Destinação universal dos bens. Deus fez os bens para todos terem um pedaço digno, mais uma parte pública, acessível a todos, uma boa economia mista

Nas palavras de João XXIII, na “Mater et Magistra” (parágrafos 215, 216 e 217), “a concepção” da Igreja sobre a “convivência social”, que é sua “doutrina social”, ensina que “o princípio fundamental desta concepção consiste em cada um dos seres humanos ser e dever ser o fundamento, o fim e o sujeito de todas as instituições em que se expressa e realiza a vida social”.

O cristianismo condena o quietismo, a alienação, a reificação do ser humano, ou seja, a redução da pessoa a um objeto manipulável, sem consciência.

A condenação da Igreja ao quietismo (lá por 1690) abriu o Século XVIII, foi a base do Iluminismo cristão, do melhor do pensamento democrático, de origem cristã. 

João XXIII condenou o capitalismo liberal e estatal, pelo mesmo fundamento: o desenvolvimento só é justo e autêntico, se for participativo, do “homem todo” e de “todos os homens” (economia mista, como frisou o padre Liberatore), de todos os seres humanos.

O capitalismo liberal e o estatal, ao se basearem no trabalho assalariado, reificam o ser humano, reduzem a pessoa a uma engrenagem.

O socialismo humanista, participativo, personalista, uma boa Democracia popular, é cooperativista, participativo, baseado na co-gestão, na autogestão, no planejamento participativo, na difusão de bens, no distributismo, na mediania.

A doutrina da Igreja quer a superação do regime assalariado, instaurando formas comunitárias e cooperativas de gestão dos meios de produção, para que o setor cooperativo seja o setor principal da economia.

Neste setor, como explicou João XXIII, as pequenas e médias unidades econômicas familiares, na cidade e no campo, estariam associadas. Da mesma forma, o setor cooperativo teria grandes unidades cooperativas, como ocorre em Mondragón, um dos maiores complexos cooperativistas do mundo, criado com a ajuda essencial de um padre.

A doutrina da Igreja busca um amplo distributismo com formas de planejamento participativo e democrático. Mably esboçou o ideal cristão social. 

Na “Mater et magistra”, João XXIII ensinou que, “quando as estruturas e o funcionamento de um sistema econômico comprometem a dignidade humana dos que nele trabalham, enfraquecem o sentido de sua responsabilidade [participação] ou impedem seu poder de iniciativa, este sistema é injusto”.

Paulo VI, na “Populorum Progressio” (n. 6), ensinou que é uma aspiração legítima do ser humano, um direito natural, “ter maior participação nas responsabilidades”, na gestão dos processos produtivos, na gestão dos ativos, nos processos decisórios, no poder etc.

João Paulo II, na “Laborem exercens”, repetiu o mesmo ensinamento: a verdadeira democracia é cooperativa, participativa, popular, não-capitalista, economia mista, distributista etc e rejeita inclusive o sistema assalariado, por reificar o ser humano.

Os bens, tal como todas as instituições e leis positivas, estão destinados naturalmente e racionalmente a todas as pessoas.

O povo deve ser o destinatário e também o titular (ser titular é ser “sujeito”) dos “cargos”, das “funções”, das formas de serviço ao próprio povo. Como ensinou Bento XVI, na encíclica “Deus Caritas est” (de 2006):

É verdade que a norma fundamental do Estado deve ser a prossecução da justiça [ou seja, orientar todos os atos da vida para o bem comum, combinando justiça distributiva e social-legal]. A finalidade de uma justa ordem social é garantir a cada um, no respeito do princípio de subsidiariedade, a própria parte nos bem comuns, um pedaço bom (como um rolete de morcilla, marcela, bem cortado, para todos). Isso mesmo sempre o tem sublinhado a doutrina cristã sobre o Estado e a doutrina social da Igreja”.

O “princípio básico”, que está na base da “doutrina social”, é a “dignidade sagrada” de cada “pessoa”.

A “doutrina social” “indica” um “caminho seguro”: a ordenação (regulamentação, estabelecimento) “das relações de convivência social segundo critérios universais [gerais, presentes em todas as pessoas], correspondentes à natureza e aos meios diversos de ordem temporal”, “conformes igualmente às características da sociedade contemporânea”.

Trocando em miúdos, em bom português, a “doutrina social” da Igreja é baseada na “lei natural”, em idéias nascidas do exercício da razão, da luz da razão. Dentre estas idéias racionais, creio que a principal é o princípio da destinação universal dos bens, que decorre da sacralidade de cada pessoa, do direito natural de cada pessoa aos bens necessários para uma vida digna e plena.

Como ensinou Bento XVI, a fé “ajuda a razão a ser mais ela mesma”, permite que a razão possa “ver mais claramente o que lhe é própria”.

A “convivência humana” deve ser pautada por “critérios universais”, ou seja, pelas idéias consensuais, comuns, gerais, unversais, presentes em todos. Neste ponto, os textos de autores como Habermas, Apel, John Rawls, MacIntyre, Amartya Sen, Joan Robinson e Hanna Arendt (1906-1975, especialmente “A condição humana”) são bem acolhidos pela Igreja, pois coincidem, na apreciação do diálogo, com a concepção cristã de política.

Em regra, as idéias comuns e consensuais a todos correspondem “à natureza”, são verdadeiras e isto se deve, também, à igualdade fundamental da natureza humana. Este é o fundamento antropológico da democracia. 

Cada pessoa é única e irrepetível, mas tendo a mesma natureza humana, a mesma matriz (todos filhos de Adão e Eva), por isso somos todos iguais e passíveis de inteligir as mesmas idéias fundamentais e importantes sobre a vida prática.

A lei natural é igual para todos. Como as idéias nascem da incidência (da abstração) da luz da inteligência (multiplicada pelo diálogo) sob os seres, as idéias expressam os interesses, os projetos, as necessidades, as aspirações, os planos das pessoas.

Assim, uma sociedade justa é aquela que tem a “convivência social” pautada pelas idéias de todas as pessoas (pela participação de todos nos bens, no poder etc) e só uma sociedade assim assegura e promove o bem comum, o bem de todos.

O bem comum é o bem difundido, controlado e generalizado a todas as pessoas, o que inclui o respeito à subjetividade criadora de todas as pessoas, o respeito à participação das pessoas nos processos decisórios que lhes interessam.