As duas regras-princípios maiores – destinação universal dos bens e controle pessoal sobre o fluxo produtivo, liberdades pessoais. O correto é uma síntese. Bem comum exige socialização com personalização, socialismo com liberdades

Frei Constantinus van Gestel O.P., no livro “A Igreja e a questão social”, traduzido e adaptado pelo padre Fernando Bastos de Ávila S.J. (Agir, Rio de Janeiro, 1956, p. 311), transcreve dois textos de Pio XII, que mostram que o cristianismo, seguindo as lições de Cristo, identificou as idéias “regnare” (reinar, governar) e “servire” (servir) e por isso combateu a concepção pagã do Estado.

O cristianismo defende uma ética onde a autoridade pública é um servidor do povo. O Estado deve servir, obedecer ao povo, ao povo organizado. 

A ética cristã (e natural, judaica e presente nas grandes religiões) defende uma “organização social” (relações sociais, inclusive de produção, de trabalho) vinculada ao bem comum (tendo como finalidade primária obter um “conjunto de condições exteriores – sociais – necessárias ao desenvolvimento das qualidades dos cidadãos, de suas funções, de sua vida material, intelectual e religiosa”), sujeito ao poder (ético e jurídico) da sociedade (do povo), titular do bem comum.

Vejamos o texto de Van Gestel, expondo as ideias democráticas populares de Pio XII:

A esta concepção pagã do Estado, Pio XII opõe, no seu discurso de Natal de 1942, a concepção cristã: as duas passagens seguintes condensam de maneira admirável o pensamento católico:

A razão, esclarecida pela fé, prevê, na organização social, uma posição fixa e honrada para cada indivíduo e para cada sociedade particular. Sabe, para aludir somente ao ponto mais importante, que toda a atividade política e econômica do Estado se ordena [deve servir a este fim] à realização durável do bem comum, isto é, do conjunto de condições exteriores necessárias ao desenvolvimento das qualidades dos cidadãos, de suas funções, de sua vida material, intelectual e religiosa. Isto porque, de um lado, as forças e as energias da família , como de outros grupos naturais, primários, são por si só insuficientes, e, de outro lado, a vontade salvífica de Deus, não criou no seio da Igreja, uma outra sociedade universal a serviço da pessoa humana e da realização dos seus fins religiosos.”

“Quem deseja que a estrela da paz se eleve e paire sobre a sociedade humana deve colaborar em despertar uma concepção do Estado e uma ação política que se inspirem, numa disciplina razoável, num nobre sentimento de humanidade, na consciência cristã da responsabilidade.

Promover o reconhecimento e a propagação da verdade que ensina que, mesmo na ordem temporal, o sentido profundo, a legitimidade moral universal do regnare é, em última análise, o servire”.

O texto acima de Pio XII foi dito no Natal de 1942, sendo um dos textos importantes contra o nazismo e o fascismo. No Natal de 1942, a Igreja defendeu claramente uma concepção democrática popular.

Isso foi feito na linha tradicional da Igreja. Afinal, quando Cristo identificou a idéia de governar com a de servir (desta idéia veio o termo “servidores públicos”, para os agentes públicos), seguia as tradições de Moisés e dos profetas. Explicitava que o cristianismo exige a democratização radical de todas as relações sociais, das estruturas sociais (unidades produtivas, famílias, poderes e órgãos do Estado, Igreja, cidades, escolas, hospitais etc).

A sociedade, usando, para isso, acima de tudo, do Estado, pode E DEVE impor o cumprimento dos deveres sociais, pode regulamentar o uso, tributar, expropriar, confiscar, dar perdimento, proibir o excesso de bens (o projeto de Emenda constitucional da CNBB e do MST sobre o limite da propriedade da terra é um bom exemplo) etc. Se estes atos estatais forem racionais (éticos, conformes à consciência do povo), não ofendem em nada ao direito natural, ao contrário, decorrem do mesmo (da consciência do povo, dos princípios partilhados em certa medida por todos).

A síntese de São Tomás de Aquino – acatada por Campanella, Ketteler, Leão XIII, Pio XI, Pio XII e pelo Concílio Vaticano II – exige o destino universal dos bens, o bem comum, o domínio eminente da sociedade (como corolário do poder inerente à sociedade, como explicava o padre Suarez). O principal é positivar o direito natural primário de todos aos bens para que todos vivam dignamente (com felicidade etc).

