O que é a PRAGA do Salvini, um dos braços da direita européia, cheia de erros e coisas obscenas

Salvini e a “nova” ultradireita europeia

Por Matteo Pucciarelli, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:
A Itália tem um novo homem forte. Na opinião de muita gente, até um novo salvador. Em Roma, o verdadeiro chefe do governo não é o presidente do Conselho, Giuseppe Conte, nem o vencedor das últimas eleições gerais, o líder do Movimento Cinco Estrelas (M5S), Luigi Di Maio.
O verdadeiro chefe do governo é o ministro do Interior, Matteo Salvini. É como se, de um dia para o outro, um obscuro vereador de Milão, militante de longa data da formação separatista Liga Norte, tivesse se tornado a personalidade mais poderosa do país. Em suas mãos, um partido que parecia uma relíquia transformou-se no principal agente da política italiana e talvez europeia.

As raízes dessa incrível transformação chegam muito longe, não no tempo, mas no espaço. Desde 2014, as guerras e a pobreza levaram milhões de habitantes da África e do Oriente Médio a atravessar o Mediterrâneo em busca de trabalho, liberdade e paz em uma Europa rica, antiga, porém cada vez mais desigual. A resposta do Velho Continente resumiu-se ou a fingir que não via, ou a explorar os fantasmas do desespero alheio: em vez de ajudar, identificar um inimigo e lançar um concurso de humilhações. Os últimos e os penúltimos dos abandonados do planeta foram jogados uns contra os outros, e os mais favorecidos foram deixados em paz. Na Itália, Salvini iniciou a revolta dos penúltimos. Com certo talento, aprendeu a comunicar-se com suas necessidades.

A Liga Norte foi fundada em 1991, às vésperas da implosão dos três partidos de massa – o democrata cristão, o comunista e o socialista – que dominavam a Itália desde a Segunda Guerra Mundial.

Apresentando-se como “nem de esquerda nem de direita”, ela nasceu da fusão entre a Liga Lombarda de Umberto Bossi, surgida em meados dos anos 1980, e algumas forças regionalistas que operavam no norte do país. Sua articulação se dava em torno de um objetivo particularista: a independência da Padânia, uma nação imaginária que se estenderia ao redor do Pó, uma vez que o norte, próspero e trabalhador, estaria cansado de pagar pelo sul, atrasado e dependente. Assim, cada um deveria seguir seu próprio destino.

Os partidos democrata cristão e socialista, na época, estavam ruindo por causa do escândalo Tangentopoli [1]. O divisionismo reinava, e o Partido Comunista Italiano (PCI) abandonou qualquer referência ao comunismo após a queda do Muro de Berlim. A Liga conseguiu seu primeiro avanço nas eleições gerais de 1994, obtendo 8,7% dos votos em nível nacional e mais de 17% na Lombardia. Depois, participou do governo de centro-direita de Silvio Berlusconi. Mas, irritado com seu papel subalterno, Bossi, um franco-atirador truculento, não tardou a deixar a aliança, derrubando de passagem Berlusconi. Bancando o cavaleiro solitário nas eleições seguintes, a Liga ganhou 10% dos votos em 1996, caindo depois para 4,5% nas eleições europeias de 1999.

Ela voltou à aliança liderada por Berlusconi, na qual, durante a década seguinte, atuou como parceira minoritária, vociferante, mas altamente ineficaz. Enfraquecido por um acidente vascular cerebral e atolado em um caso de corrupção, Bossi foi afastado por seu número dois, Roberto Maroni, que assumiu a liderança do partido em 2012. Nas eleições gerais de 2013, a Liga caiu novamente para 4,1%, parecendo condenada à insignificância. Em seu feudo lombardo, porém, Maroni conseguiu conquistar a presidência da região. Ele então decidiu abandonar o cargo de secretário-geral, acreditando que seu partido não teria futuro em nível nacional e que seria melhor aproveitar os benefícios de um mandato regional.

