A ilusão de voluntariedade negocial no processo penal
Por Aury Lopes Jr. e Daniel Kessler de Oliveira
Entre os fortes e fracos,
entre ricos e pobres,
entre senhor e servo
é a liberdade que oprime
e a lei que liberta.”[1]
Iniciamos a coluna de hoje com a emblemática passagem de Jean-Baptiste-Henri Dominique Lacordaire, a partir da indicação de leitura do professor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, pela profundidade da reflexão que ela nos convida e, até mesmo, instiga a fazer.
Havendo desigualdade entre os negociantes, a liberdade de negociação escraviza, sendo a lei, com sua natural imposição de limites e sua função de defesa de direitos, quem realmente garante a liberdade e, por consequência, a justiça da negociação.
Entre desiguais (forte/fraco) a igualdade é uma ilusão, um engodo, que mais se presta a “escravizar” o fraco do que libertá-lo.
Nesse tipo de relação, é a lei, enquanto limite de poder, quem efetivamente liberta e garante que não haverá abuso de poder. Isso, no terreno do processo penal, é crucial, na medida em que sempre há uma relação entre desiguais (Estado-individuo).
Em uma lógica neoliberal de culto ao Deus “mercado”, cada vez mais se fazem presentes vozes defensoras da “liberdade” de atuação e concebem a lei como um entrave, um obstáculo, um aprisionamento indevido.
Essa tendência mercadológica se percebe em uma cada vez maior flexibilização das regras processuais, em um incentivo para mecanismos de consenso, em uma ampla liberdade de composição pelas partes.
Isso se verificou na reforma do processo civil em 2015 e se percebeu claramente na reforma trabalhista de 2018.
Não adentraremos nas discussões acerca dos pontos positivos ou negativos das reformas nas outras áreas do Direito, pois o que nos interessa, aqui, é apenas evidenciar uma tendência de concepção mercadológica do Direito, buscando números, índices e efetivação dos resultados com o emprego do menor tempo e custo possíveis.
Obviamente que o processo penal não estaria de fora do alcance destes postulados. Justamente ele, o processo penal, que desde há muito é concebido como um empecilho para a realização da “justiça” e um instrumento de propagação de impunidade, com a “defesa de delinquentes”[2].
Assim, cada vez mais se percebe uma tendência à ampliação de mecanismos de consenso e o consequente afastamento do Estado-juiz dessa relação, seja pela via da banalização da delação premiada, da transação penal ou, agora, da proposta de plea bargaining contida no “pacote anticrime”. Mas a questão que fica é: (i) esse novo processo penal é constitucional? (ii) Quais os riscos da importação indevida de categorias processuais de outros ordenamentos?
O consenso não é novidade em nosso ordenamento, estando presente no Brasil desde a Lei 9.099/95. O PLS 156/2009, agora PL 8.045/2010, já disciplinava o consenso, mas o famigerado “pacote anticrime” do ministro Sergio Moro atropelou as discussões que vinham sendo feitas nas Casas legislativas para trazer de uma forma exacerbada e extremamente questionável o plea bargaining norte-americano.
Não é coincidência que essa visão mercadológica das relações venha sempre ancorada em uma ode aos Estados Unidos, em uma percepção de mundo perfeito e de infalibilidade de seus preceitos.
Não nos ocuparemos aqui de uma análise pormenorizada dos dispositivos do projeto “anticrime”, tampouco tornaremos a repetir o risco de importação de institutos que ignoram a matriz orientadora de nosso sistema processual, desprezando a incompatibilidade de alguns institutos da commom law, para um ordenamento de matriz romano-germânica (já escrito em outra coluna)[3].
O que nos inquieta é a frase que iniciou o presente ensaio: a inexistência de condições “negociais” entre desiguais.
Críticas vazias e reducionistas como as de que não pode haver igualdade entre o Estado e um delinquente merecem total desprezo, por ignorar a mais elementar concepção de que um indivíduo é inocente até o trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória (artigo 5º, LVII da CF), ou seja, até que se prove legalmente a sua culpa (artigo 8.2 CADH).
Portanto, nesse momento inicial do processo penal, o indivíduo é presumidamente inocente e assim deve ser tratado, não conceber isso é incidir na lógica maniqueísta do bem (Estado) x mal (réu), e aí não há razão alguma para se discutir ou se ter processo penal.
Lembrando o que leciona Jacinto Coutinho: “O Estado não só era um reflexo da aglutinação da força de todos como, principalmente, havia sido criado para, sobretudo, garantir o cidadão, o singular, o indivíduo, se fosse o caso contra todos e contra ele mesmo”[4].
A negociação em total e evidente desigualdade esvazia o processo enquanto uma garantia, olvidando-se da função estatal de garantidor dos direitos, e transforma tudo em negócio, em efetividade.
A tendência já demonstrada em outros ramos do processo invade o processo penal, esquecendo-se dos riscos da teoria geral do processo civil. Operar a partir de uma lógica civilista desumaniza o processo, como nos advertiu o já maduro Carnelutti, no processo penal “res iudicanda é um homem, tal como o juiz”[5].
Portanto, o uso desmedido de mecanismos negociais e a ausência de limites claros podem representar um alto custo em termos de um processo penal democrático.
A lógica negocial acaba por criar um sistema que busque a confissão, naquilo que Ricardo Gloeckner questiona: o que poderia explicar o fato de que em pleno século XXI, após a derrocada dos sistemas inquisitoriais (segundo muitos autores) e o repúdio em relação à tortura que aparece em diversos tratados de Direitos Humanos se ouvisse falar e se pudesse sustentar uma defesa novamente do ritual confessional do processo penal?[6]
O dispositivo da barganha exclui, inicialmente, o controle jurisdicional das provas de acusação, já que a validade das cartas probatórias somente aconteceria com a instauração do processo penal, com isto, o palco principal deixa de ser a instrução judicial e se transfere para a investigação preliminar[7].
