Os melhores bispos católicos do mundo aceitam uma forma de socialismo democrático com micro e pequenas empresas familiares, economia mista

O verdadeiro socialismo deve ser a concretização (realização, materialização) da destinação universal dos bens e da igualdade fundamental de todos, conforme o Manifesto dos Bispos do Terceiro Mundo, de 1967, ou seja, deve ter como base a difusão do controle dos trabalhadores sobre os bens produtivos, a socialização do uso. 

O “Manifesto dos bispos do terceiro mundo”, de 15 de agosto de 1967, foi assinado por vários bispos católicos, tendo a assinatura de Dom Hélder Câmara em primeiro lugar. Vejamos um trecho deste “Manifesto”:

“A Igreja após um século tolerou o capitalismo com empréstimo a juro legal e seus outros usos pouco conformes à moral dos profetas e dos Evangelhos. Mas ela não pode senão se regozijar de ver aparecer na humanidade um outro sistema social menos distanciado dessa moral.” (…)

“Os cristãos têm o dever de mostrar que o verdadeiro socialismo é o cristianismo integralmente vivido, na justa repartição dos bens e a igualdade fundamental de todos. Bem longe de o repelir, saibamos aderir a ele com alegria, como a uma forma de vida social melhor adaptada ao nosso tempo e mais conforme ao espírito do Evangelho.”

A justa repartição decorre da destinação universal dos bens (“a cada um de acordo com suas necessidades”, cf. Atos dos Apóstolos 2 e 4, duas passagens, para uma vida digna e feliz); exige uma regulamentação jurídica que assegure a todos os bens (o controle sobre estes), com base nas necessidades fundamentais. Este ponto é também amparado pela igualdade fundamental da natureza humana, que é a base do cristianismo e de qualquer socialismo humanista.

Centenas de Bispos já se manifestaram favoráveis a formas democráticas de socialismo, encontrar estas formas jurídicas participativas sobre uso dos bens, que superam o capitalismo, o imperialismo e o latifúndio, é o grande desafio de nossa geração. O antigo PDC (hoje, Partido Democrático, com fusão com o PCI) da Itália defendia coligações com socialistas há décadas e, com Aldo Moro, defendeu coligação com o PCI (que depois se tornou realidade com o PD, fusão do PDC e do PCI). 

Por exemplo, Dom Antônio Batista Fragoso, no livro “O rosto de uma Igreja” (Edições Loyola, São Paulo, 1982, pp. 84-87), escreveu sobre um projeto socialista no Brasil:

Um projeto socialista? (…) Combatendo o modelo capitalista, nas questões de imposto e em tantas outras, será que a Igreja de Crateús quer implantar um modelo socialista, como o único capaz de resolver a nossa situação?

É sempre bom recordar que estou partindo da perspectiva da Fé, do Evangelho, do Reino, e não de uma perspectiva técnica ou político-partidária.

No ponto de vista da Fé, creio que foi revelado por Deus que os bens criados PARA TODOS se destinam com absoluta prioridade A TODOS. A apropriação individual deve ser subordinada a esta destinação universal dos bens.

Consequentemente, se algumas pes­soas têm sobras, são apenas administradoras das mesmas sobras para o bem comum e não têm o direito de usá-las ao seu livre alvitre.

Reafirmando que a Igreja não propõe um projeto de sociedade política ou econômica, reafirmo também – a Igreja pede, em qual­quer projeto de sociedade, seja incorporado esse dado da Revelação: os bens sejam de todos. Isto quer dizer, seja para todos o ter, o saber, o poder.

Ora, uma análise dos projetos capitalistas existentes hoje, mos­tra que, mesmo quando se chamam neocapitalistas, ou quan­do são a forma mais sofisticada do capitalismo, não conseguem colocar o pão para todos no banquete da vida, mas concentram o pão sobre a Mesa Grande, com grave prejuízo para as massas. Historicamente, não podemos esperar de um projeto capitalista que respeite e encarne a proposta da Fé, do Reino, de Deus.

Mas, será que a Igreja propõe uma alternativa socialista? (…)

É explicável, porém, a pergunta seguinte: Será que as grandes linhas do socialismo poderão harmonizar-se com as exigências da Fé, no interior de um futuro projeto elaborado por todo o povo brasileiro?

Sem falar como bispo ou em nome da experiência da Igreja de Crateús, avanço o meu modo de pensar.

Todos os projetos socialistas existentes até hoje são criticáveis, imperfeitos e superáveis. Eles ainda não ensaiam e não encarnam plenamente o Projeto de Deus, de destinar para TODOS as oportu­nidades que Ele quer para todos.

No interior de muitos projetos socialistas, a ditadura de um PARTIDO criou uma oligarquia interna, que absorve e usurpa o poder de decisão e marginaliza as multidões.

Penso que não se deve copiar nenhum modelo socialista atual.

Mas, penso também, que as grandes linhas do socialismo, isto é, o TER da humanidade para toda a humanidade, o SABER da humanidade para toda a humanidade, o PODER da humanidade, sobre­tudo o poder de DECISÃO, para toda a humanidade – devem ins­pirar um projeto político brasileiro, se o povo, consciente e orga­nizado, o escolher.

