Dom Clemente Isnard, com quase cem anos, deixou as ideias essenciais para a boa REFORMA da Igreja Católica

Cristo resumiu o ideário de sua organização, a organização do Povo de Deus, da Comunhão, escolhendo o nome de “Ekklesia”, “Assembléia do povo”, num elogio à democracia real, que é o ideal histórico da Igreja. A “Ekkesia” era a base da DEMOCRACIA grega, o lugar da Assembléia do Povo, da Democracia Direta, viva, popular, Participativa. 

A Igreja nasceu com uma estrutura democrática e popular. Estas estruturas democráticas da Igreja também foram e devem ser fatores de democratização da sociedade e do mundo

Foi fácil, para a Igreja, a recepção da teoria clássica da Paidéia sobre o poder. Foi fácil porque a Igreja primitiva era toda moldada por eleições.

A Igreja primitiva era democrática em sua estrutura mais íntima, nas partes menores e maiores e precisava ser assim para resistir às perseguições romanas.

Como o próprio Marx, Engels, Lenin, Rosa de Luxemburgo, Kautski, Bebel e outros admitiram, o cristianismo primitivo era popular, democrático, socializante, revolucionário (o livro de Pierre Leroux sobre este ponto deveria ser reeditado).

Os diáconos, os padres, os bispos e o papa eram eleitos pelo povo.

As decisões eram tomadas em Concílios e Sínodos locais, regionais, nacionais e gerais. Hoje, uma parte do clero busca o retorno do desenho original da Igreja. Os livros do padre Comblin têm esta tônica correta. Era o ideal de Ação Católica de Alceu, de Dom Hélder e da maior parte do Clero. 

Entre os bispos há a mesma aspiração, com o mote de uma Igreja com intensa participação dos leigos na própria gestão, o que era também o ideal de Alceu Amoroso Lima, desde antes mesmo da Ação Católica, criada para este fim.

Para exemplificar a presença deste ideal entre os bispos, basta ver as idéias de Dom Clement Isnard, um bispo beneditino de 90 anos, com 49 anos como bispo, que foi da cúpula da CNBB e da Cúria Romana, (da Sagrada Congregação para o Culto Divino).

Dom Isnard, no livro “Reflexões de um bispo sobre as instituições eclesiásticas atuais” (São Paulo, Ed. Olho d´Água, 2008, p. 38), defende as seguintes reformas na estrutura da Igreja:

Os pontos que enumero são disciplinares, embora vitais para a Igreja: a nomeação dos bispos com a participação dos fiéis, fora de um segredo pontifício que acoberta a politicagem eclesiástica e consagra o sacrifício do povo; a garantia para os presbíteros cuja vocação não é o celibato, a fim de que possam exercer o sacerdócio a vida toda; a abertura plena para a mulher ocupar, na Igreja, o lugar que espera Há quase dois mil anos; a sucessão apostólica dando a todo bispo a posição autêntica de sucessor dos apóstolos, e não apenas a de celebrantes de pontificais vestidos de roxo.

“E há muitas outras coisas que foram acrescentadas à disciplina da Igreja, no decurso de dois milênios de sua vida e que não foram corrigidas pelo Vaticano II. Mas penso que todos os católicos têm o dever de fazer algo pela sua correção. Cumpri o meu dever”.

A maior parte da estrutura eclesial era eleita no início.

A Teologia da libertação e boa parte da CNBB, tal como as CEBs, hoje, buscam restaurar as antigas formas da Igreja.

Este ponto foi bem explicitado no livro de José Ignacio Gonzáles Faus, “Nenhum bispo imposto” (São Paulo, Ed. Paulus, 1996). Os papas, como bispos de Roma, eram eleitos pelo povo de Roma e depois passam a ser eleitos nos Conclaves. A “eleição do Sumo Pontífice” exige dois terços mais um dos votos, dentre os cardeais eleitores e não há óbice algum para que leigos possam ser cardeais.

