O conteúdo da consciência do povo deve ser a base normativa do Estado e a alma (consciência, centro diretor) de um sistema econômico baseado no PRIMADO DO TRABALHO HUMANO.
O Estado deve ser um ESTADO-SERVO, a explicitação das ideias, projetos, anseios, reivindicações, planos, imaginação e afetos do povo. Da mesma forma, as MÁQUINAS (BENS PRODUTIVOS) DEVEM SER SERVAS DOS TRABALHADORES.
Enrique Dussel definiu o povo como “o conjunto orgânico das classes, etnias e outros grupos oprimidos, como bloco social” (um bloco anti-monopolista), sendo “o sujeito histórico da cultura mais autêntica, a cultura popular latino-americana” (cf. consta em “Oito ensaios sobre cultura latino-americana e libertação”, São Paulo, Ed. Paulinas, 1997, p. 190).
O direito justo e legítimo é formado pelo núcleo das idéias deste bloco, que reflete as exigências objetivas do bem comum, que Rousseau chamava de “vontade geral”, podendo também ser chamado de “interesse geral”, “interesse comum”, “justiça geral”, “justiça social” ou “bem comum”.
Nélson Werneck Sodré, no livro “Quem é o povo no Brasil” (Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1963, p. 37), também ensinava:
“Povo, no Brasil, hoje, assim, é o conjunto que compreende o campesinato, o semiproletariado, o proletariado; a pequena burguesia e as partes da alta e da média burguesia que têm seus interesses confundidos com o interesse nacional e lutam por este”.
O erro foi tratar da “alta” burguesia, esta, infelizmente, é aliada do imperialismo.
Theotônio Júnior, no livro “Quais são os inimigos do povo” (Rio, Ed. Civilização Brasileira, 1962), tinha um entendimento mais preciso. Definia o povo como o conjunto dos assalariados, camponeses, pequenos proprietários, artesãos, estudantes e intelectuais.
Os inimigos do povo foram listados, pelos dois autores citados, que são geniais, como as multinacionais, os latifundiários, os açambarcadores (capital monopolista), especuladores, banqueiros e financistas, grandes industriais monopolistas e os intelectuais a soldo do capital.
Hoje, pela associação da alta burguesia com o imperialismo, não se deve contar com a alta burguesia.
De qualquer forma, é indiscutível que a pequena burguesia deve ser uma aliada importantíssima do proletariado, junto com o campesinato.
O núcleo da cultura popular (da consciência social) contém as idéias práticas essenciais do projeto popular, de um poder popular que atende às necessidades da sociedade, com prioridade para os oprimidos.
Por isso, é importante dar voz ao povo, por os meios de comunicação nas mãos do povo (estatizar a Globo, a SBT, a Record e outras mazelas), dos oprimidos.
Na tradução dos Setenta, da Bíblia (a “Septuaginta”), o termo “povo” (laio, em grego) aparece mais de duas mil vezes para designar o povo de Israel, a nação. Fica clara a ligação da pessoa com seu povo e o caráter de sujeito histórico do povo.
A concepção bíblica não é individualista (liberal) e nem totalitária, e sim solidária, abarcando a importância de cada pessoa e também das estruturas sociais. Une personalismo e socialização (comunitarismo, a importância da sociedade), no que hoje chamaríamos uma concepção de democracia social ou de socialismo personalista. Este ponto foi bem destacado por Dom Hélder e pelo Cardeal Lercaro, como será visto.
Em resumo, o “povo”, para Dussel, é formado pelo operariado, os trabalhadores braçais e intelectuais que vivem do suor do próprio rosto e ainda o conjunto que Marx listou no “Manifesto Comunista”: “as camadas baixas da classe média – os pequenos industriais, os pequenos comerciantes, os que vivem de pequenas rendas [oriundas do trabalho], os artesãos e os camponeses”, tal como outras camadas e segmentos oprimidos. Por exemplo: mães de família que trabalham no lar, trabalhadores informais, pescadores, desempregados, favelados, sem-terra, prestadores de serviços técnicos etc.
O anti-povo, no Brasil, é formado principalmente por umas 5.000 famílias com 46% do PIB. Destas, há uns 2.500 latifundiários que detém milhões de hectares. Num círculo um pouco mais largo, há uns 150.000 milionários no Brasil. São estes as grandes sanguessugas, vampiros que infestam o país.
A situação brasileira é bem pior que a retratada por Ferdinand Lundberg, no livro “Os ricos e os super-ricos” (Rio, Ed. Civilização Brasileira, 1972), onde descreve o controle do poder público norte-americano por “200.000” milionários.
Como confessou Cláudio Lembo (ex-reitor da Mackenzie e pefelista, logo, por “dentro”): “nós temos uma burguesia muito má, uma minoria branca perversa”.
