Jusnaturalismo clássico, hebraico e grego, é a teoria principal que explica a democracia

A antiga Academia de Ciências da URSS, especificamente por seu “Instituto de Direito”, publicou uma “História das idéias políticas”, em 1954. Este livro foi adotado pela Direção Geral das Universidades e Escolas Superiores Econômica e Jurídica, do Ministério da Instrução Superior da URSS, como “Manual para os Institutos Jurídicos e as Faculdades Jurídicas das Universidades do Estado” (traduzida ao espanhol, em Buenos Aires, Ed. Cartago, 1958). Vejamos alguns pontos deste livro de 700 páginas, para demonstrar que o jusnaturalismo é a corrente (escola, ideário) clássica da democracia.

Trata-se do jusnaturalismo sumério, hebraico, fenício, semita, estoico, adotado também pelos melhores gregos e romanos, sendo um dos principais veios (rios) subterrâneos da cultura mundial e do cristianismo. 

Na p. 181, a cúpula do Estado soviético ensinava que “as primeiras revoluções burguesas” democráticas, “nos países da Europa ocidental”, ligadas à pequena burguesia, tinham como suporte ideológico a “doutrina jurídico-natural”. Assim, “a teoria.. da lei natural e dos direitos naturais dos homens” foi a “arma ideológica” para “aniquilar o regime feudal” e o absolutismo.

O jusnaturalismo foi a “arma de crítica” contra o feudalismo e o absolutismo. Na época, “a escola do direito natural” traduzia “reivindicações progressistas”, a democracia formal, insuficiente, mas com bons elementos.

Na p. 169 do livro acima referido, a Academia soviética, que era a cúpula do ensino superior soviético, reconhece que “as idéias sobre a origem contratual do Estado e da supremacia popular podem ser achadas também em algumas teorias dos jesuítas”, como “Suárez, Bellarmino, Luís de Molina e outros”. Estas “idéias” eram usadas “contra os monarcas” que os combatiam. A Academia reconhece o papel progressista dos monarcómacos, tanto protestantes quanto católicos, e mesmo dos jesuítas.

Além disso, reconhece, na p. 168, que “a própria teoria da origem contratual do poder do Estado traduz as idéias medievais sobre o convênio feudal entre os senhores e os vassalos”. A Academia reconheceu que, “nas teorias dos monarcómacos há a ressurreição da diferença, já exposta por Aristóteles, entre um monarca e um tirano”. Na p. 86, o manual repete a frase de Lênin e escreve que “os partidários do cristianismo” distinguiam-se “por um espírito democrático e o modo igualitário da vida”. O próprio Kremlin atestava, assim, o “espírito democrático” e “igualitário” dos cristãos.

A lista dos principais escritores que foram seguidores da “teoria jurídico-natural”, elencados no manual soviético, é bem elucidativa: os estóicos (p. 72); Cícero (p. 80); o cristianismo primitivo (p. 85, mesclado ao estoicismo); os juristas romanos (p. 82, especialmente Gaio, Ulpiano e outros, quase todos estóicos); Santo Agostinho (p. 89); Santo Tomás de Aquino (p. 104, “que segue a teoria dos estóicos e a dos jurisconsultos romanos”); “Marsílio de Pádua” (p. 106); os “jurisconsultos” medievais ligados ao ressurgimento do Direito Romano (p. 107, especialmente Beaumanoir e o livro “Espelho da Saxônia”); e “Wycliffe, os lolardos, Jan Huss e os hussitas” (p. 96).

Em seguida, vem Thomas Morus (p. 173); Thomas Munzer (p. 165); os monarcómacos (p. 167); Etienne de la Boetie (p. 169); Hugo Grócio (p. 183); Spinoza (p. 185); Hobbes (p. 194, jusnaturalista, mas absolutista); John Milton (p. 194); Algernon Sidney (p. 196); Gerard Winstanley (p. 197); John Locke (p. 198); Pufendorf (p. 203, “Tratado de direito natural”); Christian Thomasius (p. 205); Christian Wolf (p. 206, “Direito natural investigado pelo método científico”); Lessing (p. 208); Schiller (p. 208); Voltaire (p. 226); Montesquieu (p. 228); Rousseau (p. 233); Holbach (p. 240, autor de obras como “Política natural”, “Etocracia ou o governo fundado sobre a moral” e “Moralidade universal”, jusnaturalistas, mas com algo de absolutista); Helvécio (p. 244); Diderot (p. 248: “como todos os enciclopedistas”, “partidários da teoria do direito natural”); César Beccaria (p. 248); Morelly (p. 254); Mably (p. 255); o padre Sieyés; Robespierre (p. 260); Marat (p. 261); o padre Jacques Roux e os enraivecidos (p. 263); Thomas Jefferson (p. 274, que seguia principalmente os textos de Mably, cf. p. 275); Thomas Paine (p. 276); e outros. Mais adiante, o autor cita Blackstone (p. 347) e o idealismo alemão (p. 315, progressista, com Kant, Fichte e Hegel).

