As ligações entre catolicismo, radicalismo, socialismo democrático e trabalhismo, apontadas por João XXIII, quando era núncio, em Paris

Os textos de João XXIII, Édouard Herriot, Leon Bourgeois e dos radicais mostram a reaproximação entre catolicismo, trabalhismo, socialismo democrático, radicalismo e democracia

Sobre as afinidades (pontos comuns) entre catolicismo, democracia popular-social ou participativa, radicalismo, nacionalismo, socialismo reformismo e solidarismo, apontadas em vários textos brilhantes de Gramsci, há um bom texto na biografia de João XXIII, publicada, no Brasil, com o título “João XXIII” (São Paulo, Editora Três, 1974, p. 133):

“Um dos amigos de Dom Roncalli na capital francesa foi o socialista Édouard Herriot. As entrevistas dos dois eram freqüentes e nas reuniões a que compareciam, ambos eram vistos em animadas palestras, que deixavam confusos os que conheciam as idéias e tendências que pareciam colocar um e outro em posições antagônicas”.

“Numa de suas habituais conversas, Dom Roncalli [o futuro papa João XXIII] citou várias passagens do teórico radical Leon Bourgeois, para confirmar a tese que defendia, deixando admirado o velho socialista, que não podia acreditar que entre os livros de leitura do núncio pudessem figurar as obras daquele autor”.

“Dom Roncalli disse-lhe, em tom de brincadeira, que era bem pouco o que os separava e parece que Herriot acabou se convencendo disto, pois no fim de sua vida decidiu voltar à Igreja Católica, da qual se afastara na mocidade. Influência de Dom Roncalli”.

Édouard Herriot (1872-1957) foi Premier do Gabinete de Ministros franceses (1924, 1925, 1926 e 1932, tal como presidiu a Assembléia Nacional Francesa, em 1947).

Herriot listava, como “ilustres antepassados” do radicalismo, homens como: Voltaire, Condorcet, Diderot, Benjamin Constant, “o grande e querido Lamartine, religioso mas anticlerical”, Ledru-Rollin, Camille Pelletan, Leon Bourgeois (1851-1925) e outros nomes.

Bourgeois foi autor da linha solidarista do radicalismo, do socialismo democrático. Uma linha extremamente próxima do solidarismo cristão (no Brasil, hoje, havia inclusive o Partido Humanista da Solidariedade, com este ideário, bem exposto pelo padre Fernando Bastos de Ávila, no livro “Solidarismo”).

Dos autores referidos por Herriot como sendo os antepassados do radicalismo, somente Diderot foi, numa fase da vida, tudo indica, ateu. O próprio Diderot, durante quase toda a vida, foi teísta e há historiadores que dizem que morreu panteísta, ligado às idéias de Sêneca, dos estóicos e meio spinozista. Spinoza era profundamente religioso, como mostram todos seus textos e o mesmo ocorre com Marilena Chauí, sua ilustre discípula, no Brasil.

Jean Antoine Condorcet (1743-1794) era jusnaturalista, sendo inclusive fisiocrata (no apreço ao campesinato, ponto que será revivido no populismo russo e americano, no século XIX). Da mesma forma, eram jusnaturalistas autores como: Volnei (“A lei natural”, 1793); Kant; o padre ex-jesuíta Raynal; Rousseau; Montesquieu; o padre Sieyès; Jean-Jacques Burlamaqui (“Princípios do direito natural”, 1747); John Locke (“Segundo ensaio sobre o governo civil”, 1690); Henri David Thoreau (“Desobediência civil”, 1849); Schiller; José Martí (“A idade de ouro”, 1889); Vattel; e milhares de outros democratas, o que, só por si mesmo, prova a tese deste meu blog sobre os pontos comuns entre catolicismo e socialismo democrático e trabalhismo.

Os textos do padre Sieyés, do velho marquês de Mirabeau, de Marat, Robespierre, Danton, Saint-Just, dos jacobinos, Paine, Jefferson, Benjamin Franklin, dos carbonários, Buonarrotti, Lamennais, Mazzini, Quinet, Mickiewiez e outros também abonam a ligação entre democracia, jusnaturalismo e religião.

Em 1781, Condorcet escreveu “Reflexões sobre a escravidão dos negros”, atacando a escravidão, na mesma linha de Bento XIV, em 1751, tal como dos jesuítas.

Condorcet, no livro “Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano” (1794), ensinou que o processo histórico é movido pela luz da razão, pelos ditames da razão, da verdade. Ele dividiu a história em dez épocas e soube ver na Idade Média a origem (na verdade, a retomada) do governo representativo. Nestes pontos, como em outros pontos, Condorcet retomou as idéias antigas da Igreja e coincide perfeitamente com o catolicismo. Tal como Chateaubriand, Condorcet ensina que o governo representativo desenvolveu-se na Idade Média, com o movimento das comunas, a partir do século XI.

A Igreja destaca, no processo histórico, o papel da razão natural das pessoas e também a ação do “Noous”, uma Inteligência Suprema (o Espírito Santo) que coordena e movimenta tudo, por mediações, agindo com a colaboração humana.

