Sobre a relação da Revolução francesa com a religiosidade, um bom exemplo é o caso do padre Roux. Ignasi Terradas Saborit, na obra “Religiosidade na Revolução Francesa” (Editora Imago, Rio de Janeiro, 1998, pp. 77-81), elogiou o padre Roux, escrevendo:
“Jacques Roux: a crítica da liberdade sob o capitalismo
Jacques Roux, “Sacerdote da diocese de Angouléme, apóstolo e mártir da Revolução”, estava à frente do grupo de “enragés”, ou raivosos, que acusavam a política econômica da Convenção de favorecer os traficantes de dinheiro e os especuladores e açambarcadores de bens.
Em junho de 1793, Jacques Roux apresentava, em nome do grupo, o Manifesto dos Enragés1, assim chamado a partir da reação de indignação e aplausos que desencadeou na Convenção Nacional.
Em breve, no mês de setembro, Robespierre [um de seus erros, infelizmente, mas teve grandes acertos] conseguiria mandar prender os principais integrantes do grupo; alguns de seus argumentos foram depois retomados por Hébert, mas sem a mesma fundamentação, originalmente exposta por Roux.
O padre Rouxe dirigiu-se à Convenção em 25 de junho de 1.793 na qualidade de alto funcionário municipal de Paris, eleitor do departamento e membro do clube dos Cordeliers1:
“A liberdade não passa de um fantasma quando uma classe de homens pode reduzir à fome com total impunidade. A igualdade não passa de um fantasma quando o rico exerce, graças ao monopólio, o direito de vida e morte sobre seu semelhante. A república não passa de um fantasma quando a contra-revolução atua, dia após dia, através do preço dos artigos, pago por três quartos dos cidadãos com lágrimas nos olhos… Apenas os ricos tem se aproveitado das vantagens da Revolução nos últimos quatro anos. A aristocracia dos comerciantes, mais terrível que a aristocracia e eclesiástica, invadiu as fortunas individuais e os tesouros da República num jogo cruel; entretanto, ignoramos o término de suas exações, já que o preço das mercadorias aumenta de maneira espantosa da noite para o dia… A liberdade de comércio é o direito de usar e fazer utilizar, não é o direito de tiranizar e impedir o uso. Será que as propriedades dos velhacos seriam algo mais sagrado que a vida do homem”2?
Roux investe contra o sistema da Economia Política que a Revolução parece garantir; pede uma legislação contra os agiotas, os açambarcadores e os usuários por considerá-los contra-revolucionários, sem esquecer a repressão aos nobres que medram no exército e aos contingentes de emigrados políticos que, coniventes com seus contatos dentro do país, manobram contra a Revolução. Denuncia também a inflação e os salários baixos que beneficiam os capitais investidos. Afirma serem a interpretação e a letra das leis claramente prejudiciais aos pobres e privilegiarem de modo sistemático os ricos. Não aceita as justificativas dadas pelos responsáveis das finanças na Convenção; assim, considera que o montante da dívida pública não deve justificar uma inflação, aludindo ao caso inglês, que apresenta uma dívida pública enorme e uma inflação sensivelmente menor que a da França.
(…)
Roux detestava Fauchet porque via em sua doutrina difusa do amor e a da fraternidade, bem como em sua deferência para com a maçonaria, um claro sintoma de hipocrisia e de complacência com algumas alianças aristocráticas.
Apesar de Marat ter-se oposto ao “jacquesrutismo”, Roux publicou um jornal, com o pseudônimo de “sombra de Marat”5, no qual atacou sistematicamente os “negocistas” e liberticidas da Revolução, ou seja, a aristocracia dos negociantes de dinheiro, açambarcadores e burocratas. O projeto de Robespierre e dos jacobinos em geral, enquanto donos da Convenção, não passa, segundo os “jacquesrutistas”, de uma burocratização, um deferimento legislativo e executivo da Revolução, fenômeno que os radicais interpretavam usando o termo “liberticídio”.
“Povo, até quando fecharás os olhos à luz? Detestas os curas, e com razão, já que incessantemente embrutecem os homens para melhor despojá-las e acorrentá-los. Detestas os nobres, e com razão, porque pisoteavam seus vassalos e roubavam, ultrajavam, tudo em nome do despotismo e da lei, sem dar qualquer contribuição aos gastos públicos; e suportas agora os banqueiros, que são devoradores de homens, os banqueiros cuja pena biliosa calunia, por toda parte, a nossa Revolução; os banqueiros cujo luxo vergonhoso é um insulto ao valor e à virtude dos republicanos. Reflete!, povo de quem tantas vezes se abusou, que os banqueiros governam a seu gosto com a abundância e a fome: que reduzem teus exércitos, de um extremo a outro, à agonia e à escassez; que te açambarcam o numerário, os víveres, os soldos; que desde sempre devoraram as fortunas públicas e individuais, arruinaram uma infinidade de famílias através de falências fraudulentas; tu te convencerás da necessidade de aniquilar essa seita carnívora que despovoa a terra com o veneno lento da agiotagem.
