Um exemplo da influência democrática de Aristóteles, como apontou João Paulo II, é o livro de Marsilio de Pádua, “Defensor da paz” (24.06.1324), onde este frade franciscano, nos anos 1300, fiel aos ideais democráticos de São Francisco de Assis (e de Santo Antônio de Pádua), defendia a soberania da sociedade (do povo, da “universitas civium”, defendia a Democracia).
As idéias principais de Marsílio são baseadas nos textos de Aristóteles (chamado com respeito de o “Filósofo”). Marsílio cita 81 vezes o livro “Política” e 14 vezes a “Ética a Nicômaco”.
Marsílio citava, também, outras obras de Aristóteles, como a “Retórica”, a “Física”, a “Metafísica”, “Da alma”, “Da geração” e “Analíticos” etc.
Marsílio citava, ainda, Cícero e Sêneca, dois autores estóicos (Cícero combinava uma platonismo aberto com estoicismo, a mesma linha de Filon de Alexandria). Como era católico, Marsílio citava os livros dos Santos Padres, especialmente de Santo Ambrósio, Santo Agostinho, São Jerônimo, São João Crisóstomo, Santo Isidoro de Sevilha, São Bernardo, Egídio Romano, Tiago de Viterbo, as “Decretais” de Graciano e outras obras dos Santos Padres, para abonar a tese da soberania da sociedade, do povo.
Marsílio, seguindo a tradição bíblica e dos Santos Padres (com respaldo também nas idéias gregas e romanas, especialmente Aristóteles, Cícero e Sêneca), demonstrou que as leis positivas, tal como todas as instituições políticas e jurídicas, devem ser ditames (regras, idéias) práticos da razão, das ideias prática do povo e, se forem assim, serão também a expressão da vontade de Deus. Em outras palavras, utilizava o conteúdo da máxima “vox populi, vox Dei”.
Marsílio, no livro “O defensor da paz” (Petrópolis, Ed. Vozes, 1997, pp. 124-125), citava Aristóteles:
“… no livro IV da “Ética a Nicômaco, cap. 5º, no tratado sobre a Justiça, [Aristóteles] ter declarado: “Por esse motivo não permitimos que um homem governe senão de acordo com a razão (Aristóteles, “Ética a Nicômaco”, V, 11), isto é, a lei” [lei natural e a positiva, baseada na natural, na razão] (…). O Filósofo [Aristóteles] manifesta idêntica opinião no capítulo 9º desse livro ao dizer: “De fato, querer que o espírito governe, é de certa forma o mesmo que desejar que Deus e as leis governem” (…)
Em seguida, explicando seu ponto de vista, [Aristóteles] acrescenta: “Porque a lei é razão isenta de toda paixão (Aristóteles, “Política”, III, 16), como se quisesse dizer que a lei é razão ou conhecimento sem a influência do apetite”.
Marsílio ressaltou que “o objetivo precípuo da lei” positiva, do Estado, “é concorrer para o bem comum e para o que é justo na cidade”. Assim, os atos que proporcionam e garantem o bem comum chamam-se de justos, dado que a justiça tem como objeto o bem comum. Como fica evidente, é a doutrina social clássica da Igreja.
O livro de Marsílio foi condenado pelo Vaticano não por estas teses corretas (o bom trigo), mas sim por favorecer as pretensões do Imperador, do partido gibelino, que tentava controlar a Igreja, cerceando a independência da Igreja. Marsílio chegou a defender que o Imperador poderia até destituir e corrigir o Papa e também disse que os textos papais e da Igreja estavam subordinados ao Imperador. Estes erros, joio, sim, foram condenados pelo Vaticano, pois a Bíblia e a fé não estão sujeitas ao poder temporal.
O poder temporal é que está sujeito, naturalmente, à consciência das pessoas.
O livro de Marsílio tem duas partes: a primeira, sobre a teoria política baseada em Aristóteles; a segunda, sobre a estrutura da Igreja. Na primeira parte, Marsílio exagerava o poder do Imperador e permitia ingerência estatal indevida na Igreja. Na segunda parte, defendia o poder dos bispos (especialmente através dos Concílios) e ataca o Vaticano.
Marsílio respeitava o papa como o bispo de Roma e até o primado do Papa, mas o subordinava ao Imperador e aos demais bispos reunidos. Por estas razões foi condenado. Suas idéias democráticas são idéias clássicas e dos Santos Padres e não foram condenadas. A parte boa de Marsílio é a defesa do Colégio de Bispos, que devem ter ampla parte na gestão da Igreja, na forma de Sínodos (Conferências Episcopais), e na forma de Colégios de Padres, nas Dioceses.
A condenação do livro de Marsílio ocorreu pelos erros acima especificados, especialmente na parte sobre eclesiologia (subordinação da Igreja ao Estado, quando estes devem ser independentes entre si) e na parte sobre o exagero do poder do Imperador.
Marsílio permaneceu católico durante toda a vida e suas idéias políticas eram baseadas em Aristóteles, Sêneca, Cícero, Santo Agostinho e os Santos Padres, que eram as mesmas fontes e idéias presentes nos textos de Santo Tomás de Aquino e neste ponto estava certo, expressando, assim, pontos da Doutrina social da Igreja.
Conclusão: os textos de Marsílio sobre a origem e a natureza das leis positivas, como expressão da razão, presente em todos, no povo, foram retirados da Bíblia, dos Santos Padres e de autores gregos e romanos, como Aristóteles e Cícero, de fontes aristotélicas e estóicas, junto com os dados da Bíblia.
A tese da soberania do povo está também, implícita, nos textos de Santo Tomás de Aquino, tal como, mais tarde, na Escola de Salamanca e foram revividos nos textos de Suárez e Bellarmino. Estes escritores católicos ensinavam que a razão, presente em todos (este ponto era frisado contra os averroístas), é a base da consciência da sociedade e esta é a matriz, a rainha natural, da sociedade e do Estado.