Em 15 de dezembro de 2013, a Liga Norte organizou uma primária interna para designar o sucessor de Maroni, mas a consulta parecia mera formalidade. O futuro do partido foi decidido em um almoço entre Maroni e dois de seus seguidores, Salvini e Flavio Tosi, o popular prefeito de Verona: a posição ingrata de secretário-geral caberia ao primeiro, reservando-se ao segundo a possibilidade de se tornar o porta-bandeira da centro-direita quando Berlusconi, cada vez mais desacreditado, não pudesse mais exercer esse papel.

Salvini venceu a primária com mais de 82% dos votos. Ele era então quase desconhecido entre os eleitores italianos. Mas não entre os militantes de Milão, onde nasceu, em 1973, filho de um empresário. Aos 17 anos, ainda na época da escola, o rapaz juntou-se à Liga Lombarda. Sete anos depois, tornou-se vereador. Nesse período, frequentou o Leoncavallo, o mais importante centro social da cidade, um enclave da militância alternativa e radical, onde se encontram as várias tendências da esquerda milanesa. Ele bebia cerveja, assistia a espetáculos e cultivava sua paixão pelo cantor anarquista Fabrizio De André. Como vereador, defendeu o centro contra Marco Formentini, o prefeito da época, também membro da Liga, que desejava derrubá-lo. Quando, em 1997, a Liga organizou “eleições padanianas” para nomear o parlamento paralelo de sua pretendida nação, Salvini tornou-se chefe dos “comunistas padanianos”, uma lista adornada com a foice e o martelo.

Três milhões de seguidores no Facebook

Seu assento na Câmara Municipal de Milão permitiu-lhe dar amplo eco a suas diatribes, sobretudo em relação aos “ciganos muçulmanos” e às questões securitárias. Assim, apoiou um pai de família que atirou em um ladrão e propôs o estabelecimento de uma linha telefônica gratuita para denunciar atos de delinquência cometidos por imigrantes. Arroz de festa, logo se tornou convidado regular dos canais de televisão locais. Ele também se mostrou muito ativo nas mídias controladas pela Liga, escrevendo principalmente para o jornal Padania, antes de se tornar diretor da Radio Padania Libera. À imagem do PCI de outrora, a Liga era uma organização que atuava em todas as áreas, envolvendo seus militantes em uma ampla variedade de atividades.

Em 2004, o dinamismo de Salvini acabou por levá-lo a Bruxelas, onde se tornou eurodeputado pela Liga, com a maior parte de seus votos vinda dos subúrbios carentes de Milão. Ele renunciou em 2006 para liderar o grupo da Liga na Câmara Municipal de Milão, mas voltou a seu mandato europeu em 2009. Tornou-se secretário-geral da Liga Lombarda em 2012. Foi então que se impôs como o candidato lógico para a sucessão de Maroni na direção da Liga Norte.

O contexto histórico favoreceu essa ascensão. Evidentemente, os sonhos de Altiero Spinelli – um dos pais fundadores da União Europeia, feroz partidário de um federalismo continental – não se concretizaram. Pelo contrário: as altas esferas do bloco europeu são cada vez mais povoadas por burocratas que ditam suas políticas a governos eleitos, sem se preocupar com mandatos democráticos, e impõem a austeridade neoliberal sob a ameaça de um cataclismo a qualquer país que pretenda seguir outro caminho.

Na Itália, país que sofreu mais que outros as consequências do Tratado de Maastricht, o ano de 2014 assistiu ao advento de um dos governos mais arrogantes do pós-guerra, determinado não apenas a destruir o direito trabalhista por decreto, mas também a desmantelar algumas disposições fundamentais da Constituição de 1946, a fim de concentrar mais poder em suas mãos.

Matteo Renzi assumiu o cargo de presidente do Conselho em fevereiro de 2014. Ele chegou ali sem nem sequer ter sido deputado antes: assumiu o controle do Partido Democrático – enterrando de passagem as reivindicações tradicionais desse partido para encarnar uma força de esquerda – e fez um pacto com Berlusconi.
Beneficiando-se do apoio sem reservas do presidente da República, do principal sindicato patronal, dos bancos e das multinacionais, sem falar dos meios de comunicação, Renzi considerou-se popular o bastante para lançar um referendo sobre suas emendas constitucionais. O conjunto das forças políticas voltou-se contra ele, e os eleitores infligiram-lhe uma severa derrota [2]. Entre os jovens eleitores, que ele dizia representar, 80% escolheram o “não”. Entre os vencedores dessa rodada eleitoral, Salvini, que lutou vigorosamente contra o projeto de reforma, adquiriu uma estatura nacional.