Esta SOCIALIZAÇÃO de oportunidades se compatibiliza, a meu ver, com o Evangelho, com o Projeto de Deus. Não esgota, porém, o Evangelho. Não é todo o Evangelho.

Fé e análise marxista?

Para um projeto político que incorpore a socialização, um cris­tão tem direito de usar a análise marxista da sociedade capi­talista?

Estamos no começo de uma experiência pedagógica. Tivemos apenas 10 a 12 anos de prática das CEBs em Crateús. Toda res­posta que eu der vem de quem está buscando ainda, sem ver claro.

Parece-nos que todo o povo das CEBs, todos os cristãos, devem aprender cada vez mais a ler a realidade com duplo olhar: um olhar humano, que alguns chamam sócio-analítico, e um olhar de Fé.

O olhar humano nasce da experiência humana, dos conheci­mentos humanos, das ciências humanas. Todas as técnicas, ciên­cias, instrumentais científicos de análise, venham de onde vierem, se ajudam o povo a compreender mais objetivamente a realidade e a realizar o plano de Deus, são benvindos.

Não estamos fechados para nenhuma contribuição, de quem quer que seja. Mais ainda: achamos que toda contribuição verdadeira só pode vir do coração de Deus, única fonte de verdade. Deus é louvado e glorificado quando um homem, seja quem for, de qualquer ideologia que seja, oferece um instrumento científico verdadeiro, para a análise da realidade.

O olhar de Fé é um dom gratuito de Deus. Não vamos pedi-lo à Ciência ou à Razão humana. Vamos pedi-lo ao Senhor, na Palavra, na contemplação, na oração, na humilde busca coração.

Esses dois olhares devem se articular de modo permanente na prática do povo. Estamos tentando encontrar os caminhos desta articulação. Para isto, analisamos e debatemos os projetos políticos ticos do Governo, as estruturas e ideologias da sociedade, e, ao mesmo tempo, lemos e meditamos a Palavra de Deus e tentamos iluminar a realidade com a LUZ que vem gratuitamente de Deus.

Não temos as portas fachadas para o instrumental científico de análise da sociedade capitalista, que Marx oferece, pelo fato de vir de Marx. Na medida em que for verdadeiro, não é mais de Marx, é da humanidade.

Achei muito interessante ser convidado por um grupo de bispos para participar de encontro sobre instru­mentos de análise da realidade sob a responsabilidade de teólogos e expertos em Ciências Sociais de alta categoria.

O curso ajudou-nos a conhecer também o que é mesmo de Marx nos marxismos e o que é dos seus discípulos. Ajudou-nos a ler, à luz da Fé, o projeto marxista: o instrumental científico de análise, a concepção materia­lista da História, o método dialético etc.

Penso que, para sermos honestos diante da nossa consciência de cristãos, devemos acolher o Marxismo e todas as outras contri­buições que os homens estão oferecendo para uma análise realista da situação”.

Dom José Maria Pires, arcebispo da Paraíba, numa intervenção no XII Congresso Brasileiro de Comunicação Social, em Recife, em 15.11.1983, escreveu um texto sobre as “relações Igreja/Estado no Brasil pós-64” (publicado na revista “Vozes”, em dezembro de 1983):

Após 64, a Igreja evoluiu certamente da posição de colaboradora do Estado para a de instância crítica e, em muitas circunstâncias, passou da crítica à solidariedade concreta em favor dos oprimidos. Acredito que ela possa voltar a ser colaboradora do Estado, mas sem deixar de ser instância crítica. Na medida em que o próprio Estado deixar de ser o representante das oligarquias dominantes para se tornar o legítimo intérprete das aspirações populares o que significa: na medida em que o sistema capitalista, baseado na exploração do trabalho e na apropriação da mais valia, for substituído por um tipo de socialismo que respeite os direitos da pessoa humana, lance as bases de relações de trabalho que superem toda dominação e exploração e prepare o advento de uma sociedade sem opressores e sem oprimidos, nessa medida Igreja e Estado voltarão a caminhar juntos. Então o Estado não se oporá à Nação e representará legitimamente o povo, enquanto a Igreja será cada vez mais Povo de Deus em marcha” [para a renovação do universo].

Dom Tomás Balduíno, Dom Pedro Casaldáliga, Dom Hélder Câmara, Dom Fernando Gomes, Dom Luciano, Dom Paulo E. Arns, Dom Moacir Grecchi, Dom Waldyr Calheiros, Dom José Gomes, Dom Antônio Fragoso, Dom José Maria Pires e tantos outros têm as mesmas linhas básicas: é absolutamente necessário superar o capitalismo, o latifúndio e o imperialismo.

O sistema capitalista é horrendo e genocida.

Em quase todo o mundo, a luta contra o mesmo assume o nome de “socialismo democrático” ou participativo, sendo estes modelos harmônicos, em muitos pontos, com a fé cristã, inclusive por terem raízes cristãs fortes e irrefutáveis.