Eleições e democracia, na Bíblia, instituição com aval de Deus

O Antigo Testamento é praticamente baseado nos cinco primeiros livros, atribuídos a Moisés, a figura mais importante do Antigo Testamento. Um ponto essencial é que as leis de Moisés não previam a instituição da monarquia, e sim uma República popular ampla, com economia mista.

Os hebreus se organizaram, no início, como uma república social bem descentralizada, municipalista, campesina e artesã, comunitária, regida por “juízes” (administradores, legisladores e julgadores) eleitos pelo povo. Esta foi a república dos Juízes, tendo grandes estrelas como Débora.

Mesmo quando foi instaurada a monarquia, esta surgiu a pedido do povo, como forma de centralização para a defesa contra ataques externos.

A Bíblia, no livro “I Samuel” (capítulo 8), relata como foi instituída a monarquia entre os hebreus, a pedido do povo, demonstrando o respeito de Deus à vontade do povo. Vejamos os textos principais do capítulo 8 deste livro:

“4. Então os anciãos todos de Israel se congregaram [se reuniram] e vieram a Samuel, em Ramã; 5. E disseram-lhe: Vê, tu já estás idoso, e teus filhos não andam pelos teus caminhos: constitui-nos, agora, um rei sobre nós, para que nos governe, como o têm todas as nações”. (…).  7. E o Senhor Deus, então, respondeu a Samuel: “Atenda a tudo o que o povo está lhe pedindo [atenda à voz do povo, ao pedido do povo]; não foi a você que rejeitaram; foi a Mim que rejeitaram como rei. (…). 9. Atenda-os; mas advirta-os solenemente, e explica-lhes qual será o direito do rei que houver de reinar sobre eles”.

Deus, pela boca de Samuel, explicou que os reis organizam exércitos e forças armadas para a defesa externa; organizam patrimônios reais onde o povo é convocado para trabalhar; tomam pessoas para trabalhar como cozinheiras, padeiras; “tomará”, por tributos, parte das “lavouras”, “vinhas”; organizam “servidores” públicos; “tomará” parte dos “jumentos” e dos “rebanhos” etc. O povo, após ouvir a exposição de Samuel, persiste em pedir um rei, que defenda o país nas fronteiras, como nas outras nações etc. A Bíblia então diz, no versículo 22: “o Senhor respondeu a Samuel: atende à sua voz e estabelece-lhe um rei”. Deus sempre ouve a voz do povo, mesmo quando este pede algo que não é adequado, pois Deus é o Ser mais democrático e respeitoso do universo.

Atendendo ao pedido do povo, à vontade do povo, Samuel ungiu Saul, um guerreiro que combatia o inimigo principal externo, os filisteus. A maior parte dos reis antigos era, na verdade, um comandante militar para a defesa externa do próprio povo. Mais na frente, no capítulo 9, versículo 16, o próprio Deus informa que Saul “libertará o meu povo das mãos dos filisteus”, “pois o seu clamor [o clamor, a voz, do povo] chegou a Mim”. É como se a Bíblia ensinasse que Deus permitiu a instituição da monarquia para atender ao pedido do povo (à liberdade de escolha do povo sobre a forma de governo e dos governantes) e para salvar o povo: libertá-lo dos filisteus e amoritas, que tinham o controle sobre a produção de armas de ferro, mais eficazes.

No versículo 19 do capítulo 9 de “1 Samuel”, está dito que Saul era “benjamista, da menor das tribos de Israel”, do “clã o mais insignificante de todos os clãs da tribo de Benjamin” (do clã de Matri). O mesmo ocorreu com Davi, mais tarde. Os bons governantes nascem do povo, da parte mais trabalhadora do povo.

