A influência boa do catolicismo sobre Garibaldi e outros expoentes da democracia popular no século XIX

Giuseppe Garibaldi (1807-1882) defendia uma democracia social avançada. Em 1833, aderiu ao movimento “Jovem Itália”, de Mazzini (um homem profundamente religioso, ainda que heterodoxo), que sucedera ao movimento carbonário (o carbonarismo era todo empapado de catolicismo, até mesmo em seus ritos, senhas, juramentos e costumes). Em 1834, Garibaldi teve que refugiar-se no Brasil, onde lutou sob o comando de Bento Gonçalves da Silva (1788-1849, com boa religiosidade), na Revolução Farroupilha. Auxiliou Canabarro na tomada de Laguna. Conheceu Anita Garibaldi em 1839, que passou a ser sua esposa. Saindo do Brasil, Garibaldi foi para o Uruguai, onde formou a Legião italiana, para lutar contra Rosas. Mais tarde, foi um dos líderes da campanha pela unficação da Itália, com Mazzini, Cavour e várias lideranças católicas.

Garibaldi foi grão-mestre da maçonaria, sob os ritos religiosos de Misraim e de Memphis, que se fundiram no rito Memphis-Misraim. Mesmo sendo maçon, foi influenciado pelo catolicismo, como será mostrado abaixo. 

Yvonne Capuano, na obra “De sonhos e utopias – Anita e Giuseppe Garibaldi” (São Paulo, Companhia Melhoramentos, 1999), demonstrou os sentimentos religiosos de Garibaldi, hauridos de sua genitora, Rosa, usando textos de uma autobiografia do próprio Garibaldi:

“Dona Rosa, sempre lembrada com admiração por Garibaldi, foi assim citada em suas Memórias:

“Rosa Raimondi, minha mãe, era, digo-o com bastante orgulho, o modelo das mulheres. Todo o bom filho deve dizer o mesmo de sua mãe, mas nenhum o dirá com mais justiça do que eu. Um dos remorsos de toda a minha vida, talvez o maior, foi e será de ter tornado desgraçados os seus últimos dias! Só Deus sabe quanto ela sofreu com a minha vida aventureira, porque só Deus sabe o imenso amor que minha mãe me consagrava. Se em mim existe algum sentimento bom, confesso-o e com bastante ufania, é a ela a quem o devo. O seu caráter angélico devia forçosamente deixar-me alguns vestígios. Não será à sua piedade pelos desgraçados, à sua compaixão pelos infelizes, que devo este amor pela pátria, amor que me mereceu a afeição e simpatia dos meus compatriotas? Não sou supersticioso, mas devo dizer que, nas circunstâncias mais críticas da minha vida, quando o oceano rugindo erguia o meu navio como um pedaço de cortiça, quando as bombas assobiavam a meus ouvidos como o vento das tempestades, quando as balas caíam em volta de mim como saraiva, via sempre minha pobre mãe ajoelhada aos pés do Senhor, orando pelo filho de suas entranhas. Se algumas vezes mostrei uma coragem de que muitos se admiraram, é porque estava convencido de que não me sucederia desgraça alguma quando tão santa mulher, quando semelhante anjo orava por mim. (GARIBALDI, 1907, p. 25)”.

Desde 1833, Garibaldi travou conhecimento com carbonários, ligados a Giuseppe Mazzini. Foi assim que adotou os princípios de igualdade, fraternidade e humanidade, seguidos pelos mazzinianos, que lideravam o movimento “Jovem Itália”. O programa deste movimento era republicano e a divisa era a expressão “Deus e Povo”, na linha de um antigo padre católico alemão e do movimento renano católico, que, com certeza, influenciou o próprio Karl Marx. Frise-se: Marx viveu os primeiros anos imerso em áreas católicas, inclusive seu Ginásio era um Ginásio católico, tendo como colegas seminaristas, inclusive o futuro Bispo católico de Trier. 

Garibaldi também foi influenciado por Emile Barrault, um sansimoniano, que se inspirava principalmente no livro “O novo cristianismo”, de Saint-Simon. O sansimoniano era um movimento político cristão que defendia um Estado interventor. Garibaldi, em suas “Memórias”, transcreveu as palavras de Barrault:

“O homem que defende a sua pátria, ou que ataca a dos outros, é no primeiro caso um soldado piedoso e injusto no segundo; mas o homem que, tornando-se cosmopolita, adota a todas por pátria e vai oferecer a sua espada e o seu sangue ao povo que luta contra a tirania, é mais que um soldado: é um herói. (Apud GARIBALDI, 1907, p. 33)”.

Garibaldi procurou Mazzini e foi batizado como filiado à Jovem Itália. Fez o juramento seguinte: “Invoco sobre a minha cabeça a ira de Deus, o abomínio dos homens e a infâmia do perjúrio, se eu trair, no todo ou em parte, o meu juramento”.

