Helvetius nunca foi ateu, e foi avô de um grande católico, chamado Albert de Mun

Claude-Adrien Helvétius (1715-1771) não foi materialista, e sim teísta, seguidor do empirismo ligado a Locke, que teve, como expoente maior, o padre Condillac. Helvetius seguia principalmente os livros do padre Etienne de Condillac, “Ensaio sobre a origem dos conhecimentos humanos” de 1746 e “Tratado das sensações”, 1754. Condillac era irmão do abade Mably, outro grande precursor da doutrina social da Igreja. 

As obras principais do próprio Helvétius foram “Do espírito” (Paris, 1758) e o “Tratado sobre o homem, suas faculdades intelectuais e sua educação” (Londres, 1772, póstuma). Nestes livros, o ponto central é o utilitarismo, com base nos textos dos empíricos e dos iluministas cristãos escoceses. A “utilidade” social ou comum é uma expressão sinônima de “bem comum”. No fundo, é a ideia de Cícero e da Bíblia, o bem comum (o que é útil a todos) é a base de toda a ética. 

Leão XIII, na “Immortale Dei”, também ensinou que “a soberania não está ligada a nenhuma forma política”, estas são variáveis e históricas, flexíveis, adaptáveis. O ponto central é que todas as formas políticas devem promover “a utilidade” social, o “bem comum”. Stuart Mill mostrou como o utilitarismo interpretado de forma ética, utilitarismo ético, tem mesmo uma base correta, sendo o mesmo que o eudemonismo aristotélico, platônico e estoico. 

O bisneto de Helvétius foi Adrián Albert Maria de Mun (1841-1914), expoente da doutrina social da Igreja e do socialismo cristão. Mun também defendeu a tese do primado do bem comum, que é a mesma tese de Helvétius, sobre o primado do interesse geral, da sociedade.

De Mun, num artigo publicado no jornal da “Associação Católica”, em 15.09.1878, disse: “nos chamam de socialistas, porque pomos de relevo o que há de legítimo nas reivindicações dos operários”. Em 1885, publicou o livro “A questão operária” e, mais tarde, apoiou o movimento republicano na França, seguindo a orientação de Leão XIII.

No livro de Will e Ariel Durant, “A história da civilização” (Rio de Janeiro, Ed. Record, 1965, vol. IX, “A era de Voltaire”, pp. 622-632), há um bom resumo das idéias de Helvétius, com a conclusão: “ele não era um ateísta” (p. 627). Helvétius, quando seu livro “Do espírito” foi proibido, em 1758, protestou, dizendo:

“De que impiedade podem me acusar? Em nenhuma parte deste trabalho neguei a Trindade ou a divindade de Jesus, ou a imortalidade da alma, ou a ressurreição dos mortos, ou qualquer outro artigo do credo papal; consequentemente, de forma alguma ataquei a religião”.

Em seguida, Helvétius escreveu uma carta a um padre, retratando-se de qualquer erro e assinou um texto ressaltando sua religiosidade etc. Como escreveu Will Durant, Helvétius “não era um ateu”, ele elogiava o cristianismo e queria uma “religião universal”, baseada na “moralidade natural”: “um homem honesto irá sempre obedecer à sua razão…”, porque “Deus é o autor da razão humana” (cf. p. 627). Também escreveu: “a religião não é mais que a perfeição da moral humana” e a religião natural “consiste na moralidade fundada sobre os verdadeiros princípios” da razão.

No final do livro “Do espírito” (São Paulo, Ed. Abril, 1984), Helvétius elogiou as “leis naturais” com as quais Deus, a “Inteligência suprema”, organiza a natureza: “Toda a natureza depende” do “Ser inteligente” e “supremo”, que “dá o movimento e a vida a toda a matéria” e “não há um átomo dessa matéria que não seja dependente dessa Inteligência infinita, que não seja por ela governado e regido”. No fim do livro, há capítulos onde responde à censura de materialismo e impiedade, demonstrando o “absurdo dessas acusações”.

