Pio IX, numa carta à Academia Romana (22.07.1871 ou 1873), explicou que o ato, praticado pelo Vaticano várias vezes ao longo dos séculos, de desligar os governados do dever de obediência aos governantes, nada tinha com a infalibilidade doutrinária.
Tinha fundamentação em “cruciais circunstâncias” e principalmente no “comum consenso das nações”, da admissão unânime, “quando o bem comum o pedia”. Em outras palavras, se o governante ferisse o bem comum e agisse de forma contrária ao consenso, às vezes, as circunstâncias impeliam o Vaticano a declarar que os católicos não deveriam obedecer ao governante, ao tirano. A premissa é clara: o poder é legítimo se for pautado pelo consenso e pelo bem comum. É o núcleo da concepção política da Igreja.
Este texto de Pio IX foi citado por Gladstone, num livrinho chamado “Os decretos do Vaticano em suas relações com a lealdade civil” (Rio, Typ. Laemmert, 1875, p. 15), que está na minha biblioteca, junto com praticamente todos os livros que citei nesta obra.
Pio IX criticou a tentativa de “falsear a idéia da infalibilidade pontifical; e o maior desses erros é querer aí perfidamente incluir o direito pontifical de depor os reis e desligar os povos dos juramentos de fidelidade”. Em suma, Pio IX ensinou, em alguns textos, que o poder político reside (deve ser regido) no “comum consenso”, na adequação do poder (especialmente das regras positivas de conduta, promulgadas pelo poder legislativo) ao “bem comum”, à razão, ao bom senso, aos direitos humanos naturais.
O poder de depor governantes era, na verdade, um ato declaratório, que declarava solenemente que o governante exorbitava, que prejudicava, o bem comum, que feria os direitos humanos naturais.
A lição é clara: o bem comum, os direitos humanos naturais (que é a lei natural no sentido subjetivo), os ditames da razão comum a todos, do consenso, das necessidades humanas etc são os marcos (os limites, as fontes, as regras objetivas) do poder.
Vejamos o texto de Pio IX sobre o exercício do direito dos papas de desligar os súditos da obediência aos governantes:
“Este direito foi, sem dúvida, bem exercido pelos Sumos Pontífices daquele tempo em cruciais circunstâncias; mas ele nada tem que ver com a infalibilidade papal, nem nasce dela, mas da autoridade do Pontífice. Demais, o exercício deste direito naquelas idades de fé, que consideravam o Papa como juiz supremo da cristiandade e que reconheciam as grandes vantagens que advinham dele nos grandes conflitos entre povos e soberanos, era unanimente admitido pela jurisprudência pública e comum consenso das nações.
Agora, as condições do tempo presente são muito diferentes, e não faltam maliciosos que confundam duas coisas tão diversas, as quais são o juízo infalível do papa no que toca às verdades reveladas, e o poder que exercia, em virtude da sua autoridade, quando o bem comum o pedia”.
No mesmo sentido, São Boaventura, sucessor de São Francisco de Assis e um dos 33 Doutores da Igreja, escreveu: “a Igreja pode, por motivos suficientes, depor os reis e os imperadores. Quais são os esses motivos suficientes? Os delitos dos príncipes ou a necessidade pública”, ou seja, se o governante ferir os direitos do povo, há a necessidade de derrubar o governante. Se o governante não atender às necessidades do povo, deve ser deposto.
A “necessidade pública” significa as necessidades da sociedade, o bem comum, os ditames da razão, os direitos humanos naturais.
Os “príncipes” (os que exercem o principado, os mais altos cargos de poderes) devem ser depostos ou confrontados (se possível e preferencialmente de forma pacífica) se atentarem contra a razão, o bem comum, os direitos humanos naturais, o consenso etc. Este era também o núcleo dos sermões de Santo Antônio de Pádua e, mais tarde, do padre Vieira.