Esta foi a lição de Pio VI, na carta decretal de 10.03.1791, onde escreveu que “a natureza dotou especialmente o gênero humano” com “a razão”, “pela qual ele se distingue dos outros animais” e que o ser humano tem, pelo livre arbítrio (“em mãos do seu próprio alvedrio”, cf. Eclo. 15,15-16), o poder de escolher entre “o bem e o mal”. Ou seja, a inteligência formula racionalmente os juízos sobre a bondade das condutas, elabora os preceitos naturais e racionais para uma vida digna, em harmonia com o bem comum e se os atos da vontade (as condutas) se adequam a estas regras racionais, a conduta é boa. A prática dos “preceitos” (das regras racionais e benéficas a todos) é salvífica (“se os quisesse observar, estes o salvassem”) e, assim, nas palavras de Pio VI, “o homem já desde o começo” deve “ordenar a sua vida segundo a norma da razão, da humanidade e da religião”. As pessoas devem “reunir-se em sociedade civil” e, para tal, devem “constituir uma forma de governo, em virtude da qual os direitos da liberdade fossem circunscritos pelas leis [positiva] e pelo poder [pelo Estado]”, para assegurar o bem comum, ou seja, condições de vida plena para todos.

Pio VI lembrava Santo Agostinho, citando o seguinte texto deste santo: “é, pois, um pacto geral da sociedade humana” (“Confissões”, livro III, cap. VIII) a obediência. A obediência legítima nasce de um “pacto” implícito, do consentimento, da liberdade, de atos da vontade que se movem em torno “do que é reto e justo”, de regras exigidas pelo bem de todos.

Condorcet era girondino. O mesmo vale para políticos e escritores como Thomas Paine, Faucher, Lanjunais, Vergniaud ou Brissot, o que demonstra que existiram bons girondinos e explica parte do elogio do excelente livro de Lamartine, autor ligado à Igreja. A maior parte dos jacobinos era teísta, como prova a vida de Robespierre.

Condorcet deixou bons textos, mas também cometeu o erro de contrapor a noção de direitos naturais à noção de bem comum (ou utilidade maior da sociedade), pois escreveu que “tudo deve tender não à maior utilidade da sociedade, princípio vago e fonte profunda de leis ruins, e sim à manutenção do gozo [fruição, uso no sentido lato] dos direitos naturais”.

Na época, os que falavam em interesse da sociedade usavam este argumento para legitimar a monarquia centralizada, daí o erro de Condorcet. Ele deveria ter entendido que o “gozo” (satisfação) dos “direitos naturais” é a satisfação das necessidades e aspirações humanas, ou seja, “a maior utiidade da sociedade”, o bem comum.

Condorcet acertou ao esposar o jusnaturalismo e, nisso, seus textos são ainda atuais. Mas, ele deveria ter visto que a defesa dos direitos naturais abrange a defesa dos direitos das famílias, das unidades de vizinhança, de trabalho, das cidades, enfim, da sociedade em todos seus “círculos” (como viu Pontes de Miranda) e que os direitos pessoais devem ser protegidos e tutelados, mas limitados pelo bem comum, como apontaram inclusive velhos papas como Pio VI e Pio VII, ao criticarem o individualismo da “Declaração dos Direitos do homem e do cidadão” de 1789 (que tem muito trigo e algum joio, também).

Sobre os erros individualistas – por exemplo, a propriedade quiritária, o grande capital e a livre concorrência, as bases do capitalismo, por causa principalmente dos fisiocratas, ideólogos dos capitalistas e dos latifundiários – no bojo da “Declaração dos direitos do homem”, de 1789, há um bom trecho do documento “A doutrina social da Igreja na formação sacerdotal”, da Congregação para a Educação Católica (1989, editado no Brasil, pela Vozes). O texto diz: “a Pacem in Terris, além de fundar os direitos do homem sobre a lei natural inerente à Criação e ordenada para a Redenção, corrige um certo aspecto individualista da concepção tradicional da reciprocidade dos direitos-deveres, inserindo-os num contexto de solidariedade e sublinhando as exigências de ordem comunitária que ela comporta”.

Assim, a doutrina da Igreja recomenda a preservação dos direitos naturais da pessoa, mas dentro dos limites do bem comum, regrados pelo bem da sociedade, no bojo de uma visão de todo (que preserva as partes, como a concepção do corpo místico), “sublinhando” (ressaltando) os direitos da sociedade, do povo.

Herriot dizia que os radicais eram “filhos dos jacobinos”. Estava correto e vale a pena lembrar que Robespierre, Louis Antoine de Saint Just (1767-1794, republicano socializante que presidiu a Convenção e era firmemente teísta) o bispo Henrique Gregório (1750-1831), Jean-Paul Marat (discípulo de Rousseau, logo, jusnaturalista com fundamentação religiosa) e o padre Jacques Roux tinham boa religiosidade. Este ponto também foi destacado por Gramsci, em seus cadernos do cárcere. Além disso, há o Círculo Social, liderado por outros dois bispos católicos. 

O bispo Henrique Gregório foi o primeiro a prestar juramento à constituição civil do clero em 1789 (que tinha bons pontos como a eleição dos bispos, mas erros de ingerência do Estado na Igreja, como apontaram os Papas), participou no Parlamento, votou pela condenação de Luís XVI e foi o primeiro a reclamar, como deputado e bispo, a instauração da República.

Gregório defendeu os judeus e obteve, em 1794, principalmente por seus esforços, a abolição da escravidão, defendendo os negros e escravos. Em 1794, foi devido principalmente a seus esforços que o Estado da França aboliu a escravidão. Defendeu a criação pelo Estado do Instituto, do Conservatório de artes e ofícios etc. Esteve na oposição contra o belicismo de Napoleão e se opôs à Restauração dos Bourbons. Teve uma morte cristã, assistido pelo abade Guillon. Deixou livros como “Ensaio histórico sobre as liberdades da Igreja galicana”, “Anais da Religião, 1795-1803” e outras.

Conclusão: o movimento romântico, o socialismo utópico, o socialismo democrático, o movimento democrático, o solidarismo, o nacionalismo e outras correntes mostram bem que o catolicismo acolhe tudo o que há de bom e verdadeiro nestas correntes.