Gramsci, ao comentar a encíclica “Pascendi” de Pio X, reconheceu que Pio X “não combate… o pensamento moderno como tal”. Não, Pio X, na análise de Gramsci, “fulminou o modernismo como tendência reformadora da Igreja e da religião católica, mas desenvolveu o popularismo, ou seja, a base econômico-social do modernismo, e fez dele, hoje, com Pio XI, o ponto de apoio de sua estrutura mundial”, dando continuidade a linha de Leão XIII.
O que Gramsci chamou de “popularismo” (no fundo, populismo, ênfase no povo) é justamente a base do movimento social da Igreja, bem nítido na Ação Católica. Trata-se da continuidade da linha histórica luminosa da Igreja, do rio da vida, especialmente na forma como a Igreja acolheu e participou nas Revoluções de 1848, com o apoio de Pio XI. Depois, houve o reforço deste movimento com os textos brilhantes de Leão XIII, elogiados por Eça de Queiroz, Zola, Rui Barbosa e outros.
Para Gramsci, o “modernismo” era uma corrente complexa, com duas tendências principais: uma “social” e outra “científico-religiosa”. Gramsci constatou corretamente que a Igreja aceitou a tendência “político-social que tendia a aproximar a Igreja das classes populares, portanto favorável ao socialismo reformista e à democracia”. O que Gramsci não viu é que o movimento democrático e socialista democrático nasceu cristão, ligado à Igreja, inclusive com gestão de grandes católicos nos séculos anteriores.
Esta tendência “político-social” era a retomada dos textos de grandes católicos do movimento iluminista católico e cristão. Era a continuação da linha de Morus, Suarez, Bellarmino, de Montesquieu, Mably, do padre Sieyes, do bispo Gregório, do Cardeal Consalvi, de Lamennais, Buchez, Ozanam, Tocqueville, Lacordaire e outros. Na Itália, esta tendência explicita-se nos textos de Toniolo e no partido popular de Sturzo, que o próprio Gramsci reconhece que tem raízes no “neo-guelfismo antes de 1848”, tendo como expoentes o padre Gioberti, Rômulo Murri e a corrente da “democracia cristã”.
Manzoni, Gioberti, César Cantu, Carlo Cattaneo e centenas de outros autores (o próprio Cavour) precederam e prepararam a linha democrática e socializante de Romolo Murri-Luigi Sturzo. Esta linha foi sucedida por Giorgio La Pira, Giuseppe Dossetti. Estes dois juristas participaram da Constituinte italiana, de 1946, tendo bons diálogos com Togliatti. Com Aldo Moro, esta tendência reforçou-se, buscando coligações com os partidos comunistas democráticos. Hoje, está presente no Partido Margarita, Partido Democrático, na Itália, no poder, que une católicos, socialistas e comunistas do antigo PCI.
Na França, esta tendência está ligada a Lamennais, Buchez, aos grandes românticos e depois retoma com elos como Charles Renouvier (1815-1903, no livro “O personalismo”, 1903), Marc Sangnier, Maritain, o personalismo de Mounier (1905-1950) e Lacroix. Mais tarde, fica presente na presença e mesmo liderança católica na Resistência Francesa. Continua nos melhores textos de De Gaulle e, depois, na presença católica no Partido Socialista Francês.
Foi esta linha democrática e socializante que levou a coligações com os socialistas italianos especialmente a partir da segunda Guerra e depois de 1961. Com Aldo Moro, houve mesmo a chance de uma coligação com os comunistas italianos, inspirados em Gramsci, Togliatti e outros defensores da política de mãos estendidas.
Norberto Bobbio, no livro “Teoria geral da política” (Rio de Janeiro, Ed. Elsevier, 2000, p. 335), mostra que estes autores católicos “partilhavam com os socialistas da oposição entre sociedade civil e Estado e da defesa da primeira [da sociedade] contra o segundo”, o que abona a proximidade entre socialistas democráticos e catolicismo.
Para Gramsci, a outra tendência do modernismo foi a “científico-religiosa”, com idéias sobre os dogmas, a “crítica histórica” etc. Foi esta principalmente a tendência perseguida mesmo por Pio X. Mesmo em seu pontificado, com tantos pontos que um Alceu soube criticar, houve o aprofundamento do que Gramsci chamou de “popularismo”, mesclado com nacionalismo (intrinsecamente ligado ao romantismo e ao movimento democrático), especialmente nas antigas colônias, com os intelectuais nativos, gerando uma onda “nacionalista católica”.
Em 1926, houve também um bom discurso de Pio XI, no 35º aniversário da “Rerum novarum”, onde este Papa lembra que:
“os elementos sociais” [são mutáveis, especialmente as formas de] “organização da produção” [o mesmo raciocínio vale para as formas de poder, desde] “o trabalho primitivo da Idade da Pedra até” [às grandes unidades produtivas e isso vale para as demais] “instituições humanas, que não são perfeitas na sua totalidade, mas antes necessariamente imperfeitas e susceptíveis de mudanças”.
A análise histórica e sociológica de Gramsci estava corretíssima. Tanto é verdade que Léon Bourgeois, que foi primeiro-ministro da França, o primeiro do partido radical, seguiu os passos de Charles Renouvier, na obra “Ciência da moral” (1869), com base no solidarismo, uma forma de socialismo democrático de fundo religioso, que teve o apoio de Mounier e outros.
Na Espanha, os socialistas da Frente Popular eram liderados por políticos não-ateus e a Frente Popular teve o apoio de Maritain e outros expoentes do catolicismo. A guerra civil espanhola teve excessos violentos praticados pelas duas partes e não deve ser confundida com os ideais republicanos anteriores. A guerra civil teve aspectos tenebrosos como a morte de centenas de padres, o saque da reserva de ouro da Espanha que foi roubado pela URSS, a morte de líderes anarquistas e trotskistas, por estalinistas, os massacres feitos pelos extremistas de Franco etc.
Renouvier (1815-1903) foi um grande republicano cristão. Teve o mérito de ter sido um dos principais ideólogos da III República. Como Gaetano Mosca e Bouthoul reconheceram, Renouvier “exerceu grande influência sobre os primeiros dirigentes da Terceira República”. Renouvier tinha como ideário, idéias como: “a lei moral está em todos porque está em cada um”, é “universal porque é eminentemente particular e inegavelmente própria e constitutiva de cada consciência”.
Ele defendia um “socialismo bastante extenso, mas que respeita escrupulosamente a liberdade e a autonomia dos indivíduos” (cf. Mosca, no livro “História das doutrinas políticas”, p. 370), defendendo uma República democrática e social. Seus textos também mereciam figurar em manuais da teologia da libertação nas CEBs e paróquias.
Os textos de Léon Bourgeois, como o “Ensaio de uma filosofia da solidariedade” (1902), esboçaram uma forma de socialismo democrático. Bourgeois chamou esta forma de “solidarismo”, unindo, numa síntese o melhor do pensamento democrático e socialista. O solidarismo é um socialismo humanista, com liberdade. Bourgeois escreveu obras conjuntas com outros autores da mesma linha. Por exemplo, o “Ensaio de uma filosofia da solidariedade”, 1902, que tem textos de Charles Gide (1847-1932), Boutroux, Croiset e outros.
Nestes autores, há uma tentativa de síntese entre socialismo e democracia e parte expressiva concilia estas sínteses com o apreço ou o respeito à religião. denominou de “solidarismo”, unindo, numa saio de uma filosofia da solidariedade” (1902), esboçam um forma de socialismo que, no fundo, é uma DEMOCRACIA POPULAR.