Como até Trotsky reconheceu que o jusnaturalismo cristão é essencialmente democrático

Hugo Assmann e Reyes Mate organizaram o livro “Sobre la religion” (Salamanca-Espanha, Ediciones Sígueme, 1975, vol. II), com uma coletânea de textos marxistas sobre a religião.

Vejamos, transcrito da obra acima citada de Assmann, um bom texto de Trotsky, colhido de seu livro “Terrorismo y comunismo ou anti-Kautsky” (México, Elditora Juan Pablos, 1972, p. 53), sobre o jusnaturalismo, que é inerente ao cristianismo e à razão natural e como este jusnaturalismo foi a principal fonte teórica da democracia:

A doutrina da democracia formal não foi criada pelo socialismo, e sim pelo direito natural. A essência do direito natural consiste no reconhecimento de normas jurídicas eternas e invariáveis que encontram, nas diversas épocas e nos distintos povos, expressões restringidas e deformes.

O direito natural da história moderna, tal como o produziu a Idade Média, significava, antes de tudo, um protesto contra os privilégios das castas, contra os abusos sancionados pela legislação do despotismo e contra outros produtos “artificiais do direito positivo” feudal.

A ideologia do Terceiro estado, débil ainda, expressava seu interesse próprio por meio de algumas normas ideais que haviam de ser mais tarde o ensinamento da democracia e adquirir ao mesmo tempo um caráter individualista. A personalidade é um fim em si; todos os homens têm o direito de expressar suas idéias pela palavra e pela pena; todo homem goza de um direito de sufrágio igual ao dos demais.

As reivindicações da democracia – emblemas de combate contra o feudalismo – marcavam um progresso. Mas, quanto mais a seguimos, mais fica manifesto o aspecto reacionário da metafísica do direito natural (teoria da democracia formal), que consiste no controle de uma norma ideal sobre as exigências reais das massas operárias e dos partidos revolucionários.

Verificando a sucessão histórica das filosofias, a teoria do direito aparece como uma transposição do espiritualismo cristão desembaraçado de seu misticismo grosseiro. O evangelho anunciou ao escravo que tinha uma alma semelhante a de seu dono, e instituiu assim a igualdade de todos os homens ante o tribunal celeste”.

O texto acima tem vários pontos verdadeiros e alguns poucos erros. O ponto mais importante é constatar que a teoria dos direitos naturais, o jusnaturalismo, desenvolvido na Idade Média e na Renascença, foi uma das bases e fontes fundamentais da democracia. Claro que o jusnaturalismo é bem mais antigo, pois estava embutido na religião natural, racional e tradicional e ao melhor da filosofia antiga, especialmente a grega. No Renascimento, o jusnaturalismo tomista é desenvolvido especialmente, na 2ª escolástica de Vitória, Suárez, Bellarmino e outros. Na verdade, o jusnaturalismo nasceu na Suméria, no berço do civilização, sendo parte da religião antiga, de origem semita. E, nós, cristãos, somos espiritualmente semitas, como explicou Pio XI. 

O socialismo foi chamado, inicialmente, de “democracia social” (cf. Luis Blanc, Victor Hugo, Buchez, Lamennais, Flora Tristan, Georg Sand e outros). Isso se explica por conta de sua boa fundamentação no socialismo cristão pré-marxista, tal como na Revolução Francesa. No fundo, o socialismo democrático é um desenvolvimento da democracia, uma superação da democracia burguesa, para a instauração de uma democracia real, autêntica, popular. Trotsky também admitiu que o jusnaturalismo, que já destacava a igualdade, foi, efetivamente, uma das fontes da democracia e do socialismo. A meu ver, o jusnaturalismo cristão e hebraico (correlato ao jusnaturalismo clássico, da Paidéia) foi a principal fonte teórica, sendo esta a tese deste blog. 

O erro principal do texto de Trotski foi ter dito que “as exigências reais das massas operárias e dos partidos revolucionários” estão em contradição com as normas abstratas, oriundas da aplicação da inteligência (razão prática, cf. Santo Tomás e Kant) sobre os fatos.

Não existe esta contradição, pois o jusnaturalismo tem como ponto central exatamente a exigência de viver socialmente de acordo com o bem comum, com nossa natureza racional e social. Em outras palavras, o jusnaturalismo preceitua que a vida seja pautada pela inteligência discursiva (o diálogo interno e com o próximo), com base na elaboração de idéias abstratas corretas, oriundas da incidência da consciência das pessoas sobre os fatos (o processo histórico, as circunstâncias históricas e sociais) e também da comunicação entre as consciências, como ensinavam Aristóteles, Hegel (um filósofo cristão e que ensinava que a sociedade tem a primazia sobre o Estado), Paulo Freire e mesmo Marx.

O texto transcrito acima, de Trotski, é uma boa prova testemunhal (de um perito), um reconhecimento da influência histórica do jusnaturalismo na construção de um pensamento democrático e social.