Como direito natural secundário, subordinado, limitado, há o direito ao controle (ao uso, à administração, à gestão) dos bens, mediante o trabalho pessoal (“o suor de teu rosto”, “Gênesis” 3), ficando claro que somos meros administradores (controladores), inclusive de nossas habilidades pessoais (dons de Deus).

O direito ao controle, mediante o trabalho, deriva do direito natural primário, da destinação universal dos bens. A regra “os frutos pertencem a quem planta” é apenas uma regra operacional dentro da regra MAIOR da destinação universal dos bens.

Destinação universal dos bens é a regra primária. Controle pessoal e fruição da própria produção, dos frutos do trabalho é REGRA SECUNDÁRIA. A boa ética é uma síntese destas regras, exige destinação universal dos bens com controle pessoal do fluxo produtivo. O máximo de socialização com o máximo de personalização. 

Este direito natural secundário (de controle) é a base do direito à autogestão, à co-gestão, às pequenas propriedades cooperativadas limitadas (formas de controle do trabalhador sobre os meios de produção, artesões, pequena burguesia, camponeses, pequenos lojistas, pequenos produtores etc) e a um planejamento estatal participativo. Viver do suor do rosto alheio configura furto de tempo (de energia, de atividade) e deveria ser punido.

O direito natural secundário deve estar sempre subordinado ao direito natural primário, pois deve realizar (concretizar) o direito natural primário de todos aos bens suficientes para uma vida digna e feliz. Este direito natural primário tem como base jurídica o princípio da destinação universal dos bens, o direito ao uso comum, à comunhão, ao bem comum (a participar deste, que é o bem de todos e de cada um). Deve assegurar, se possível, a todos, a titularidade (ser sujeito), o controle sobre as próprias vidas e o processo social (a libertação, finalidade maior da teologia da libertação).

Os latifúndios e os monopólios privados (inclusive as grandes fortunas privadas) não encontram respaldo algum no direito natural. Ao contrário, nascem da usurpação dos bens comuns (por direito natural pertencentes) a todos, da exploração do trabalhador (condenada como usura, ou como furto, e em vários textos bíblicos, como, por exemplo, na carta de Tiago, em Isaías, em Amós etc), de fraudes, mentiras etc.

Os monopólios privados (oligopólios, da oligarquia) eram chamados, em manuais de teologia do século XIX (por exemplo, o “Compendio de Theologia moral” para uso do Seminário de Olinda em Pernambuco, do padre Manoel do Monte Rodrigues de Araújo (editado pela Livraria Agostinho de Freitas Guimarães, em 1853) de “conspiração”, ou seja, acordos secretos ( de caráter criminoso), visando lesar a sociedade, as pessoas.

A economia brasileira é dominada (escravizada) por trustes e cartéis (os maiores são multinacionais) e latifundiários.

Os capitalistas absenteístas, como apontava Alceu, controlam a economia e o Estado (corrompem o Estado pelo controle da mídia, pelo financiamento privado das campanhas, pelo vasto controle sobre a mídia, pela corrupção e mesmo por chantagens).

Examinando o ordenamento jurídico positivo concreto, quando vemos uma pequena propriedade rural camponesa (ou pequenas empresas urbanas), com 20 ou 30 hectares (e mesmo algo um pouco maior), fruto do suor do rosto do camponês (sob o controle deste), exclamamos: eis a vinha de Naboth. É justa, pois é pequena, limitada, fruto do suor do rosto do camponês, produz para a sociedade, está nos limites do bem comum etc. Deve ser respeitada, ainda que sujeita ao bem comum (formas participativas de planificação etc) e devendo existir em estruturas cooperativas, em formas comunitárias.

O mesmo vale para os bens dos artesãos, dos artistas, dos pequenos produtores etc. Mesmo estes bens, se há pessoas com necessidades extremas (doenças etc) podem, no entanto, ser retirados pela sociedade.

Diante do latifúndio da firma de Cecílio Rego, de oito milhões de hectares (quase três Suiças, quase um Portugal, que tem nove milhões de hectares de território), resmungamos e protestamos: “é demais!” 500 hectares já seriam demais, deveria ser o teto constitucional (provisório, até ser diminuído), como busca o projeto de emenda constitucional da CNBB.

Os oito milhões de hectares não são fruto do suor do rosto de Cecílio (este vive em escritórios, casas ou carros , todos com ar refrigerado), o título de propriedade é fruto da grilagem.