A existência de bilionários e milionários é a coisa mais obscena possível.
Os livros de René Armand Dreifuss, especialmente “1964, a conquista do Estado” e “Transformações: matrizes do século XXI” (editados pela Vozes, por Rose Marie Muraro), descrevem as grandes corporações multinacionais, os CEOS e alguns de seus “empregados”, alguns políticos-fantoches.
Concordo com o falecido René: só um Estado mundial, como queria João XXIII, pode destruir a oligarquia das multinacionais, formando grandes estatais multinacionais que substituam este acúmulo obsceno de poder econômico e político.
A maior parte das fortunas privadas, como já ensinava São Jerônimo (e Balzac…, outro grande católico), vem de crimes, da brutal exploração dos trabalhadores, dos consumidores, da formação de trustes e cartéis e do saque do Estado.
O próprio Marx, em “O capital” (Rio, Ed. Civilização Brasileira, 1998, p. 837), descreveu a origem da riqueza privada dos latifundiários (nobres) e capitalistas ingleses: “os proprietários da mais-valia, nobres e capitalistas… inauguraram a nova era” ampliando “em escala colossal os roubos de terra do Estado, até então praticados em dimensões mais modestas. Essas terras foram presenteadas, vendidas a preços irrisórios ou simplesmente roubadas mediante anexação direta a propriedades particulares”.
Outra fonte foi o saque das terras da Igreja e o ouro e os bens do terceiro mundo, especialmente do Brasil.
O segredo das grandes fortunas privadas é sempre o roubo do Estado, rapina destrutiva da natureza ou do trabalho não pago.
Hoje, os ricos amealham fortunas com o mecanismo iníquo da dívida pública (pura usura) e com as privatizações. As piores “entregas” foram a da Vale do Rio Doce, das Teles, do sistema elétrico, dos portos etc.
As mais de 100 privatizações no governo FHC junto com as privatizações russas feitas por Yeltsin foram, na visão de Hobsbawm, os piores saques do mundo, na década de 90.
Outro sumidouro são os contratos de empreitada (os grandes empreiteiros são vampiros) e outros contratos públicos (aluguéis, serviços com terceirização etc) leoninos, onde os ricos drenam os recursos públicos para consolidar seu poder econômico e político.
Os dados sobre os “ricos”, no Brasil, constam de artigos de Márcio Pochmann, tal como no livro de A. Campos, “Os ricos no Brasil” (São Paulo, Ed. Cortez, 2004), tal como em obras elaboradas por Emir Sader.
A pirâmide é tão alta que “5 mil clãs parentais possuíam um volume patrimonial equivalente a 42% do PIB anual”, deixando os outros 58% para 51 milhões de famílias. Na América Latina há 14.000 clãs, dos quais 5.000 são do Brasil.
No prisma ético, como Deus fez tudo para todos, a pessoa que tem um patrimônio privado na casa de um milhão ou mais vive numa situação torpe.
Em regra, é uma pessoa depravada no sentido ético, salvo honrosas exceções.
Enquanto os pobres, em regra, são honestos, salvo exceções.
Por estas razões, o poder público deve ser controlado pelos trabalhadores e remediados, porque são mais honestos e detendo os cargos-chaves poderão repartir os bens para não haver nem ricos nem pobres, apenas pessoas medianas e honestas, preocupadas com ajudar o próximo.
O núcleo da ética, para Dussel, é o mesmo ponto essencial da ética de Santo Ivo (1253-1303), patrono dos advogados.
Como Pio XII explicou, “Santo Ivo é venerado e invocado como patrono” dos advogados “por haver defendido valentemente os pobres e os oprimidos” (cf. “L’Illustre Barreau”, discurso a um grupo de advogados franceses, em 23.04.1957). O miolo da ética é justamente ajudar o próximo, a sociedade, libertar o oprimido.
O próprio Marx, no livro “A guerra civil na França”, lista os operários, os camponeses e as classes médias baixas como “os elementos sadios da sociedade”. Engels, em 1881, criticou Kautski, por este ter posto no programa de Erfurt, do qual foi redator, o velho erro de Lassalle, de considerar os camponeses e outras camadas oprimidas, pequenos burgueses, como “uma só massa reacionária”.
Neste sentido, Tolstoi e Anton Tchekhov, autores com boa religiosidade, tinham um conceito altíssimo sobre os camponeses e seus textos cristãos deveriam ser reeditados pelo MST, pois são bem atuais.
Os melhores textos de Balzac, de Proudhon ou de Charles Dickens (1812-1870) elogiam corretamente os pequenos burgueses, os verdadeiros empreendedores, que vivem basicamente do próprio trabalho pessoal.
