Em 26.11.2006, o Bispo Crepaldi, o Secretário do Pontifício Conselho de “Justiça e Paz”, do Vaticano, na cidade histórica de Salamanca (na Espanha, onde estudou Santo Inácio de Loyola), proferiu uma conferência, no XLII Simpósio de Teologia Trinitária, sobre a humanidade, a democracia e a Trindade.
As Comissões de Justiça e Paz foram criadas para expressarem o pensamento social da Igreja. Existe a do Vaticano, como existe uma em cada país católico (a do Brasil, agiu pela libertação do padre Francisco Collazos e em outras boas causas) e em cada Dioceses.
Vejamos como o Vaticano considera o ideário democrata, popular, comunitário e social a base da doutrina social da Igreja.
Dom Crepaldi foi bem claro quando destacou que a definição da democracia como “regime político que defende os direitos da pessoa” é uma concepção cristã , natural, logo racional. Contém, em si mesmo, também os elementos da democracia no sentido “processual”, exigindo o “acesso às eleições livres” e o “debate público”, o “diálogo público”.
O núcleo do conceito cristão de democracia ensina que é um “regime” de “tutela” (proteção, promoção etc) e “desenvolvimento da pessoa”. O ponto central é a defesa da “dignidade da pessoa humana”, critério que justifica e limita as liberdades.
O bispo Crepaldi, falando em nome do Vaticano, destacou que o critério cristão e racional da democracia tem origem, “raízes”, “em Jerusalém, Atenas e Roma” (no ideário bíblico e na Paidéia). A tarefa histórica, hoje, é a de “construir uma democracia como instrumento para a tutela e a promoção das pessoas”.
Crepaldi também foi bem feliz ao ressaltar que “a visão cristã da pessoa” tem base na “essência trinitária”, social e pessoal, do próprio Deus, exigindo, assim, uma democracia de participação, popular, comunitária e social. A sociedade deve ser estruturada como uma comunidade de pessoas livres, planejando e organizando, pelo diálogo, uma vida pautada pelo bem comum (Marx, nos seus melhores textos, tem este mesmo ideal).
Crepaldi lembrou que a concepção da Trindade entende as Pessoas divinas principalmente a partir do conceito de “relações”. Assim, como foi ensinado pelo então Cardeal Joseph Ratzinger, no livro “Introdução ao Cristianismo”, “a idéia de relação é o núcleo central do conceito de pessoa, que é diverso e mais elevado que o conceito de indivíduo” (nos termos de Crepaldi). A “relação” não é apenas um “acidente”, e sim algo essencial.
A economia mista é a economia à imagem da Trindade, o máximo de personalização com o máximo de socialização, pessoal e social, em boa síntese. frise-se.
A pessoa “é” um ser em “relação”. As relações sociais fazem parte essencial de nossa natureza. A sociedade tem enorme peso, mas “a unidade e a comunhão autênticas” estão “fundadas no espírito”, “na liberdade” (na consciência, na autonomia pessoal), no diálogo, que exigem que cada pessoa seja sujeito ativo, não-alienado, seja um agente construtor operando por planos pessoais e sociais.
A sociedade jamais deve “anular as pessoas singulares”, deve, “ao contrário”, cultivar cada pessoa, ouvir cada pessoa, valer-se das idéias de todos, pois esta é única forma de realizar o bem comum, que exige as forças de todos.
Da mesma forma como nossa inserção na sociedade humana não anula nossa personalidade própria, assim nossa inserção na Sociedade Trinitária, na Comunhão (comunidade) divina, na natureza divina (no “Céu”), nosso “encontro pessoal com Deus” (“de pessoa a Pessoa, e o mesmo vale para nosso encontro com as pessoas) “não comporta” nenhuma “anulação de si mesmo em uma indistinção vazia, mas em uma valorização máxima” de nosso ser, de nossa pessoa, que é eterna.
O Céu é uma grande República divina, participativa, onde viveremos unidos às demais pessoas (inclusive as Três Pessoas da Trindade), regendo juntos o universo, numa Comunhão (comunidade) pautada pelo Amor, pela busca comum e participativa do bem comum. Esta foi a grande lição de Mounier, de Alceu, Dom Hélder e da Igreja.