Um exemplo de cardeal leigo foi o Cardeal Hércules Consalvi (1757-1824), Secretário de Estado de Pio VII, que obteve a reconciliação entre o Estado moldado pela Revolução Francesa e a Igreja, sob Napoleão Bonaparte. Num parêntese, a Revolução Francesa apenas consagrou um movimento dos leigos católicos e da melhor parte do clero, que existia antes, pois a derrota dos nobres feudais (latifundiários) vem desde Joana d´Arc (neste sentido, a peça de George Herbert Shaw, teatrólogo socialista e teísta, é excelente) e mesmo antes. Até mesmo Richelieu deu sua contribuição, quando destruiu boa parte dos castelos feudais e retirou vasta porção de poder dos nobres feudais latifundiários.

Na Igreja primitiva, os bispos eram eleitos pelo povo das dioceses. Mais tarde, os bispos eram eleitos pelos padres da diocese, por parte do clero ou pelos cônegos (os padres mais antigos, vinculados à cúria). Os santos eram eleitos pelo clamor popular. As grandes questões eram fixadas nos Concílios gerais e regionais, com praticamente a estrutura de sínodos. Nas universidades medievais, os reitores eram eleitos.

Nas ordens religiosas, todos os cargos eram eletivos (especialmente na Ordem dos Dominicanos e dos Franciscanos). A estrutura das ordens monásticas era também democrática e formada por leigos, basicamente por monges leigos.

O exemplo da Sorbonne também ilustra bem a amplitude da difusão da concepção política cristã. Roberto de Sorbon (1201-1274), o teólogo que fundou a Sorbonne, em 1257, escreveu “De consciência”, destacando o poder da consciência para nos guiar na vida pessoal e social, para o bem comum e para Deus, o Bem Supremo, a base da comunhão mística entre as pessoas. Roberto era o capelão e confessor de São Luiz IX. Nos seus planos sobre a Sorbonne, seguiu os exemplos das congregações religiosas. Tudo era eleito na Sorbonne, desde a fundação. A Sorbonne era uma sociedade de clérigos seculares, democratas, dedicados ao ensino gratuito.

Como o próprio Geral dos Jesuítas explicou, no documento de convocação da Congregação Geral da Ordem, em 05.01.1995, mesmo na centralizada Ordem dos Jesuítas “a Congregação Geral é, sem dúvida, a autoridade suprema, a instância máxima de poder na Companhia”. Este texto está no documento da XXXIV Congregação Geral dos Jesuítas (São Paulo, Ed. Loyola, 2002, p. 350), em 1995.

Além disso, a doutrina católica era considerada a que era universal, aceita consensualmente por todos (pela maioria, pelo consenso da maioria), sendo a Tradição oral, conservada no povo, ou seja, a opinião do povo, as IDEIAS DO POVO, é uma fonte da fé.

Hoje, cada vez mais, a Igreja retoma sua estrutura mais antiga. Os bispos reúnem-se anualmente em Itaici, nas Assembléias Gerais da CNBB e redigem documentos e planos conjuntos. Os religiosos reúnem-se na CRB, Conferência dos Religiosos do Brasil. Os sacerdotes realizam encontros nacionais.

Por exemplo, o 12º Encontro Nacional de Presbíteros, no Mosteiro de Itaici, município de Indaiatuba (SP), em 2008, propôs ao Vaticano a ordenação de homens casados, tal como a readmissão de padres que deixaram suas funções para se casar. Este Encontro teve 430 delegados representando 18.685 padres de 269 Dioceses, onde há 9.222 Paróquias. Em cada Diocese, há um Conselho Pastoral de Diocese. Em cada Paróquia, há um Conselho Pastorald de Paróquia. E há também o Conselho Presbiteral, dos padres, que o bispo deve ouvir (se não quiser uma migração destes para outras dioceses mais participativas, mais democráticas…).

O Encontro dos Padres do Brasil, referido acima, também pediu regras com “espírito mais transparente, democrático e participativo junto dos presbitérios, dioceses e regionais da CNBB” para a escolha dos bispos, pois, hoje, a escolha fica praticamente entre os bispos da Região da Diocese, o Núncio e o Papa. O Núncio, às vezes, infelizmente, não segue o bom exemplo do Núncio Lombardi, amigo de Dom Hélder, e não ouve o clero local.

