A eleição democrática popular de Davi, exemplo

O governante mais respeitado da Bíblia foi Davi. Este foi eleito pelo povo, numa série de assembléias difusas e progressivas, praticamente consultando cada família da nação hebraica, como prova o texto de II Samuel, capítulo 5:

“1. Todas as tribos de Israel vieram ter com Davi em Hebron e disseram,-lhe: Vê: não somos nós teus ossos e tua carne? 2. Já antes, quando Saul era nosso rei, eras tu que dirigias os negócios de Israel. O Senhor te disse: és tu que apascentarás o meu povo e serás o chefe de Israel. 3. Vieram, pois, todos os anciãos de Israel ter com o rei em Hebron. Davi fez com eles uma aliança diante do Senhor e eles sagraram-no rei de Israel. 4. Davi tinha trinta anos quando começou a reinar, e seu reinado durou quarenta anos”.

Davi ascendeu ao poder numa aliança (pacto com o povo), com os representantes (“anciões”, senadores) do povo, graças à participação do povo na vida política, na vida pública.

Foi o povo que elegeu Davi, que o tornou depositário do poder, por mérito e pelo consentimento do povo, das “tribos”, cidades e famílias de Israel. Antes dele, Saul também foi eleito, escolhido pelo povo, como pode ser visto em I Samuel, capítulo 10:

17. Samuel convocou o povo diante do Senhor, em Masfa: 18. Assim, disse ele aos israelitas, fala o Senhor, Deus de Israel: Eu vos tirei do Egito, livrei-vos das mãos dos egípcios e de todos os reis que vos oprimiam. 19. Vós, porém, rejeitastes hoje o vosso Deus que vos salvou de todos os males e de todas as tribulações, e dissestes: Estabelecei um rei sobre nós. Pois bem: ponde-vos por ordem de tribos e de milhares e apresentai-vos diante do Senhor. 20. Samuel mandou que se aproximassem todas as tribos de Israel, e a tribo de Benjamim foi designada (pela sorte). 21. Mandou vir a tribo de Benjamim por famílias, e a família de Metri foi designada. E a escolha caiu, enfim, sobre Saul, filho de Cis. Procuraram-no, mas não o encontraram. 22. Consultaram então de novo o Senhor: Haverá ainda alguém que tenha vindo aqui? O Senhor respondeu: Ele escondeu-se no meio das bagagens. 23. Correram a buscá-lo e colocaram-no no meio da multidão, a qual ele excedia em altura do ombro para cima. 24. Samuel disse ao povo: Vedes aquele que o Senhor escolheu? Não há em todo o povo quem lhe seja semelhante. E todos o aclamaram, dizendo: Viva o rei! 25. Samuel expôs em seguida ao povo os direitos do rei, consignou-os em um livro que depositou diante do Senhor, e despediu todo o povo, cada um para a sua casa”.

A “aclamação” era uma forma de “eleição”. Uma explicitação do consenso, como ocorre com a eleição por cédulas ou por computador. A lição bíblica é clara: o povo se movimenta naturalmente pela liberdade racional, pela autodeterminação, pelo auto-controle pessoal, familiar e social.

O povo é o detentor natural do poder público. A aceitação do povo (da maior parte do povo) era considerada vital para assegurar a legitimidade do poder público, dos titulares do poder. Por este e outros textos, fica claro que a tese da senhora Hanna Arendt (1906-1975), que o consentimento livre (pela via do diálogo) é a base da autoridade legítima, tem fundamentação bíblica, tal como está nos melhores textos da Paidéia (nos discursos de Péricles, na teoria jusnaturalista de Protágoras, nos textos de Sófocles etc).

Os textos bíblicos acima somente reprisavam a idéia de “Brit”, “pacto”, “aliança”, explícito na aliança ocorrida no Monte Horeb, no deserto do Sinai (um morro pequeno, no Egito), com a mediação de Moisés.

Como ressaltou Walter Rehfeld, no livro “Nas sendas do judaísmo” (São Paulo, Ed. Perspectiva, 2003, p. 45), “o Código da Aliança é o primeiro estatuto político e civil legalizado pelo consenso do povo” (cf. fica claro no livro “Êxodo”).

Mesmo os “Dez Mandamentos”, os dez principais preceitos éticos e jurídicos, foram expostos à aprovação do povo, através de um pacto, chamado, em hebraico, de “Brit”.

A legislação comunitária e socializante de Moisés supera qualquer outro ordenamento na antiguidade e contêm regras e institutos válidos e úteis, até mesmo hoje. Este ponto foi constatado por autores como Spinoza, Moses Hess e outros. Por isso, Hess, o homem que converteu Marx e Engels ao socialismo, considerava Moisés como o fundador do socialismo, do ideal da democracia popular. O sistema econômico delineado por Moisés é uma forma de socialismo distributista, de fundo comunitário e agrícola. Uma forma de democracia popular, onde o povo é o principal sujeito da história.