Também te exorto a perscrutar as fortunas individuais. As fortunas dos que se tem enriquecido desde o começo da Revolução, numa época em que os bons cidadãos fizeram tantos sacrifícios e se arruinaram; sem dúvida esses novos ricos são egoístas, velhacos, contra-revolucionários; (…) Assim, deves eliminar todos esses maus cidadãos que adquiriram domínios imensos de quatro anos para cá; esses egoístas que se aproveitaram das desgraças públicas para enriquecer; esses deputados que, antes de sua inesperada ascensão ao areópago, não tinham nem um escudo para gastar a cada dia e atualmente ocupam mansões adornadas… esses deputados, por fim, que, depois de conquistar a confiança do povo, sugaram sua existência até a última gota de sangue”.
Roux afirma que “há opressão no corpo social quando um único de seus membros é oprimido”. Seu ataque contra as impurezas da Revolução não tem aliados possíveis devido a sua intransigência. Assim como Robespierre o faria de cima para baixo, Roux defende, de baixo para cima, uma moral violenta em prol da igualdade, à qual Marat e Hébert se opuseram por considerá-la impolítica, embora Hérbert tenha tentado capitalizá-la depois da prisão de Roux.
Não se cansava de pedir a guilhotina para os negocistas, os agiotas e qualquer suspeito de enriquecimento. Como é lógico, o furor “jacquesrutista” se detinha mais nas fortunas difíceis de esconder, o que provocava a também lógica reação contrária da Convenção na medida em que esta era responsável pelo comércio pacífico entre os cidadãos. Desta forma, as acusações de Roux à Convenção iam se tornando cada vez mais descaradas, o que resultou na sua detenção: “Pois bem! Nenhuma das medidas saudáveis decretadas contra os agiotas e açambarcadores foi executada. Quereis conhecer a causa disto? É que à testa das administrações estão os antigos procuradores, notáveis e advogados, por conseguinte, os homens interessados em fazer o povo odiar a Revolução; é que lá também estão os comerciantes, os lojistas, os falsos patriotas que detestam o regime republicano…6”
Por outro lado, Roux também não deixava de defender os sacerdotes revolucionários e, contra a cobiça e a especulação burguesa da Revolução, opõe a pobreza e a virtude evangélica7.
Roux preconizava o protecionismo econômico e ao mesmo tempo defendia a liberdade de comércio, sem chegar a defini-la claramente. Em sua proposta de reforma da Constituição, pedia o aditamento à mesma do seguinte artigo: “A nação protege a liberdade de comércio; mas castiga com a morte a agiotagem e a usura”. Esta proposta foi muito aplaudida no clube dos Cordeliers e recebeu, à época, o apoio decidido de Hérbet, que assim se pronunciou: “Devemos toda nossa consideração a uma idéia tão feliz porque, mais do que disfarçar os males dos infelizes, ela faz cortar o mal pela raiz”. (…)
Depois de uma detenção e de uma libertação, será definitivamente preso. Roux tentará o suicídio e morrerá das conseqüências dos ferimentos que se infligiu. Sua condenação o acusava de “ter pregado a violação das propriedades e o envilecimento das autoridades constituídas”.
O padre Roux foi um dos principais curas vermelhos na Revolução Francesa e deveria ter seus textos reeditados, pois foi um dos precursores da teologia da libertação”.
1 Enraivecidos.
1 ROUX, J. Adresse présentée à la Convention Nationale, Paris, 25-VI-1.793 (Manifeste des Enragés).
2 Para caracterizar o crime que Roux, especialmente, combatia com tanta tenacidade, os lioneses criaram os vocábulos “negocista” e “negocismo”. Assim como o liberticídio era o crime por excelência das cartas privilegiadas, o negocismo era os dos que, independentemente de suas origens, se aproveitavam da situação econômica da revolução para açambarcar recursos e gerar mais miséria entre a população. Em Lyon, Chalier acusou deste crime os negociantes que, ademais, pareciam buscar aliança com o rei da Sardenha para seus objetivos contra-revolucionários. Cf. Tableaux, op. Cit., p. 377.
5 Le Publiciste de la République française participação l’ombre de Marat, l’Ami du Peuple, n° 6 e 8, agosto de 1.793.
6 Id., n° 260, p. 3.
7 Id., n° 264, 266 e 268 (p. 469).