Para chegar a isso, o chefe da Liga teve de operar duas grandes mudanças: adotar uma nova estratégia eleitoral e estabelecer uma relação inovadora com o digital. A Liga Norte, movimento separatista fundado por Bossi, definira dois inimigos: Roma, o centro da corrupção burocrática, e o sul, terra de vagabundos e parasitas.

O impasse dessa estratégia apareceu claramente no início de 2010. A separação não era nem real nem plausível, e a sobrevivência do partido – que oscilava entre 3% e 4% das intenções de voto nas pesquisas – estava em questão. Como secretário-geral, Salvini tomou um novo rumo: atacar Bruxelas em vez de Roma, e os imigrantes em vez dos habitantes do sul. Assim, falaria em nome de todos os italianos, de toda a nação, contra os opressores e contra os invasores. Abandonando a oposição entre duas Itálias, a Liga conseguiu reunir agricultores da Puglia, pescadores da Sicília, empresários venezianos e executivos lombardos, todos apresentados como vítimas de um poder distante e desalmado, e enfrentando um tsunami de estrangeiros.

Salvini começou explorando a frustração em relação à União Europeia, em um país onde cada orçamento deve ser aprovado pela Comissão, a qual exige sacrifício após sacrifício com o consentimento tanto da centro-direita como da centro-esquerda. Seu discurso de posse dava o tom: “Temos de reconquistar a soberania econômica que perdemos na União Europeia. Já estamos de saco cheio deles […]. Isso não é União Europeia, é União Soviética, um gulag de onde queremos sair, com quem mais estiver disposto a fazê-lo”. As eleições europeias de 2014 se aproximavam, e ele continuava sua ofensiva contra Bruxelas, exortando a Itália a abandonar o euro, uma ideia até então relegada às margens do discurso político pela esquerda e pela direita. A reivindicação não arrastou multidões. Longe de melhorar sua pontuação, a Liga perdeu três de seus nove deputados no Parlamento Europeu.

Foi então que entrou em cena Luca Morisi. O especialista em informática de 45 anos dirigia, com um sócio, a empresa Sistema Intranet, que não tinha nenhum funcionário, mas uma multidão de clientes institucionais. Ele assumiu Salvini em uma época na qual este já era inseparável de seu tablet e amplamente familiarizado com o Twitter, mas com uma presença ainda insignificante no Facebook. Seu novo consultor digital disse que ele precisava mudar de estratégia.

O Twitter é uma camisa de força, explicou. Segundo ele, a plataforma é fundamentalmente autorreferencial e privilegia as mensagens de confirmação. “As pessoas estão no Facebook e é lá que precisamos estar”, afirma. Uma equipe dedicada às redes sociais foi montada e logo se tornou um dos serviços mais importantes da Liga.

Morisi definiu o decálogo que o chefe do partido deveria seguir. As mensagens em sua página do Facebook tinham de ser escritas pelo próprio Salvini, ou dar essa impressão. Deveria haver publicações todos os dias, o ano todo, e comentários inclusive sobre eventos que acabaram de acontecer.

A pontuação deveria ser regular, os textos simples, as chamadas à ação recorrentes. Morisi também sugeriu usar, tanto quanto possível, o pronome “nós”, mais capaz de promover a identificação dos leitores, além de ler os comentários e, algumas vezes, responder a eles, a fim de sondar a opinião pública.
Resultado: a página de Salvini no Facebook passou a funcionar como um jornal, sobretudo graças a um sistema de publicação criado internamente e conhecido como “a besta”. O conteúdo é publicado em horários fixos e replicado por uma infinidade de outras contas; as reações são monitoradas continuamente. Morisi e seus colegas redigem entre oitenta e noventa status por semana, enquanto Renzi – então presidente do Conselho – e sua equipe não passam de dez. Para manter os seguidores, Morisi tem um truque: insistir nas mesmas palavras, mantendo uma linguagem que mais lembra uma conversa de boteco do que a fala de um político tradicional.