Em cada Diocese, há formas de “comunhão e de colaboração”, através de órgãos como a cúria diocesana (que deveria ter mais e mais leigos), o conselho presbiteral (dos padres), o colégio dos consultores, o conselho pastoral diocesano e o conselho diocesano para os assuntos econômicos. São órgãos de “partilha das responsabilidades comuns”, de partilha do poder, na Igreja.

Em cada capela, paróquia, diocese e no Vaticano deve existir formas de PRESTAÇÃO DE CONTAS do uso dos recursos, transparência do uso dos bens, recursos, movimentações financeiras etc. LUZ em toda a Igreja. 

Nas Paróquias, há também vários conselhos e Assembléias. Há os Encontros sobre Fé e Política, que elaboram documentos de análise e diretrizes concretas, para a ação em prol do bem comum, a ação política e patriótica dos leigos.

Na estrutura da Igreja, cada vez mais, há planejamentos participativos de pastorais nas Dioceses etc. Houve o restabelecimento dos Diáconos permanentes, que fazem tudo, exceto oficiar Missas, ouvir em Confissão e ordenar padres. Há a esperança que, logo, estes diáconos casados podem ser também ordenados, atuando como padres casados. Quando o número de diáconos superar o número de padres, ficará evidente que os homens casados devem ser ordenados (há bispos que defendem inclusive a ordenação de mulheres).

A própria Igreja é a parte visível do “povo” de Deus (que abarca bons muçulmanos, bons hindus, bons marxistas etc), guiado pela consciência humana de seus membros, com a ajuda das luzes e da força do Espírito Santo.

Os dons do Espírito Santo são sete e são REFORÇOS à natureza humana, a nossas faculdades: a inteligência, a vontade humana e a afetividade. Em outras palavras, a ação divina reforça sua melhor criação, a consciência humana, criada para a autodeterminação pessoal e social.

Na Igreja, a hierarquia é apenas a serva, uma estrutura com agentes “públicos”, feita para atender às necessidades do povo, para o bem do povo. Como ensinou inclusive Pio X, na “Vehementer”, os “vários graus da hierarquia” (“pastores”, protetores) têm o ofício de “orientar e dirigir os associados ao fim da sociedade”, para o bem comum.

A orientação e a direção são apenas determinações, explicitações, das melhores idéias do povo, das obrigações (deveres, preceitos, preceituações, detalhamentos) das regras racionais para o bem comum.

A hierarquia (clero), como a hierarquia estatal (o “estamento”, os “clérigos leigos”, a “clerezia”, de “clericus”, do grego “kleros”, no sentido lato de “letrados”, cf. Julien Benda e Frei Joaquim de Viterbo), devem ser (pois, no fundo, é esta sua natureza) “servos” (como ensinou explicitamente o próprio Jesus Cristo).

Toda hierarquia é formada, no fundo, por educadores (o termo magistrados vem de magistério), que devem se pautar pelo diálogo, pela razão em prol do bem comum (cf. o próprio Julien Benda, em “A traição dos clérigos”).

A função essencial do clero e de toda hierarquia é de “diakonia”, de ajudar, como um médico que auxilia a auto-cura (a base da melhoria é a contrição-consciência do erro e propósito-projeto de melhorar, a confissão é apenas outra forma, ligada a cura e orientação espiritual). O clero apenas ajuda o processo de aperfeiçoamento endógeno, em nós. 

Toda hierarquia só se justifica como forma de serviço público, de servir ao povo, de ajudar ao povo, como forma para ajudar o povo a pautar-se pela busca da verdade (mediante o diálogo), em prol do bem comum.

Conclusão: a estrutura antiga e atual da Igreja (que pode ser aperfeiçoada e melhorada ainda) é também um fator de democratização, um argumento importante em prol da democracia participativa.

Neste sentido, os textos de Suenens, Congar, Dom Hélder e do padre Comblin ilustram bem a importância das estruturas eclesiais serem bem abertas, transparentes e participativas (com CEBs e ampla participação dos leigos).

Este era o ideal também de vários ótimos padres, que conheci em São Leopoldo, lá por 1983, visitando paróquias.