Por esta razão, Santo Ambrósio, bispo de Milão, excomungou e excluiu da Igreja o Imperador Teodósio, o Grande, porque este permitiu um massacre em Tessalônica, em 390 d.C, como represália.
Como lembrou São Gregório VII, na carta ao bispo de Metz, “outro pontífice romano, Zacarias, depôs um rei dos francos, não tanto por suas iniqüidades, mas porque não era apto para exercer tão grande poder e, em seu lugar, colocou Pepino, pai do Imperador Carlos, o Grande, desligando todos os francos do juramento de fidelidade que lhe tinham feito”.
O “juramento” expressa a idéia de acordo, de consenso, necessário para a assunção e o exercício do poder. Se o ocupante de cargo público extrapolar os limites da razão e do bem comum, ou se for incapaz das tarefas, deve ser deposto.
Como explicou Pio IX, no texto acima transcrito, o poder de depor imperadores e reis não nascia da infalibilidade, mas sim do dever-“poder de proteção” que a Igreja tem em relação ao povo. Este ponto também foi explicado desta forma nos textos do padre Luís de Molina que, com Pedro Fonseca, criou a teoria do molinismo, mostrando como é possível conciliar a liberdade com a atividade planificadora de Deus. O mesmo raciocínio vale para a atividade planificadora da sociedade e do Estado, por imitação (a socialização deve estar em harmonia com a personalização, para ser legítima).
O grande padre Luis de Molina (que não deve ser confundido com Miguel de Molina) defendeu o direito da sociedade de depor governantes, no livro “De Justitia et Iure” (“Da Justiça e do Direito”). Molina defendeu o direito de revolução: “qualquer do povo pode, por direito natural, defender os inocentes da tirania e da opressão” (disp. 106 da obra referida). É o mesmo sentido das obras do padre Mariana (“De rege et Regis institutione”, Toledo, 1598), dos monarcómacos e da teoria da revolução, bem exposta por vários Papas, especialmente Paulo VI e que consta no “Catecismo” da Igreja, do Vaticano.
No mesmo sentido, São Gregório VII, de origem camponesa, criticava alguns reis de seu tempo denominando-os filhos do diabo e dizia que o papa “pode dar ou tirar, a quem quiser, os impérios, os reinos” (as dinastias não são a base da legitimidade); “pode depor imperadores e desobrigar os súditos do juramento de fidelidade” (como ocorreu com os imperadores Henrique IV ou com Frederico II, em 1245). A expressão “a quem quiser” significava que Deus não atribuiu o poder a nenhuma pessoa específica, o que refuta qualquer pretensão legitimista, com base em troncos hereditários, dinásticos.
Vale a pena ressaltar que estas velhas teorias repercutiram e foram fontes longínquas de movimentos progressistas: o poder de desligar, de depor, foi usado pelo povo dos EUA, na “Declaração da Independência”, nestes termos:
“Nós, portanto, representantes dos Estados Unidos da América, reunidos em assembléia geral… solenemente publicamos e declaramos que estas colônias unidas… foram desligadas de toda a obediência à Coroa inglesa e que desde este momento fica dissolvida toda a subordinação política ao Estado da Grã-Bretanha”.
Conclusão: a idéia subjacente à Declaração da Independência dos EUA de desligar da obediência tem a mesma base teórica das deposições de reis dos tronos, feitos pelo Vaticano. A idéia subjacente é que se o governante tornar-se tirano, estará dissolvido o pacto formado no momento da aclamação e pelo juramento de fidelidade.
Estas idéias estavam presentes nos institutos jurídicos fundamentais da “common law”, na teoria contratual (de consenso) do poder. Já existiam na Idade Média, com a plena chancela da Igreja. O poder (a assunção, a titularidade, o exercício, cada regra positiva etc) depende, assim, do consenso, da razão, do bem comum, dos direitos humanos naturais, das necessidades e interesses legítimos do povo etc.