A teoria da translação nas “Decretais”, tradicional na Igreja. A concepção democrática é a mais tradicional na Igreja

As “Decretais” de Graciano constituem uma obra magistral, composta lá por 1051. O “Decretum” (nome das “Decretais” em latim) contém textos da Escritura, cânones de 105 Concílios (nove gerais e 96 regionais etc), decretais de 78 Papas, 50 cânones apostólicos, textos de 36 Santos Padres, mais textos do direito romano (de Ulpiano, Paulo, dos imperadores Teodósio e Justiniano), capitulares de reis francos e trechos de outros grandes escritores, como Cassiodoro e Rufino. A parte principal é a parte geral, que trata sobre “De iure divinae et humanae constitutionis” (“Do direito divino e humano”).

Nicolaus de Tudeschis também é conhecido como Panormitanus e foi um dos maiores canonistas do final da Idade Média. Tudeschis citou o seguinte texto, que consta nas “Decretais”, o principal texto do Direito Canônico: “certos cidadãos de Pisa, delegados pelo poder do povo para promulgar os estatutos da cidade…”. “Delegados pelo poder do povo para promulgar” leis; esta velha doutrina é a mesma que rege a Carta Magna de 1215.

A teoria sobre o poder e os bens, exposta por Graciano, nas “Decretais”, é democrática e popular. Também é a mesma doutrina acatada na Revolução de João I, em Portugal, codificada por Fernão Lopes (1378-1459), o maior historiador e cronista de Portugal.

A concepção política cristã tem origem numa síntese da Bíblia com as luzes racionais da Paidéia, sendo estas duas fontes, fontes democráticas. Isso ficou bem claro para Alceu Amoroso Lima, no livro “Introdução ao direito moderno” (Rio de Janeiro, Ed. Agir, 1978, p. 91):

As suas tradições, romana e patrística, Cícero e Ulpiano, de um lado; Santo Agostinho e Santo Isidoro de Sevilha, do outro, são as grandes fontes da concepção tomista do Direito. Procurando defini-lo, mostra Santo Tomás a concordância das três definições que encontra, a de Cícero, a de Graciano e a de Ulpiano”.

A concepção cristã de política acolheu as melhores idéias da Paidéia, seguindo o conselho de São Paulo, de experimentar e colher o trigo onde este estivesse. Estas boas idéias também são as bases das linhas gerais da democracia, presentes na “Declaração da Independência”.

Como ensinou o padre Raymond Leopold Bruckberger (1907-1998), no livro “A República americana” (Rio, Ed. Fundo de Cultura, 1959, p. 108), a “Declaração” da Independência “decorre da Sabedoria grega, do Direito Romano e da Revelação judaico-cristã”. Bruckberger foi frade dominicano, um dos líderes da Resistência Francesa contra o nazismo, sendo eleito membro da Academia das Ciências Morais e Politicas da França, entidade que teve várias estrelas da Igreja.

A teoria tradicional da Igreja também foi incorporada nos velhos textos constitucionais de Portugal, da França, da Inglaterra (Carta Magna) e da Espanha, textos que foram resgatados no início do século XIX, para serem a base das primeiras Constituições de Portugal e da Espanha (especialmente a Constituição de 1812).