Como a Bíblia informa, “quando” o povo viu “que Naás, rei dos amonitas, estava avançando contra” a nação (o povo, a sociedade), nas fronteiras, prestes a destruir o país, pediu a Samuel que instituísse um líder comum, numa forma de unificação para a resistência. Samuel avisou ao povo sobre os perigos da monarquia e sobre a exploração que o Estado pode realizar contra os direitos e as liberdades populares. O povo, com temor de ser destruído pelos amoritas (pelo leste) e filisteus (pelo oeste), persistiu em requerer a monarquia, como forma de centralização.

Saul teve que ser “eleito” em várias assembléias. Como está em 11,8, Saul convocou outra assembléia em Bezeque, onde “havia trezentos mil homens de Israel e trinta mil de Judá” e organizou uma luta de libertação contra os “amonitas”, libertando a cidade de Jabes. Somente após isso, “todo o povo”, atuando como sujeito histórico como em toda a Bíblia, “foi a Gilgal e proclamou Saul como rei, na presença do Senhor” (11,15). Como veremos em outro capítulo deste livro, o mesmo ocorreu com a eleição de Davi, teve ampla participação do povo.

O próprio Deus acatou a vontade do povo e aceitou a monarquia, de forma eletiva, embora Deus alerte para o mal da tirania e do poder militar (como formas de opressão). Quando Saul agiu com “arrogância”, então, o próprio Deus decidiu pela derrubada do tirano, pela destituição do poder, a derrubada de Saul.

A aclamação do rei, no ato da posse no cargo, significa que a ascensão ao poder, a investidura no poder, depende do consentimento do povo, dos direitos políticos naturais do povo. Esta mesma estrutura tinha vigência nas monarquias medievais e após o Renascimento, com Cortes e formas e elementos de democracia, como prova a Carta Magna, de 1215, feita por católicos, na Inglaterra.

Davi foi eleito pelo povo. E isso após ir galgando aos poucos o poder, como numa escada de cargos, numa carreira. Davi também teve ser aclamado (eleito, apoiado) pelo povo em várias ocasiões e assembléias, como ocorreu com Saul, até poder se sentar no trono. Tudo isso deixa claro que a Bíblia considera que o poder deve ser consensual (obediência racional voluntária) e que o poder deve servir (libertar) o povo.

A Bíblia informa que Samuel “convocou o povo de Israel” (10,17) em “Mispá” e, na assembléia do povo, propôs o nome de Saul como rei. Vejamos como ocorreu o consentimento do povo, as formas de exercício do consenso popular: “24. Então, todos gritaram: viva ao rei! 25. Samuel expôs ao povo das leis do reino. Ele as escreveu num livro e o pôs perante o Senhor”. A Bíblia explica bem que o poder do rei estava sob o regime de leis escritas, circunscrito, limitado, por leis que refletiam o melhor da consciência do povo. A aclamação do povo foi como um voto aberto, expresso em voz alta. O poder constituído deve estar limitado por regras constitucionais, legais, administrativas e consuetudinárias (do costume), regras estas presentes na consciência do povo. O poder deve estar sob o controle do povo, como explica a Bíblia. Quando os governantes abusavam do poder, agindo contra as regras do bem comum, Deus suscitava profetas entre o povo, para atuarem no controle e na fiscalização dos governantes.

O “livro de leis” é o precursor das constituições modernas, escritas. O povo hebraico só teve três reis que o governaram na totalidade: Saul, Davi e Salomão. Salomão é considerado o exemplo dos governantes e dos sábios, pacífico, tendo escrito centenas de livros, como ensina a Bíblia. Saul e Davi foram libertadores do povo, defensores do povo sob ataque de guerras injustas, dos filisteus e foram, ambos, eleitos pelo povo, por aclamação e pacto. Salomão governou em paz, praticamente sem guerras externas.

Conclusões: a própria Bíblia ensina que o povo é o soberano de si mesmo, que até mesmo Deus ouve e atende ao povo (atende as orações), mostrando, assim, que a sabedoria do povo é querida por Deus, que criou a mente humana para o autogoverno pessoal, familiar, das estruturas econômicas e da própria sociedade como um todo (nos diversos escalões, cidades, regiões, nações, continentes e na sociedade mundial).