O tom das mensagens oscila entre a irreverência, a agressividade e a sedução. O chefe da Liga lança seus leitores contra o inimigo do dia (os “ilegais”, os magistrados venais, o Partido Democrático, a União Europeia), depois publica uma foto do mar, de seu almoço ou uma foto sua abraçando um militante ou pescando. A opinião pública se alimenta de um fluxo interminável de imagens de Salvini comendo Nutella, cozinhando tortellini, chupando laranja, ouvindo música ou assistindo à televisão. Diariamente, uma fatia de sua vida é assim compartilhada com milhões de italianos, seguindo uma estratégia na qual o público e o privado se misturam permanentemente. Esse ecletismo tem o objetivo de conferir-lhe uma imagem humana e reconfortante, permitindo que continue suas provocações. Sua mensagem: “Apesar da lenda que me apresenta como um monstro retrógrado, um populista pouco sério, eu sou uma pessoa honesta. Falo assim porque sou como você, então confie em mim”.

A estratégia de Morisi também se baseia na “transmidialidade”: aparecer na televisão enquanto publica no Facebook, analisar os comentários ao vivo e citá-los durante o programa; uma vez terminado o programa, montar resumos e postá-los no Facebook. Essa abordagem, na qual Salvini se tornou mestre, não tardou a dar frutos: entre meados de janeiro e meados de fevereiro de 2015, ele recebeu quase duas vezes mais tempo na mídia do que Renzi. Em 2013, não tinha mais do que 18 mil seguidores no Facebook; em meados de 2015, eles eram 1,5 milhão, e hoje são mais de 3 milhões – um recorde entre os dirigentes políticos europeus.

Um rival reduzido à impotência

Por muito tempo Salvini foi considerado por seus adversários como caprichoso e indisciplinado, capaz apenas de gesticulações midiáticas. Mas, em um mundo político marcado por uma extrema personalização [3], o secretário-geral da Liga tem um grande trunfo. Berlusconi se dirige à nação em seus canais de televisão, do grande escritório de sua vila em Arcore; Renzi organiza eventos multimídia em Florença, onde aparece com escritores e estrelas da música; Giuseppe “Beppe” Grillo, com seu espírito mordaz do tempo em que era comediante e arrastava multidões, depois de fundar o M5S prefere ficar na sombra e controlar seu movimento a distância.

Já Salvini aparece como um homem do povo, autêntico, que ama acima de tudo se misturar com as massas. Basta vê-lo em ação em uma discoteca, com um copo na mão, cercado por militantes e admiradores curiosos que aguardam uma foto: nenhum dirigente italiano poderia produzir tais imagens com tamanha naturalidade.

Enquanto a esquerda, ou o que resta dela, refugia-se nos símbolos do passado, se divide e se perde em lutas internas, Salvini vai falar com os trabalhadores nas fábricas, sempre arrastando as câmeras de televisão atrás de si. Ele lhes oferece um momento de atenção midiática após décadas de isolamento. Enquanto a esquerda gere seu eleitorado em miniatura multiplicando pactos e alianças, remoendo seus vãos apelos à unidade, ele brada contra as deslocalizações de fábricas para o exterior e pede medidas protecionistas contra a concorrência desleal de países que pisoteiam os direitos trabalhistas. Os resultados não demoram a chegar. Em 2016, a Liga tornou-se o segundo partido da “Toscana vermelha”, alcançando suas melhores pontuações nos subúrbios populares. Na Emília-Romanha, na Úmbria e nas Marcas – áreas outrora dominadas pelos PCI –, ela ganha terreno.