A busca pela confissão não é nova em termos de processo penal, ela libera o juiz do peso de sua decisão, esvazia as possibilidades de questionamentos do sistema e, portanto, de recursos e constrói com isso um sistema “infalível”.
Como referem Ricardo Gloeckner e Augusto Jobim do Amaral: “ao confessar, o acusado não apenas dá o primeiro passo no sentido de buscar a emenda como também adere, subjetivamente, ao ‘tratamento’ que lhe será aplicado mais adiante”[8].
Certamente isso trará processos mais céleres e reduzirá sobremaneira o número de processos em tramitação. Mas, para isso, teremos um grave efeito colateral, o qual, acreditamos, não valha o risco.
O plea bargaining se faz presente em mais de 90% dos processos criminais americanos, atingindo 97% em casos federais[9] e até 99% em algumas regiões[10], o que conduz ao superencarceramento, levando os EUA ao primeiro lugar isolado em número de presos.
O Brasil, que já figura no pódio do encarceramento (3º lugar), certamente irá verificar um grande aumento de sua massa carcerária.
Em um sistema penal em colapso como o aqui existente, certamente os efeitos em termos de violência urbana e organização criminosa que decorrem de um total descontrole do sistema penitenciário serão muitos e graves.
Há muito já se demonstra que problemas de segurança pública não são resolvidos com o acúmulo de presos em celas superlotadas. Pagamos o preço deste descaso prisional com os altos índices de violência.
Apostar em encurtar esse caminho do preso ao presídio sem discutir políticas penitenciárias é insistir no erro histórico que nos trouxe até aqui.
Certamente quem terá os melhores acordos, os melhores ganhos e conseguirá diante desse caos cumprimento de penas alternativas não serão aqueles que representam o preferencial público do processo penal brasileiro.
Os poderosos poderão seguir se beneficiando, pois o sistema não é para eles, não foi para eles pensado e há quem se iluda com prisões domiciliares e sistemas diferenciados para penas extremamente altas.
Os destinatários finais da violência estatal serão os mesmos. Que sem um processo para lhes garantir um mínimo de direitos ver-se-ão tendo que negociar com quem não lhes dá opção, com quem, pela desigualdade, faz não haver escolha, e a confissão (ainda que inverídica) será o melhor negócio. O mundo já conhece os efeitos de um processo penal que busca extrair a confissão do acusado.
Obviamente que existem diferenças entre tortura e uma negociação no processo penal, conforme leciona de forma precisa John H. Langbein: há, claro, uma diferença entre ter os seus membros esmagados ou sofrer alguns anos a mais de prisão se você se recusar a confessar, mas a diferença é de grau, não de espécie[11].
Retomando Lacordaire, no processo penal a relação que se estabelece é entre forte e fraco[12], de modo que a pseudoliberdade (voluntariedade) negocial só serve para oprimi-lo.
É preciso a lei e o devido processo para libertar do abuso do poder punitivo. Punir é necessário e civilizatório, mas no marco da legalidade e através do devido processo penal.
[1] Conférences de Notre-Dame de Paris, Henri Lacordaire, éd. Sagnier et Bray, 1848, p: 246.
[2] Basta analisar a exposição de motivos do Código de Processo Penal de 1941, ainda em vigor, para que isso fique claro.
[3] https://www.conjur.com.br/2019-fev-22/limite-penal-adocao-plea-bargaining-projeto-anticrimeremedio-ou-veneno.
[4] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. “Direito Penal e Reforma Processual” in Observações Sobre os Sistemas Processuais Penais. Org. Marco Aurélio Nunes da Silveira e Leonardo Costa de Paula: Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2018. P:298.
[5] CARNELUTTI, Lições Sobre o Processo Penal. Tradutor Francisco José Galvão Brubo. Campinas: Bookseller, 2004.
[6] GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Nulidades no Processo Penal: introdução principiológica à teoria do ato processual irregular. 2ª ed. Salvador: Jus Podivm, 2015. : 268.
[7] ROSA, Alexandre Morais da. Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. 4ª ed. rev. atual. e ampl. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. P: 532.
[8] AMARAL, Augusto Jobim do. GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. A delação nos sistemas punitivos contemporâneos. In Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 128, 2017.
[9] https://www.conjur.com.br/2019-fev-15/limite-penal-tribunais-eua-sao-tao-dependentes-plea-bargain.
[10] LANGBEIN, John H. Tortura e Plea Bargaining. In: “Sistemas Processuais Penais”. Org. Ricardo Jacobsen Gloeckner. Florianópolis, Ed. Empório do Direito, 2017, p. 141.
[11] LANGBEIN, John H. Tortura e Plea Bargaining. In Sistemas Processuais Penais. Org. Ricardo Jacobsen Gloeckner – 1 ed.- Florianópolis: Empório do Direito, 2017. P: 134-150.
[12] A hipossuficiência do réu é estrutural e estruturante do seu lugar (é jurídica, portanto, não econômica, política etc.), pois é somente ele quem sofre a incidência do poder punitivo, que nada mais é do que o poder de todos contra o um, individuo. Não sem razão Ferrajoli qualifica os direitos e garantias fundamentais como “la ley del más débil”, sendo o réu o “débil” no processo penal frente ao poder estatal de investigar e punir. Sobre o tema, consulte-se a obra Derechos y Garantías: La Ley del Más Débil, Madrid, Editorial Trotta, 2010.
Aury Lopes Jr. é advogado, doutor em Direito Processual Penal e professor titular da PUCRS.