Garibaldi participou do Congresso Internacional da Paz, em Genebra, em 1867, onde também esteve Bakunin e outros revolucionários com religiosidade (Louis Blanc, Stuart Mill e Pierre Leroux). Garibaldi apresentou um programa para a paz mundial, com vários itens:

“I–Todas as nações são irmãs; II–Uma guerra entre elas é impraticável; III–Todas as querelas que possam surgir entre elas deverão ser julgadas pelo Congresso; IV–Seus membros serão designados por sociedades democráticas de todos os povos; V–Cada nação terá um voto no Congresso, não importando o número de seus habitantes; (…)

VII–A religião de Deus será adotada pelo Congresso e todos os seus membros deverão propagá-la pelo mundo; VIII–O Congresso ordenará como sacerdotes homens da elite, da ciência e da inteligência; IX– Haverá farta propaganda democrática através da instrução, da educação e da virtude; X– Somente a democracia, pondo por terra as mentiras e o despotismo, poderá reparar o flagelo da guerra; XI–Somente o escravo terá direito de fazer guerra contra o seu tirano”.

Em 1872, alguns meses após a morte de Mazzini, Garibaldi redigiu uma proclamação, onde desenvolve algumas propostas mazzinianas:

(…) A reabilitação intelectual deve ser completada também para alívio o proletariado que, do trabalho que cria a riqueza, nem sempre ganha para combater a fome. Tal medida deve ser diligenciada. Para esta consideração devemos combater o absurdo sistema dos impostos, especialmente aquele cruel e imoral que grava o pão cotidiano, a taxa sobre o sal e todos os que indiretamente oneram o pobre, como o imposto alfandegário de consumo. Substitua-se o imposto único pelo princípio lógico da tributação progressiva.

A redução dos impostos depende muito da redução das exageradíssimas despesas. As dificuldades financeiras exigem também a descentralização, que deveria ter por base a administração municipal, como acontece nas mais gloriosas tradições da nossa Itália e no moderno exemplo da América. Devemos aspirar à completa aplicação das liberdades inatas e reconhecidas. Cesse de ser uma mentira o direito de reunião e a liberdade da imprensa. Devemos também aderir calorosamente ao sufrágio universal. Ele eleva a dignidade dos cidadãos e dos deserdados, restituindo-lhes o direito fundamental, excluídos somente os analfabetos. Por isso que o proletariado, até agora excluído da representação legislativa, poderá reclamar a justiça”.

Numa linha próxima de Garibaldi, Abraham Lincoln, Emílio Castelar, Garibaldi, John Stuart Mill, Louis Blanc, Magalhães Lima, Emilio Laveleye (1822-1892), Jaurès, Benoit Malon, Eça de Queiroz (no final da vida), Oliveira Lima (de Portugal), Walt Whitman, Guerra Junqueiro (no final da vida), Victor Hugo, Eugenio Sue, e vários outros personagens conciliavam sentimentos e idéias religiosas com um pensamento democrático socialista.

José Pereira de Sampaio Bruno (1857-1915), republicano português, escreveu obras como “A idéia de Deus” (1902), “A questão religiosa” (1907) e mesmo bons textos sobre profecia, onde elabora considerações ortodoxas sobre a liberdade condicionada pelo bem comum, pela sociedade.

Sebastião de Magalhães Lima (nascido em 1850, no Rio de Janeiro, mas atuando sempre em Portugal) foi senador e Ministro da Instrução em Portugal, tendo deixado obras como “O socialismo na Europa”, “Pela pátria e pela república”, “A federação ibérica”, “O primeiro de maio” ou “O livro da paz”, onde mesclava socialismo, democracia e um fundo espiritualista-religioso.

Obras como “O socialismo na Europa” de Magalhães Lima; “O socialismo integral” de Benoit Malon (discípulo do socialista religioso, Constantin Pecqueur); “História do socialismo”, de Jaurès; ou “O socialismo contemporâneo” de Emilio Laveleye eram recomendadas pelo Partido Socialista Brasileiro, de 1902, como pode ser lido no jornal “O Estado de São Paulo”, de 28.08.1902 (do livro de Edgar Carone, “Movimento operário no Brasil”, Rio de Janeiro, Difel, pp. 322-327).

Louis Blanc, no livro “Catecismo dos socialistas” (1849), escreveu: “O socialismo tem por fim realizar entre os homens as quatro máximas fundamentais do Evangelho: 11. Amai-vos uns aos outros; 21. Não façais a outrem o que não quereis que vos façam; 31. O primeiro dentre vós deve ser o servidor de todos os outros; e 41. Paz aos homens de boa vontade”.

Constantin Pecqueur escreveu, no livro “Dos interesses do comércio, da indústria e da agricultura”: “Se nos perguntam de quem procedemos, qual é nossa origem ou nossa filiação, responderíamos: Jesus Cristo, Rousseau, toda a revolução francesa, Saint-Simon e Fourier”. Benoit Malon escreveu obras como “Constantin Pecqueur, o socialista integral”, “Moral social”, “História da agiotagem”, “Socialismo integral” e outras, expondo uma árvore genealógica bem parecida com a exposta neste livro.

Emílio Castelar, num discurso do Parlamento espanhol, onde pediu a abolição imediata da escravidão, também ressaltava que o cristianismo proclamou a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Vitor Hugo (1802-1885): “a igualdade perante a lei é a igualdade diante de Deus, traduzida em linguagem política” (do livro “Literatura e filosofia”, n. 83).

Conclusão: os principais democratas do século XIX, tal como dos séculos XVIII e XX, eram cristãos ou teístas, conciliando fortes idéias e sentimentos religiosos com o amor à democracia e ao povo.