As eleições gerais de 4 de março de 2018 marcaram uma etapa decisiva. Aliada a Berlusconi e ao Fratelli d’Itália (“Irmãos do Norte”), um resíduo neofascista do pós-guerra, a Liga – que de passagem abandonou o complemento “Norte” – multiplicou sua pontuação por quatro e atingiu 17,3% dos votos. Embora sua base permaneça setentrional, ela agora também está no sul. Pela primeira vez, ultrapassou o Forza Italia, partido de Berlusconi.

No total, a coalizão de centro-direita teve 37% dos votos e conquistou o dobro de assentos da centro-esquerda, ainda que o verdadeiro vencedor tenha sido o M5S, liderado por Luigi Di Maio, um napolitano de 30 anos: ele ultrapassou de longe todos os outros partidos, com 32% dos votos.

Como nenhum dos três blocos conseguiu maioria parlamentar, foi preciso acertar um casamento de conveniência. Após três meses de blefes e negociações, o M5S e a Liga finalmente chegaram a um acordo sobre um “contrato de governo”, que descreve, em termos muito gerais, as áreas de atribuição de cada um. Um governo se formou em junho.

Salvini e Di Maio tornaram-se vice-presidentes do Conselho, enquanto o cargo de chefe de governo coube a um membro do M5S, Conte, um professor de direito desconhecido do grande público. Essa coalizão “verde-amarela” foi recebida por uma apoplexia geral na grande mídia, que execra o “populismo” em todas as suas formas. Então, quando dois de seus representantes se aliam…

As semelhanças entre os dois partidos são mais comportamentais do que políticas: veemência implacável, retórica antissistema, referências constantes aos inimigos internos e externos, invocação do “povo”, organização vertical, presença on-line agressiva que tende a transformar qualquer assunto em slogan ou em piada de mau gosto. Sua principal semelhança ideológica é a hostilidade a Bruxelas e o ceticismo em relação à moeda única, acusada de ser a responsável pela austeridade e pela estagnação econômica na Itália.

Mas os programas que cada um pretende colocar em prática para quebrar esses elos mostram uma grande divergência política. A Liga quer introduzir um flat tax (imposto proporcional), a receita clássica da direita para atrair os pequenos empresários que formam sua base social no norte.
Já o M5S deseja criar uma renda mínima garantida para ajudar os desempregados, os precários e os pobres, sobretudo no sul. Em termos de redistribuição, as consequências dessas duas medidas diametralmente opostas traçam uma linha de fratura entre os dois partidos na clivagem clássica entre direita e esquerda.

No governo, o M5S assumiu os ministérios com forte peso socioeconômico, enquanto a Liga ficou com aqueles que têm uma dimensão simbólica e identitária. Entre os novos ministros, 90% não tinham nenhuma experiência no poder executivo antes de serem nomeados. Salvini tornou-se ministro do Interior e Di Maio assumiu as rédeas do Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Assuntos Sociais. À primeira vista, o M5S, que venceu as eleições, conquistou os melhores postos – especialmente Infraestrutura, Saúde e Cultura –, os de maior impacto potencial sobre o eleitorado.

No entanto, a formação do governo esteve, desde o início, sob a vigilância do “Estado profundo” italiano: a presidência da República (Sergio Mattarella), o Banco da Itália, a Bolsa de Valores e, sobretudo, o Banco Central Europeu.

Este cuidou para que os ministérios que realmente importam em termos de economia (Finanças e Assuntos Europeus) não ficassem com nenhum dos dois partidos. Além disso, quando a coalizão propõe candidatos que Mattarella considera insuficientemente submetidos à União Europeia, o presidente não hesita em usar seu veto. Desse modo, a influência do M5S nas políticas orçamentárias foi amplamente neutralizada desde o início. Não é novidade que, assim que uma das propostas do M5S ou da Liga ameaçou transformar-se em lei (seja a renda mínima garantida ou a redução da idade de aposentadoria), a Comissão Europeia e seus emissários internos intervieram. Meses de luta acabaram adoçando as medidas e esvaziando-as de significado. Tanto que Di Maio não tem, até agora, nenhum sucesso para exibir em seu quadro de honra governamental.