Dussel detalhou bem: “o povo oprimido” é constituído das “classes exploradas do capitalismo dependente e outros grupos marginalizados, etnias e raças também exploradas”.
O povo é o sujeito de uma “cultura popular revolucionária”, tendo como marcos a “cultura indígena”, a africana e outras fontes culturais populares (a “Paidéia” latino-americana, formada pelos elementos indígenas, africanos e também pelo melhor da cultura antiga, européia etc).
A religiosidade e a ética presentes na cultura africana foi bem destacada no documento de Paulo VI, “Africae Terrarum” (publicado na “REB”, Revista Eclesiástica Brasileira, n. 27, pp. 976-989). Um bom sincretismo é baseado num bom ecumenismo natural e cultural.
Para refutar os que reduziam sua posição com a pecha de “populismo”, Dussel lembrou bem que Lênin, Kemal Ataturk, Gandhi, Perón, Mao, Ho Chi Ming, Nasser e Fidel usaram o termo “povo” no mesmo sentido.
Fidel, no documento “Declaração de Havana” (02.09.1960) usou dezesseis vezes a palavra “povo”, “apenas na primeira página de sua edição de La revolución cubana” (México, 1972, p. 218, como colhi no livro referido acima, de Dussel).
O “povo” tem quatro inimigos principais: 1º) o imperialismo (as multinacionais, especialmente dos EUA e da Inglaterra); 2º) a burguesia, ou seja, o grande capital, especialmente o capital monopolista e oligárquico; 3º) os latifundiários, ou seja, os donos de terra com mais de mil hectares, especialmente os donos das “plantation”, o setor agro-exportador; e 4º) os agentes públicos ligados aos setores parasitários, já referidos.
Dussel cita um trecho do livro “A nova democracia”, de Mao, onde este escreve: “a antiga cultura popular tem o essencial do revolucionário”, ponto corretíssimo, embora Mao se esquecesse que esta antiga cultura popular fosse embebida em boa religiosidade. No entanto, mesmo Mao elogiou algumas idéias taoístas, que coincidem bem com várias idéias cristãs, como destacou Thomas Merton.
Dussel e os melhores sacerdotes argentinos defenderam uma forma de socialismo popular, humanista, participativo, nacional, crítico e aberto.
Gutierrez adotou basicamente as mesmas idéias e estes dois, com Clodovis Boff, são, a meu ver, os três melhores teólogos da libertação. No mesmo sentido, há os textos do padre Gustavo Gutierrez, padre José Comblin, Jung Mo Sung, Dom Pedro Casaldáliga, Dom Hélder, Dom Tomás Balduíno e outros.
Resumindo: o “povo”, no conceito de Dussel, representa a maior parte da sociedade, a parte saudável: as classes oprimidas, os pobres.
Os latifundiários ou os grandes capitalistas são como grandes ladrões (grandes tênias, lúcios, sanguessugas ou dragões), não deveriam existir numa sociedade saudável e justa.
A aversão bíblica aos ricos (à acumulação de bens, vedada nos dez mandamentos) foi explicitada inclusive por Bossuet no “Sermão sobre a eminente dignidade dos pobres na Igreja” (1659, escrito com ajuda de São Vicente de Paulo). Neste sermão, Bossuet escreveu que a Igreja é a cidade dos pobres, onde os ricos são entram exceto se entregam seus bens supérfluos, deixando de serem “ricos” (terem bens supérfluos, bem além das necessidades da vida).
Da mesma forma, na “Regra dos templários” (1.128), quando era toda católica (e os templários permaneceram, na maior parte, como católicos, sendo parte conservada na Ordem de Cristo, que atuou no Brasil), ensina que a tarefa principal dos cavaleiros pobres é “defender os pobres, as viúvas, os órfãos e as igrejas”.
Em Cervantes e em Walter Scott (1771-1832), as tradições da cavalaria (nobreza) espiritual ficam claras, com virtudes como a coragem e o ânimo sagrado de sacrificar-se por uma causa justa, sendo a causa da defesa do povo a mais justa de todos.
Pio XII, num belo discurso, também destacou que o conceito cristão de “nobre” é praticamente o equivalente do “guardião” de Platão, representa o homem público, que vive o máximo possível dedicado à causa da sociedade, do povo, do oprimido. Os textos de Cervantes traduzem esta tradição boa, tal como os melhores textos de Corneille.
Conclusão: o povo é a parte boa e sadia da sociedade.
Os criminosos, latifundiários, grandes comerciantes e industriais, banqueiros e outras pragas rentistas são parasitas, excrescências. O Estado deve ser regido pelo povo, pela parte boa da sociedade, e não por oligarcas, opressores etc.