O Estado deve apoiar a organização do trabalho em cooperativas, em unidades produtivas com autogestão, co-gestão e controle social

Flora Tristan (n. 1803) foi outra grande socialista cristã, pré marxista, filha de um peruano. Também prova que o socialismo nasceu cristão (e judaico), pré-MARXISTA, antes de Marx. Marx fez uma síntese, sendo um grande socialista, de ideias cristãs, no fundo (cf. Dussel). 

Flora Tristan defendeu ideias baseadas na Fórmula Buchez, o Estado ajudar os trabalhadores a formarem cooperativas, a mesma ideia depois defendida por Luís Blanc e por Ferdinand Lassalle, e que foi acolhida no “Manifesto” de Marx e nos documentos bases da I Internacional.

Conforme consta no livro de Maximilien Rubel, “Karl Marx – ensayo de biografia intelectual” (Ed. Paidos, Buenos Aires, 1970, p. 90), Flora Tristan viajou várias vezes para a Inglaterra, onde se encontrava com católicos irlandeses, como O´Connor e O´Brien e outros cartistas, todos com ampla religiosidade.

Flora Tristan aprendeu bastante com o movimento dos irlandeses católicos. E aprendeu muito com a luta dos poloneses católicos contra o czarismo e com os cartistas.

Os poloneses católicos (e o mesmo vale para os judeus poloneses) sempre lutaram contra países imperialistas (Rússia, Prússia e Áustria). Situada entre a Rússia e a Prússia, tendo embaixo a Áustria, sempre estiveram em estado de rebelião. Frederico II, da Prússia, o amigo de Voltaire, dividiu a Polônia no século XVIII. Depois, em 1815, a Rússia praticamente a anexou. Em 1830, o Czar tentou enviar tropas polonesas contra os revolucionários franceses e belgas.

A Bélgica se emancipou da Holanda, em 1830, movimento que teve a participação efetiva dos católicos, democratizando mais a Bélgica e, depois, o Estado belga deu um bom exemplo construindo ferrovias, ou seja, intervindo diretamente na produção, infringindo “dogmas” do liberalismo econômico.

Diante das tropas do Czar, houve a insurreição em Cracóvia, em 1830 e o Parlamento polonês “destitui” a dinastia russa. Em toda a Europa há movimentos de simpatia pelos poloneses, mas nenhum país os ajuda efetivamente. Em 1832, a Polônia se torna uma província russa e milhares de poloneses emigram, a maior parte para a França. Em 1846, há outra insurreição em Cracóvia e desta vez é a Áustria que anexa a cidade de Cracóvia. Em 1863, há outra insurreição que fracassa e gera a morte e a prisão de milhares de patriotas. Em 1864, a Rússia proíbe até a língua polonesa.

Católicos e judeus lutavam lado a lado contra o czarismo, tal como lutaram juntos, dentro do Partido Democrático, nos EUA, apoiando o New Deal e a luta contra o racismo e pelo Estado social. 

No século XIX, os católicos irlandeses, poloneses e da Renânia foram expoentes em prol da Democracia e do Estado social. 

Quando Marx chegou a Paris, Ruge o aconselhou a conhecer Proudhon e as “mulheres”, Flora Tristan e George Sand, pois “elas são mais radicais que Louis Blanc e Lamartine” (cf. a carta de Ruge a Marx, de 01 de dezembro de 1843).

Marx citou Flora Tristan no livro “A Sagrada Família”, escrito no final de 1843. Ruge era ardentemente democrata, e por isso foi amigo de Marx por vários anos (desde 1841 ou antes e permaneceu em parte amigo mesmo após a briga contra Marx, em 1844).

Os palácios operários de Flora Tristan, tal como os falanstérios de Fourier e as fazendas com grandes casas comuns de Owen, tinham como precursoras os mosteiros e as comunidades religiosas (shakers etc).

Queriam unir campo e cidade, fortalecendo as pequenas cidades, formando agrovilas, o mesmo plano do MST, hoje, em linhas gerais. 

Vale a pena lembrar que nos mosteiros e conventos os abades eram eleitos democraticamente, com rodízio e com eleições periódicas, como também foi bem lembrado por Frei Betto, em um texto onde defende que o socialismo é co-natural aos religiosos (pelo voto de pobreza, pela ojeriza à propriedade privada, pela escolha dos abades, o espírito colegial etc).