“Liguização” da política

Salvini, por sua vez, maximizou sua presença. Como ministro do Interior, está quase sempre vestindo jaqueta de policial ou de fuzileiro, como um bom xerife. Ele confiou a seu braço direito o Ministério da Família, outra excelente tribuna para declarações de grande impacto na mídia. Mas reservou para si a mais importante responsabilidade moral de um governo honesto: a cruzada contra a imigração clandestina, efetivada por meio da negação dos direitos portuários a ONGs que salvam vidas no Mediterrâneo. Os anos de propaganda do M5S contra a “invasão” deixaram traços, forçando-o hoje a seguir a Liga nesse campo minado, às vezes com alguns discursos ineficazes contra atos xenófobos particularmente cruéis.

Poucos meses após a chegada ao poder da coalizão “verde-amarela”, não há mais dúvidas sobre qual cor domina.

Embora tenha tido metade dos votos de seu parceiro, a Liga impôs sua hegemonia, como se tivesse tido o dobro. As três eleições regionais realizadas entre janeiro e abril de 2019 transformaram essa inversão em um fato político frio. Todas ocorreram no sul, onde, em 2018, houvera um tsunami a favor do M5S. Em Abruzzo, ele passou de 39,8% para 19,7%, quando a Liga saltou de 13,8% para 27,5%. Na Sardenha, afundou (de 42,4% para 9,7%), enquanto o partido de Salvini progrediu ligeiramente (de 10,8% para 11,4%). Na Basilicata, o movimento de Di Maio viu sua pontuação cair pela metade (de 44,3% para 20,3%), quando a Liga triplicou a sua (de 6,3% para 19,1%). Aliada ao Forza Italia, ao Fratelli d’Italia e a vários outros grupos, ela assumiu o controle dessas três regiões. Assim, venceu em todas as frentes, juntando-se ao Forza Italia e à extrema direita em nível local, ao mesmo tempo que manteve a aliança com o M5S em Roma.
Por fim, a Liga venceu as eleições europeias de 26 de maio, com 34% dos votos contra 22,7% do Partido Democrático (PD) de Renzi, 17,1% do M5S e 8,8% do Forza Italia.

A Liga agora ocupa o centro da vida política italiana. Salvini dá as cartas e define as regras do jogo, forçando a mídia a seguir servilmente o que diz – suas promessas, suas provocações e seu “bom senso”, o qual, difundido há anos via televisão, jornais e internet, parece ter realmente se tornado um. A política italiana passou por uma “liguização” (leghizzazione). Agora é considerado normal – e isso se aplica à centro-esquerda – acusar ONGs de serem “táxis marítimos” mancomunados com passadores de imigrantes; afirmar que os cidadãos precisam de segurança em primeiro lugar; ou ver a imigração exclusivamente como um problema. Teses que outrora eram apanágio da Liga e dos círculos neonacionalistas são quase unanimemente admitidas.

Entre os dirigentes da direita eurocética dos grandes países da União Europeia, Salvini é o único que pode nutrir a esperança de dirigir um governo. Ele tem, de fato, um grande trunfo. Na Itália, o neofascismo está há muito tempo integrado ao sistema político, o que permite à Liga apresentar-se como “diferente”. Ideologicamente, embora pertença à direita radical, seu chefe nunca negou suas meias origens de esquerda. “Quando me confundem com um fascista, eu rio”, ele diz. “Roberto Maroni desconfiava que eu fosse um comunista dentro da Liga, pois eu era o mais próximo deles em alguns aspectos, inclusive no meu modo de vestir.” Em 2015, ele ainda era admirador do Syriza, partido de esquerda grego, e continua a enfeitar suas declarações com reivindicações outrora típicas da esquerda, como a necessidade de um banco público de investimento ou a revogação das reformas neoliberais do sistema previdenciário.

Salvini tem a vantagem de atuar em um contexto no qual a esquerda, reformista ou radical, praticamente desapareceu. Na França, na Espanha, no Reino Unido e até na Alemanha, as forças populares que resistem à doxa do poder estão sempre à esquerda do espectro político. Na Itália, não é assim. Ali entram em cena algumas condições socioeconômicas e geográficas. Nenhum outro país importante da União Europeia sofreu mais com a camisa de força do euro do que a Itália, cuja renda per capita quase não aumentou desde que a moeda única entrou em vigor [5] e cujas taxas de crescimento eram miseráveis.