O Corpo místico de Cristo, a Comunhão, une o máximo de personalização com o máximo de personalização, não anula a pessoa, e sim a fortalece, unindo o interesse pessoal com o interesse público, com o interesse da criação, da natureza, do Universo, com o interesse do bom Deus, Pai de todos.
Paulo VI, na “Octogesima adveniens” (n. 45, em 1971), também destacava, como um dos grandes ideais históricos de nossa época, a aspiração, “hoje em dia”, das pessoas, de “libertar-se da necessidade e da dependência”. Nesta encíclica, sobre “o poder político”, foi dito: “este poder, que constitui o vínculo natural e necessário para garantir a coesão do corpo social, deve ter como finalidade a realização do bem comum” e “o objetivo de toda a intervenção, em matéria social, é ajudar os membros do corpo social; e não destrui-los ou absorvê-los” (texto de Pio XI, João XXIII e do Vaticano II, reiterado por Paulo VI).
Cada pessoa deve ter os bens suficientes e necessários para uma vida plena, para poder participar intensamente da vida social, maximizando o bem comum, graças à participação de cada pessoa na elaboração dos planos comuns, nos processos decisórios. Como ensinava até mesmo Carlos Périn (1815-1905), no livro “Leis da sociedade cristã”, a sociedade deve ser estruturada para tornar “melhores” “as condições” de vida, abolindo a miséria e também a posse de bens que atribuam poderes excessivos a particulares.
Na “Octogésima”, Paulo VI destacou a importância do “bem da cidade, da nação e da humanidade”. Todas as pessoas devem ter participação na vida pública, social e política porque todos são responsáveis pelo bem comum. A “política é uma maneira exigente” de “viver o compromisso cristão, a serviço dos outros”, é uma atividade de caridade, de amor, de busca do bem comum.
Paulo VI destacou a “autonomia da realidade poítica” e o “pluralismo”. A conclusão deste papa partia da premissa da socialização, o aumento da intervenção estatal na sociedade, com o crescimento da burocracia:
“… esses obstáculos não devem reprimir uma difusão maior na participação, ao elaborar as decisões, na sua escolha e ao pô-las em prática. Para contrabalançar uma tecnocracia crescente, torna-se necessário criar formas de democracia moderna, que não somente proporcione a cada homem a possibilidade de informar-se (banda larga pública, blogs, BBC etc) e de exprimir-se, mas também que o leve a comprometer-se numa responsabilidade comum.
Deste modo, os grupos humanos se transformarão, pouco a pouco, em comunidades de partilha e de vida”.
O ideal da doutrina social da Igreja, de uma democracia participativa, comunitária e social, econômica, exige que todas as estruturas e grupos humanos devem ser “comunidades de partilha e de vida”, formas de comunhão, especialmente as estruturas públicas, as unidades produtivas, as escolas, hospitais e até as prisões, que devem ter gestões humanistas, participativas (como ensinam os membros da Pastoral Carcerária).
Conclusão: a boa sociedade, a sociedade justa, é a sociedade pautada pelo diálogo, pelo amor, pela razão prática, por boas idéias adequadas ao bem comum. Uma grande cooperativa geral, formada por coperativas menores, estatais, distributismo, difusão do controle, pequenas e médias propriedades pessoais (bens pequenos e médios, para todos, moradia para todos, renda universal, liberdade para todos). Uma sociedade formada pela participação ativa de todos.
Este ideal ético, na terminologia política, recebe o nome de democracia popular, real, social, participativa, comunitária, humanista, dialógica, cooperativa etc. Esta é nossa utopia (nosso ideal, cf. Santo Tomás Morus), é o desenho (a prefiguração) da sociedade onde a Presença divina, do Amor, tem plenitude, formando uma civilização do amor, do bem comum. O Céu, a união pessoal e social com Deus e com as pessoas, numa boa comunhão, inclusive com os Anjos.