Flora Tristan seguiu, explicitamente, os exemplos do grande católico Daniel O´Connor, um grande líder católico, tal como dos cartistas. A luta dos católicos irlandeses deu o exemplo para a organização dos cartistas e a que tentou Flora Tristan, que morreu com pouco mais de 41 anos, e ainda assim é precursora de Marx em vários pontos, especialmente na terminologia.

As idéias de organizar ou constituir a classe dos trabalhadores no país e internacionalmente foram divulgadas por Flora, que teve como exemplo Daniel O´Connor e também os Companheiros, uma organização gremial de artesãos muito antiga e ligada à Igreja.

Flora Tristan leu e conversou com Agricole Perdiguier, autor do “Livre du Compagnonnage”, de 1840. A instituição “compagnonnage”, Companheiros, remonta à Idade Média. Daí, Flora lançou o movimento “União Operária”, possivelmente uma das maiores precursoras da Internacional, da ideia de organizar os trabalhadores no prisma internacional.

Flora também conheceu François Villegardelle, editor das obras de Campanella e de Morelly, o que também demonstra bem a origem cristã católica de suas idéias, pois Campanella e Morelly baseavam suas idéias na Bíblia e nos Santos Padres. Os palácios operários teriam 3.000 trabalhadores, parecidos com os falanstérios de Owen.

Flora, seguindo as ideias de Buchez (e de Leroux) defendeu a inalienabilidade dos bens dos palácios operários, ou seja a limitação do elemento mais importante do direito de propriedade quiritário e liberal, a disponibilidade dos bens. A inalienabilidade significava a retirada do bem do mercado, da apropriação privada, e a vinculação do mesmo a formas de gestão colegial (em geral eleitas) e a funções sociais (atender às necessidades de pessoas).

A inalienabilidade (e sua vinculação a funções sociais, a atender às necessidades materiais e espirituais dos pobres, dos necessitados) era o instituto jurídico aplicado aos bens da Igreja (e do Estado) – mosteiros, conventos, paróquias, orfanatos, hospitais, as instituições de caridade e de quase todos os bens da Igreja.

Qualquer instituição ou unidade produtiva com bens alienáveis, com o trabalho, vai progredindo, pois os retornos são re-investidos, não sendo divididos, ficando os trabalhadores no controle dos bens produtivos e estes sob controle social-estatal. 

Marx, em “O capital”, seguindo textos do grande católico William Cobbett, criticou a usurpação dos bens da Igreja, apontando a usurpação destes bens, tal como a usurpação da propriedade comunitária (bens inalienáveis, como os mosteiros e a ideia de Buchez) dos camponeses, como uma das causas da acumulação primitiva dos capitais dos capitalistas.

A inalienabildade dos bens e sua vinculação às necessidades sociais é também a base jurídica das fundações e cooperativas (daí o plano do padre católico Renard de transformar todas as unidades produtivas em fundações, que são patrimônios dotados de personalidade jurídica e vinculados a fins sociais) e das cooperativas. 

Friso que o socialista católico Buchez foi o principal pensador a ressaltar os fundos indivisíveis na base das cooperativas, ponto que os Pioneiros de Rochdale também seguiram.

O instituto dos “bens de mão morta” e as “sociedades perpétuas” significam que as associações  e unidades produtivas cooperativas operárias iriam gerir os meios de produção de forma institucional e ainda com funções sociais (deveres para com o bem comum, sujeição à soberania popular e ao domínio eminente). Eram esboços de formas jurídicas cooperativas vinculadas a funções sociais, ao bem comum.

Buchez lembrou expressamente a inalienabilidade como base de suas unidades produtivas operárias (tal como Louis Blanc).

Nos Princípios (regras fundamentais do) de cooperativismo esta inalienabilidade é conhecida como “fundos indivisíveis” das cooperativas. De fato, as chances de superar o patronato, pelo menos o grande, estão nestas associações operárias, com fundos indivisíveis, combinadas com o apoio estatal e a planificação participativa.

