Um elogio de Feuerbach a São Tomás de Aquino, ao tomismo, a doutrina social da Igreja

Ludwig Feuerbach (1804-1872), discípulo de Spinoza e um dos mestres de Marx (influenciando bastante no início), em seu livro “A essência do cristianismo” (Campinas, Ed. Papirus, 1988, p. 193), ressaltava a ligação da doutrina da Igreja com o melhor do pensamento antigo, da Paídéia (“os antigos”):

“Os cristãos, de fato, “sacrificavam” o “indivíduo”, isto é, aqui o indivíduo enquanto parte, ao todo, ao gênero, à comunidade. A parte, diz Santo Tomás de Aquino, o maior pensador e teólogo cristão, sacrifica-se a si mesma, por um instinto natural, para a conservação do todo. “Toda parte, por natureza, ama mais o todo do que a si mesma. E todo indivíduo por natureza ama mais o bem do seu gênero do que o seu bem individual. por isso, todo ser naturalmente ama mais a Deus, o bem universal, do que a si mesmo (“Summae P. I., q. 60, art. V). Portanto, neste sentido os cristãos pensam como os antigos. Tomás louva os romanos (de “Regim. Princ.”, liv. III, c. 4) pelo fato deles terem colocado a sua pátria acima de tudo e de terem sacrificado o próprio bem-estar ao bem-estar dela”.

O texto de Feurbach resume mesmo parte da doutrina social da Igreja.

Os cristãos pensam como os melhores dos antigos. A idéia de “justiça” (de bem comum, que é o objeto desta virtude cardeal) está nos textos de Homero, de Hesíodo, nos poetas e trágicos gregos, tal como nos textos dos filósofos (Xenófanes, Heráclito), historiadores e no pensamento filosófico-religioso. Destas fontes, migrou para o ensino de Sócrates, de Platão (o livro “Protágoras”, “República” e especialmente “As leis”), sendo mais detalhado nos textos de Aristóteles e dos estóicos. Há praticamente as mesmas ideias nas fontes semitas. 

O ideal da justiça é o ideal da razão pautando a vida pessoal e social, sendo esta a essência do conceito de virtude (“Arete”). O elogio da razão era também o ideal de Isócrates (436-338 a.C.), do “logos”, um orador aluno de Sócrates, que redigiu obras como “Contra os sofistas” (390 a.C.), “Panegírico” (380 a.C.) e “Nicoles”. Também era o ideal de Paidéia de Demóstenes. Demóstenes e Isócrates discordavam sobre o que fazer perante o poder de Filipe, pai de Alexandre, mas concordavam no mesmo ideal civilizatório, do poder do “logos”, da razão.

As idéias persas-semitas, do mazdéismo, também influenciaram Pitágoras, pois seu professor foi Ferécides, um fenício (como Tales de Mileto), nascido em Tiro. O mesmo ocorreu nas doze cidades asiáticas, onde teve início a filosofia grega, cidades como Éfeso e outras. 

Segundo Diógenes Laércio, Ferécides (de origem fenícia) foi “o primeiro grego que escreveu sobre a alma e os deuses” e atribuem a este filósofo várias predições (profecias), o que mostra a influência oriental, semita, talvez hebraica. Ferécides ensinava que “naõ se deve honrar o ouro e a prata”. Diógenes transcreve uma carta de Ferécides a Tales, enviando a este suas obras, antes de morrer. Uma carta entre dois gregos de origem fenícios. O pitagorismo tem influência do orfismo e do mazdéismo, correntes ligadas à cultura semita.

Os próprios gregos atribuem o alfabeto grego ao alfabeto fenício.

Cadmos, um fenício, fundador de Tebas na Beócia, teria trazido o alfabeto fenício. Tales seria um descendente de Cadmos. Diógenes Laércio diz que “muitos” consideravam Tales como “o primeiro que defendeu a imortalidade da alma” e estudos os astros (indício da influência da cultura suméria, persa e fenícia). Pitágoras influenciou Platão através de Filolau e de outros pitagóricos, cujas obras foram compradas por Platão, como consta em todas as biografias de Platão.

Como explicou Heródoto, toda a religiosidade grega vem do Egito e do oriente (influência semita, persa, fenícia etc) e a religiosidade grega é a base da filosofia da Paidéia, como fica claro nos textos de Tales, Ferecides, Xenófanes, Heráclito, Anaxágoras, Pitágoras, Sófocles, Sócrates, Platão, Aristóteles, os estóicos e outros.

Estas idéias filosóficas e da religiosidade natural-racional, boa parte de origem semita, coincidiam com os textos bíblicos, hebraicos, semitas, e foram, assim, aceitos pelo cristianismo (que manteve o melhor da Paidéia, cf. Werner Jaeger), sendo a filosofia cristã uma síntese do melhor da filosofia clássica, da Paidéia, em mescla com o melhor das ideias semitas hebraicas.

O “sacrifício” de Cristo é apresentado como exemplo maior e o próprio Cristo ensinou que não há amor maior que dar a própria vida pelo próximo, pelo bem dos outros, da sociedade. Augusto Comte, nas pegadas de Saint-Simon, um grande cristão socialista, cunhou o termo “altruísmo” como contraposto (contrário) ao “egoísmo” (pecado) e os próprios positivistas terminaram por reconhecer que o altruísmo é a mesma coisa que o velho amor ao próximo (a caridade).

Conclusão: a “pátria” é a sociedade onde nascemos e a regra vale para toda sociedade, em seus diversos níveis, da família, bairro até o mundo.

O cristianismo, como bem expôs Santo Agostinho e os Santos Padres (especialmente Santo Ambrósio e São Basílio), tem, em suas entranhas, uma ética social, baseada no bem comum, no bem da sociedade e de cada pessoa concreta.

O Estado e o poder, tal como a organização da economia, só são legítimos se servirem ao bem de cada pessoa e de toda a sociedade.

Conclusão: o primado da sociedade (domínio eminente da sociedade), ou seja, do bem comum, é a essência da concepção política cristã e está presente também nos melhores textos da Paidéia, do pensamento hindu, muçulmano (neste ponto, basta ver os elogios de Santo Tomás a Avicena e a Averróis) e nos textos mais antigos de todas as culturas, como a chinesa, a japonesa, coreana, dos povos da África, do Tibet, de nossos povos indígenas etc.