Além disso, sendo uma península com a mais longa costa contínua de todos os países da União Europeia, a Itália tornou-se um entroncamento migratório, situação à qual o tradicional país de emigração, que tanto alimentou os fluxos populacionais mundiais, não estava acostumado e que se deu em um contexto de retração econômica e de feroz competição por emprego e assistência social. À medida que essas tensões se tornam cada vez mais elétricas, Salvini apresenta-se como o para-raios ideal para descarregar um potencial conflito de classes e transformá-lo em uma luta dos pobres contra os pobres.

Caso conquistasse o Palazzo Chigi, viria ele a se tornar um novo Berlusconi que, apesar de toda sua fanfarronice, não mudou muito? Sua atitude em relação à União Europeia é um teste decisivo. O Cavaliere se distinguiu mais por suas gafes do que pela má conduta no Conselho Europeu. Salvini é mais implacável e mais ideológico. Ele fez campanha nas eleições europeias de 2019 prometendo o surgimento de um bloco populista de direita – a “internacional soberanista”, idealizada por Steve Bannon, ex-assessor do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.

Por muito tempo, ele foi admirador de Vladimir Putin. Mas os Estados Unidos contam mais que a Rússia, e suas afinidades – em termos de estilo e personalidade – são muito maiores com o ocupante da Casa Branca do que com o do Kremlin. Isso significa, em particular, um alinhamento com a tentativa de Trump de subjugar a China. Em contraste, e para grande desgosto de Salvini, Di Maio recebeu na Itália o presidente Xi Jinping, que chegou cheio de presentes relacionados à Nova Rota da Seda.

Arranjos com Bruxelas

A diferença é igualmente visível no interior da União Europeia, onde o dirigente do M5S adotou uma abordagem muito mais radical, expressando um caloroso apoio aos “coletes amarelos” franceses, que Salvini considera vândalos.

No nível da União Europeia, o chefe da Liga contentou-se em batucar sobre as barras da “jaula” de Bruxelas, sem tentar quebrá-las. Ele aprovou o atual orçamento italiano, finalmente em consonância com o “parecer” da Comissão. Um compromisso assumido em um conflito institucional, e não apenas verbal, com a Europa parece menos provável do que uma adaptação pragmática ao status quo. A base social da Liga talvez seja hostil aos grandes bancos, às regulamentações comunitárias e às multinacionais, mas sua sensibilidade continua sendo indubitavelmente capitalista. Em seu tempo, Bossi também protestou contra Bruxelas, o que não impediu a Liga Norte de votar a favor dos Tratados de Maastricht e de Lisboa.

Para Salvini, a moeda única tem sido um espantalho útil em sua ascensão, mas que, uma vez que esta seja atingida, pode ser reacomodado. A denúncia das “fronteiras-peneiras” continua sendo seu verdadeiro passaporte para o poder. E, sobre esse assunto, a União Europeia não lhe impõe nenhuma dificuldade.

Notas

1- O caso Tangentopoli, que explodiu em 1992, era um vasto sistema de subornos entre líderes políticos e empresários. Deu origem à operação judicial Mani Pulite (“Mãos Limpas”).

2- Ler Raffaele Laudani, “Matteo Renzi, un certain goût pour la casse” [Matteo Renzi, um certo gosto pelo roubo] e “Matteo Renzi se rêve en Phénix” [Matteo Renzi pensa ser uma fênix], Le Monde Diplomatique, jul. 2014 e jan. 2017, respectivamente.

3- Ver Mauro Calise, La Democrazia del leader [A democracia do leader], Laterza, Roma-Bari, 2016.

4- Ler Stefano Palombarini, “En Italie, une fronde antieuropéenne?” [Uma revolta antieuropeia na Itália?], Le Monde Diplomatique, nov. 2018.

5- O salário bruto anual médio passou, em preços corrigidos, de 28.939 euros em 2001 para 29.214 euros em 2017.