Bento XVI, na encíclica “Deus caritas est”, ensinou sobre as atribuições (funções, fins) do Estado:
“28. Para definir com maior cuidado a relação entre o necessário empenho em prol da justiça e o serviço da caridade, é preciso anotar duas situações de fato que são fundamentais:
a) A justa ordem [organização, planejamento] da sociedade e do Estado é dever central da política. Um Estado, que não se regesse segundo a justiça [pelo ideal do bem comum], reduzir-se-ia a um grande bando de ladrões, como disse Agostinho uma vez: « Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia? » [Tirando a justiça, o que são os reinos, senão grandes latrocínios?”, frase linda de Santo Agostinho]. Pertence à estrutura fundamental do cristianismo a distinção entre o que é de César e o que é de Deus (cf. Mt 22, 21), isto é, a distinção entre Estado e Igreja ou, como diz o Concílio Vaticano II, a autonomia das realidades temporais. Estado não pode impor a religião, mas deve garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiões; por sua vez, a Igreja como expressão social da fé cristã tem a sua independência e vive, assente na fé, a sua forma comunitária, que o Estado deve respeitar. As duas esferas são distintas, mas sempre em recíproca relação”.
Bento XVI também destacou bem o agostinianismo político, no bom sentido, da doutrina da Igreja. Como destacou Santo Agostinho, o Estado deve estar sujeito às regras éticas. Em outras palavras, o Estado deve estar sujeito às idéias práticas do povo, às idéias do bem comum, e se infringir estas regras, cometendo iniquidades, mesmo que veiculadas na forma de leis e sentenças, estas serão como que atos de força, como que atos de “grande bando de ladrões”. Se o Estado permite a espoliação do povo, a exploração do povo, é um Estado ladrão e neste sentido Cristo chamou os banqueiros e cambistas de ladrões, de exploradores.
Na seqüência, Bento XVI destaca que o Estado deve realizar a “justiça”, ou seja, libertar os oprimidos, amparar as pessoas, realizar o bem comum, pois a “justiça” é principal virtude humana, sendo o conjunto das regras da “razão prática”, exigidas pelo bem comum:
“A justiça é o objetivo e, conseqüentemente, também a medida intrínseca de toda a política. A política é mais do que uma simples técnica para a definição dos ordenamentos públicos: a sua origem e o seu objetivo estão precisamente na justiça, e esta é de natureza ética. Assim, o Estado defronta-se inevitavelmente com a questão: como realizar a justiça aqui e agora? Mas esta pergunta pressupõe outra mais radical: o que é a justiça? Isto é um problema que diz respeito à razão prática;”
“mas, para poder operar retamente, a razão deve ser continuamente purificada porque a sua cegueira ética, derivada da prevalência do interesse e do poder que a deslumbram, é um perigo nunca totalmente eliminado”.
“Neste ponto, política e fé tocam-se. A fé tem, sem dúvida, a sua natureza específica de encontro com o Deus vivo — um encontro que nos abre novos horizontes muito para além do âmbito próprio da razão. Ao mesmo tempo, porém, ela serve de força purificadora para a própria razão. Partindo da perspectiva de Deus, liberta-a de suas cegueiras e, conseqüentemente, ajuda-a a ser mais ela mesma. A fé consente à razão de realizar melhor a sua missão e ver mais claramente o que lhe é próprio. É aqui que se coloca a doutrina social católica: esta não pretende conferir à Igreja poder sobre o Estado; nem quer impor, àqueles que não compartilham a fé, perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta. Deseja simplesmente contribuir para a purificação da razão e prestar a própria ajuda para fazer com que aquilo que é justo possa, aqui e agora, ser reconhecido e, depois, também realizado”.
“A doutrina social da Igreja discorre a partir da razão e do direito natural, isto é, a partir daquilo que é conforme à natureza de todo o ser humano. E sabe que não é tarefa da Igreja fazer ela própria valer politicamente esta doutrina: quer servir a formação da consciência na política e ajudar a crescer a percepção das verdadeiras exigências da justiça e, simultaneamente, a disponibilidade para agir com base nas mesmas, ainda que tal colidisse com situações de interesse pessoal. Isto significa que a construção de um ordenamento social e estatal justo, pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete, é um dever fundamental que deve enfrentar de novo cada geração. Tratando-se de uma tarefa política, não pode ser encargo imediato da Igreja. Mas, como, ao mesmo tempo, é uma tarefa humana primária, a Igreja tem o dever de oferecer, por meio da purificação da razão e através da formação ética, a sua contribuição específica para que as exigências da justiça se tornem compreensíveis e politicamente realizáveis”.
Como o texto mostra, o papel da religião é de purificar (aperfeiçoar, melhorar, por dentro) o papel da razão, é fortalecer a razão (as regras racionais das virtudes aperfeiçoam a natureza, especialmente a razão).
O Estado, todo o “ordenamento social e estatal”, deve tutelar, com as regras racionais da razão prática (oriundas do diálogo), a natureza humana, deve proteger as pessoas, realizar os direitos humanos.