Além destes autores, houve a omissão de Burlamaqui (suíço), de Barbeyrac (Alemanha, que escreveu uma obra com textos dos santos padres, lida pelo jovem Marx), Gerard Noodt (holandês) e muitos outros. Outro autor esquecido é Francisco Huet (1814-1869), que escreveu “O reino social do cristianismo” (1853) e “Ensaios sobre a reforma católica” (1856).

Na mesma linha da Academia Soviiética, estavam as fontes de Marx, como Ludwig Feuerbach (1804-1872), discípulo de Spinoza e um dos mestres de Marx (influenciando bastante no início). Feuerbach, em seu livro “A essência do cristianismo” (Campinas, Ed. Papirus, 1988, p. 193), ressaltava a ligação da doutrina da Igreja com o melhor do pensamento antigo, da Paídéia (“os antigos”):

“Os cristãos, de fato, “sacrificavam” o “indivíduo”, isto é, aqui o indivíduo enquanto parte, ao todo, ao gênero, à comunidade. A parte, diz Santo Tomás de Aquino, o maior pensador e teólogo cristão, sacrifica-se a si mesma, por um instinto natural, para a conservação do todo. “Toda parte, por natureza, ama mais o todo do que a si mesma. E todo indivíduo por natureza ama mais o bem do seu gênero do que o seu bem individual. por isso, todo ser naturalmente ama mais a Deus, o bem universal, do que a si mesmo (“Summae P. I., q. 60, art. V).

Portanto, neste sentido os cristãos pensam como os antigos. Tomás louva os romanos (de “Regim. Princ.”, liv. III, c. 4) pelo fato deles terem colocado a sua pátria acima de tudo e de terem sacrificado o próprio bem-estar ao bem-estar dela”.

A idéia de “justiça” (de bem comum, que é o objeto desta virtude cardeal) está nos textos de Homero, de Hesíodo, nos poetas e trágicos gregos. Também está nos textos dos filósofos (Xenófanes, Heráclito), historiadores e no pensamento filosófico-religioso. Destas fontes, migrou para o ensino de Sócrates, de Platão (o livro “Protágoras”, “República” e especialmente “As leis”), sendo mais detalhado nos textos de Aristóteles e dos estóicos.

O ideal da justiça é o ideal da razão comum do povo pautando a vida pessoal e social, sendo esta a essência do conceito de virtude (“Arete”). O elogio da razão era também o ideal de Isócrates (436-338 a.C.), do “logos”, um orador aluno de Sócrates, que redigiu obras como “Contra os sofistas” (390 a.C.), “Panegírico” (380 a.C.) e “Nicoles”. Também era o ideal de Paidéia de Demóstenes. Demóstenes e Isócrates discordavam sobre o que fazer perante o poder de Filipe, pai de Alexandre, mas concordavam no mesmo ideal civilizatório, do poder do “logos”, da razão.

Adotando a mesma opinião sobre a relação entre jusnaturalismo e democracia, há também a opinião abalizada de Nicola Abbagnano, no “Dicionário de filosofia”(São Paulo, Ed. Martins Fontes, 2007, p. 682):

Jusnaturalismo. (…). Essa doutrina, cujos defensores formam um grande contingente de autores dedicados às ciências políticas, serviu de fundamento à reivindicação das duas conquistas fundamentais do mundo moderno no campo político: o princípio da tolerância religiosa e o da limitação dos poderes do Estado. Desses princípios nasceu de fato o Estado… moderno”.

Conclusão: Bakunin, Engels, Marx, Trotsky, a Academia de Ciências da URSS, Abbagnano e outros autores concordam em vários pontos com o teor da tese exposta neste livro sobre as origens racionais, jusnaturalistas e religiosas da democracia. Seus textos coligidos servem, assim, como boas abonações e testemunhas históricas em prol da tese central deste meu humilde blog.

A tese central deste blog tenta expressar as linhas gerais de uma concepção política que está presente nas idéias éticas da Igreja. Estas linhas gerais exigem, como ideal histórico atual, uma democracia real, popular, baseada no bem comum, com ECONOMIA MISTA, distributismo, limites sociais, exigências do bem comum, tudo pautado pelas necessidades humanas fundamentais e racionais. A Igreja sempre ensinou que o poder civil deve ser pautado pela ética, ou seja, pela razão dialógica e pelo bem comum.