Ota Sik, o principal líder intelectual da “Primavera de Praga” e Ministro da Economia de Alexander Dubcek, em 1968, também destaca a importância de unidades produtivas com fundos indivisíveis, autogeridas, sujeitas a formas de planejamento participativo.

Em Praga, na antiga Tchecoslováquia, em 1968, houve um esboço de um “socialismo de rosto humano” (elogiado por Hobsbawm, no livro “Tempos interessantes”, da Companhia das Letras, 2002, onde este autor também exalta o comunismo italiano, pela ênfase na democracia etc). Infelizmente, os tanques soviéticos esmagaram a Primavera de Praga.

No entanto, surgiram outros movimentos marxistas que se aproximaram das idéias da Igreja: o austromarxismo (Max Adler, Otto Bauer, Rudolf Hilferding e outros), formas de marxismo humanistas, a Escola de Frankfurt, o eurocomunismo, alguns idéias boas de Gorbachov, o socialismo autogestionário (o iugoslavo e outros modelos), o socialismo ligado aos ideais de José Martí de Fidel Castro e outros.

Autores como Henri Lefebvre também se aproximaram das teses cristãs, especialmente em livro como “Posição: contra os tecnocratas” (1967), ou em “Lógica formal, lógica dialética” (1947), onde defende a validade da lógica formal para o discurso. Sua concepção de socialismo fundada no “autogoverno”, como base para superar o burocratismo e a tecnocracia, se aproxima de boas idéias cristãs. As obras “Sobre uma interpretação do marxismo” e “Além do estruturalismo” (com crítica a Louis Althusser) trazem bons pontos de união, tal como a crítica que fez contra a teoria da consciência-reflexo. Lefebvre elaborou uma boa definição de socialismo num artigo que foi publicado na revista “Le Monde” (Paris, 29.01.1964 e depois na revista Esprit, n. 346, de fevereiro de 1966, por Desroche e ainda no livro “A utopia”, de Luiz Alberto Gómez de Souza). 

Pensadores como István Meszáros têm conceitos bem semelhantes, pois exigem um modo de produção que combine autogestão, co-gestão com planificação participativa. O mesmo para Maritain e também para Jacques 

Em cada cidade da Europa e do Brasil Colonial (cf. o livro de Nélson Omegna, “A Cidade Colonial”, elogiado por Alceu) e em outras cidades do mundo, onde a Igreja atuou, existiam pessoas bondosas (ou seja, santas, sendo a santidade algo mais comum do que se pensa), que se organizavam em várias formas societárias e jurídicas (grêmios, mosteiros, conventos, ordens, congregações, confrarias, paróquias, grupos de mútua ajuda, capelas, mutirões, corporações de trabalhadores etc), para gerirem bens comuns e para ajudarem o próximo. Estas formas continham, em embrião, em germes, as ideias sociaistas, de socialismo participativo. 

No fundo, eram grupos (associações, estruturas participativas) onde as pessoas se reuniam para a mútua ajuda (cooperação) e a solidariedade, com fundos inalienáveis, indivisíveis, que serviam como base material para estas formas de cooperação. Quem entender de mais valia e de autofinanciamento, sabe o potencial das cooperativas, se forem apoiadas pelo Estado, para erradicar o capitalismo, desde que existam outras reformas sociais essenciais. 

Da mesma forma, as pessoas se organizam em formas familiares (em famílias), que também são estruturas participativas, onde o preceito maior é a comunhão de bens, bens indivisíveis, inalienáveis, ao modo de pequenas cooperativas clãs.

Esta rede de ajuda mútua, de comunidades, de comunhão de bens, era e é a base da vida correta, tal como das famílias, que são igrejas (comunidades) domésticas. São estas as idéias que devem inspirar um modo de produção cooperativo e socialista (participativo).

Os fundamentos anticapitalistas deste tipo de idéias são evidentes, tanto pelos preceitos positivos, quanto pelas críticas (preceitos negativos), expressas nas frases contra os ricos (contra a propriedade quiritária, contra as relações de produção com base na acumulação e na exploração). Críticas proferidas por Cristo, São Judas Tadeu, São Lucas, São Paulo, São Pedro, Moisés, os Profetas bíblicos, os Santos Padres, Roux, Buchez, Ketteler e, hoje, pelos teólogos da libertação.