O ideal católico do autocontrole racional e social

Deus nos fez à Sua imagem e semelhança, para sermos “senhores” de nós mesmos, para sermos “reis” (“real”, “regale”) da criação, para autodeterminarmos à luz das idéias reais e verdadeiras (da “verdade”, que descobrimos “na natureza”). Para sermos senhores de nós mesmos e da criação o caminho é pautar as decisões pela verdade, pelas idéias reais, geradas na interação das consciências com a realidade e das consciências entre si (comunhão). Ser livre, autodeterminar-se, é pautar (regrar) os atos, a vida, de acordo com as próprias idéias, a própria consciência. A consciência, no entanto, deve ser formada, para elaborar idéias hauridas da realidade, em adequação à realidade. A liberdade é um processo histórico, de libertação, de ampliação da autonomia humana.

O autocontrole é o governo de si mesmo. Na Bíblia, no “Novo Testamento”, há o elogio do autocontrole, que é a autodeterminação, o autogoverno, a autonomia, a autarquia, a autodeterminação, a libertação. Em grego, o autocontrole é designado pela palavra “egkráteia”, que é uma palavra composta de outras duas palavras gregas, “ego” (eu) e “kráteia” (poder, controle), autogoverno. Somos destinados ao autogoverno pessoal e social. Na Bíblia, este ponto está em claro nos versículos At 24,25; Gal 5,23; II Pe 1,6; I Cor 7,9; I Cor 9,25; Tit 1,8; e outros, que citarei mais adiante.

Autocontrole aparece como substantivo “(“egkráteia”), como verbo (“egkrateúomai”) e como adjetivo (“egkrates”). Está também em Prov 25,28: “como cidade derrubada, que não tem muros, assim é o homem que não tem domínio próprio”). São Paulo, ao conversar com Félix, um governador romano, destacou, como marcas características do cristianismo, da doutrina de Cristo, “a justiça” e “o domínio próprio” (cf. At 24,25). De fato, a justiça é o conjunto das idéias práticas (regras), verdadeiras e sociais da sociedade para o autocontrole social, à imagem do autocontrole pessoal pelas idéias da própria consciência (“ego”).

O autocontrole é obtido pela ascese, pelo exercício (ascese significa exercício). Assim, São Paulo dá o exemplo do atleta que se exercita: “todo atleta em tudo se domina [a si mesmo]; aqueles para alcançar uma coroa corruptível; nós, porém, a incorruptível” (cf. I Co 9,25). O autocontrole aparece também na Bíblia, com os termos “moderação”, “temperança”, “fortaleza”, “continência”. Para resumir tudo, São Pedro ensina que a participação na natureza divina ocorre pela prática das virtudes, que se completam, especialmente o “autocontrole” (cf. II Ped 1,4-7).

O autocontrole é a realização de nossa natureza, é a libertação. A libertação é o processo de libertação, de purificação (“kátharsis”), de glorificação, que é eterno, um processo eterno (cf. II Cor 3,18), dado que, sendo feitos à imagem de Deus, nunca poderemos atingir a plenitude de nossa natureza, que melhorará na medida em que seu pautar pelo exemplo da natureza dinâmica de Deus, que é Pura Vida, Amor, Ato Puro. O tema da purificação é o tema da perfeição. Os estóicos redigiram exercícios espirituais, tal como fizeram os órficos, os pitagóricos e os autores dos textos atribuídos a Hermes Trimegisto (textos acolhidos com carinho pelos Santos Padres). Empédocles escreveu o livro “Purificações” (“Katharmoí”). Este tema foi tratado por Platão, no livro “Fédon” (67c), como um processo de ascese, de aperfeiçoamento. Na Igreja, há, por exemplo, o livro “Exercícios espirituais”, de Santo Inácio, mas as ideias deste livro estão também presentes em várias Ordens e na Tradição. 

Num bom paralelismo histórico, Frederico Engels escreveu: “a liberdade consiste, pois, em nos dominarmos a nós mesmos e a natureza exterior, domínio esse baseado no conhecimento das necessidades [das leis) da natureza”. É a mesma lição de Aristóteles, dos estóicos, dos confucianos, dos budistas, do taoísmo e do cristianismo. A frase de Cristo resume tudo: “conhecerei a verdade e a verdade vos tornará livres” (cf. Jo 8,32).

A autonomia (a libertação) de cada pessoa é o ideal cristão. A sociedade, para ser estruturada de acordo com a dignidade humana (a estrutura antropológica humana) deve ser uma comunhão, uma Comunidade de pessoas livres, libertas, autônomas, que planejam juntas, pelo diálogo, a vida social.