Nesta mesma obra, Helvétius escreveu um capítulo de elogio aos jesuítas e à República dos guaranis, com os títulos: “Que nada prova melhor o poder prodigioso da legislação do que o governo dos jesuítas”. Reconheceu, também, na mesma linha de Pombal, que “os jesuítas” fizeram “os reis tremerem” e que executaram “os maiores atentados” (regicidas). Helvétius redigiu capítulos específicos sobre estes “grandes atentados”, e “Que estes atentados podem ser igualmente inspirados pelas paixões pela glória, pela ambição e pelo fanatismo”.

Um capítulo importante, a meu ver, tem o título “Que sem os jesuítas não se teria jamais conhecido todo o poder da legislação”. Nesta mesma obra, chama os jesuítas de “regicidas”, reconhecendo implicitamente que as idéias políticas de Suárez ordenam a resistência aos tiranos e às leis iníquas.

Seguindo as idéias de Hutcheson, do iluminismo cristão escocês, Helvétius ensinava:

“Para ser virtuoso é necessário unir a nobreza da alma com uma mente esclarecida. Quem quer que combine esses dons conduz-se de acordo com as normas da utilidade pública [da utilidade social, de todos, do bem comum]. Esta utilidade [o bem comum] é o princípio de todas as virtudes humanas, ea fundação de toda a legislação…Todas as leis devem seguir um único princípio, a utilidade do público [da sociedade]–isto é, do maior número de pessoas sob o mesmo governo… Esse princípio contém toda a moralidade e toda a legislação” [textos da obra “Do espírito”, pp. 6 e 17].

Helvétius, na tradição ética, tem idéias socialistas, condenando a “desigual repartição” dos bens, a divisão da sociedade entre os que “não têm o que é necessário para a vida” e os que vivem mergulhados “na superfluidade”. A “solução” é “multiplicar o número de proprietários, promovendo-se uma nova distribuição da terra”, “quando a terra de um homem ultrapassa um certo número de acres, ela deveria ser taxada numa proporção que excedesse à sua renda”. A “redistribuição” dos bens deve “ser executada por meio de contínuas” “alterações”. É a mesma ideia bíblica, de Moisés. 

Periódicas distribuições é o núcleo da fórmula antiga de Moisés, exposta no início da Bíblia (especialmente em “Levíticos” 25,10). No ano sabático, as famílias recebiam de volta suas terras (o principal meio de produção na época) cedidas, os servos e escravos recuperavam a liberdade e as dívidas eram perdoadas. Esta fórmula dava ao Estado o dever (a função) de efetuar periodicamente redistribuições de bens, para evitar dois males: a miséria e a acumulação (riqueza privada).

O ponto essencial nos textos de Helvétius é a relação entre a ética e a política. Para ele, todas as pessoas tendem a seguir os interesses privados, a buscar o prazer pessoal e cabe à ética cercear estes interesses para adequá-los aos interesse geral, da sociedade.

A função principal do Estado é, através da legislaçaõ, regrar os interesses individuais, harmonizando-os e, assim, promover o interesse geral. Ou seja, cabe a própria sociedade, pela mediação do Estado, pela legislação e pela educaçao, adequar (limitar, regrar) os interesses individuais ao interesse geral, no fundo, ao bem comum, pois o interesse geral é justamente o bem comum. A ferramenta mais importante do Estado é a educação (para formar “almas sábias e virtuosas”).

Conclusão: as melhores idéias de Helvétius (especialmente a idéia do primado do bem comum, da utilidade de todos) não eram novas, seus textos foram denominados, pelo próprio Voltaire (teísta, também), como uma “omelete” (“omelet”), uma mistura de idéias antigas (ovos antigos, ideias cristãs), com algumas novas ideias cristãs, como o iluminismo escoces.