicar as grandes fortunas privadas, ter vasto patrimônio estatal-social, promover a IGUALDADE NATURAL.
A apologia da consciência está presente também em Balzac, “a nossa consciência é um juiz infalível, enquanto não a assassinamos” (cf. “A pele do Onagro”).
Num parêntese, a frase que ensina que o clero deve formar consciências significa que deve ajudar as consciências, atuar como ajudantes no movimento próprio da consciência de cada pessoa, como agem os bons educadores. Da mesma forma, Montaigne destacava que cada pessoa tem, em si, as leis e o tribunal, diante do qual comparecemos, para julgar nossos atos, corrigirmos nossa vida e dirigi-la ao Bem, ao bem geral. O Julgamento de Deus é feito por Deus, pela sociedade e por nós mesmos, numa Comunhão, tal como fomos feitos para seremos co-criadores do Universo, co-redentores, assim somos co-juízes.
A sociedade deve reger-se pela consciência das pessoas e isso explica racionalmente a regra que o Estado deve servir (estar vinculado, subordinado, pautado pelo bem comum) à sociedade (às pessoas). O direito natural, lei natural ou justiça geral (social, legal) significa “as exigências da natureza social do ser humano”, “as condições de desenvolvimento e saúde social de todas as pessoas” (cf. Jacques Leclercq, no livro “O fundamento do direito e a sociedade”).
Este ponto também foi frisado por Pio XI, num discurso ao Colégio de Cardeais (20.12.1926), onde o papa criticava as teorias autoritárias (fascistas) de Estado que surgiam na Itália: “essa noção de Estado… [do fascismo] é totalmente contrária à doutrina católica: o Estado como um fim último de si mesmo; a ordenação exclusiva do cidadão ao Estado; a orientação absoluta de tudo ao Estado; o Estado como resumo de tudo”. O Estado, na visão cristã e racional, é um servidor da sociedade, toda a estrutura estatal não passa, ontologicamente, de “serviço público”, serviço ao povo. Só assim o Estado torna-se bom, legítimo.
A consciência das pessoas (da sociedade), o DIÁLOGO (A DIALÉTICA VIVA) é a fonte imediata do direito legítimo e vivo, a fonte direta da soberania, pois é a sociedade que é soberana, e não o Estado (este tem o senhorio por participação, na medida em que representa as idéias e interesses da sociedade, das pessoas).
Esta proposição central do jusnaturalismo também justifica e exige o júri, a participação da população na prestação jurisdicional, tal como uma reforma do Judiciário, colocando-o (tal como o Banco Central e outras instituições) sob o controle popular, DO PODER POPULAR.