Norberto Bobbio e Nicola Matteucci, no “Dicionário de política ” (5ª edição, Brasília, Ed. UnB/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2.000, p. 281), no verbete sobre “contratualismo” aponta as origens medieval da democracia, na Europa:
“As teses dos pensadores da tardia Idade Média, como as de Marsílio de Pádua (1275-1342), Ockam (1290-1349), Bartolomeu de Sassoferrato (1317-1357), Nicolau de Cusa (1401-1464), reproduzirão temas do século XI (Manegoldo de Lautenbach) e do século XII (John de Salisbury)
e não estarão muito longe do que defenderiam os monarcômacos protestantes, como G. Buchanan (1506-1582), F. Hotman (1523-1590), o autor anônimo (talvez Ph. Duplessis-Mornay) de Vindictae contra tyrannos (1579), John Milton (1608-1674),
ou os teólogos da Segunda Escolástica, como L. de Molina (1535-1600), R. Bellarmino (1542-1621), Juan de Mariana (1536-1624) e F. Suárez (1548-1617)”.
Bobbio destacou bem: Manegoldo e John de Salisbury, nos séculos XI e XII, grandes católicos, deram continuidade à linha do Império Romano já cristão, que incorporou a Paidéia grega (cf. lição de Werner Jaeger). Depois, houve Marsílio de Pádua, Bartolomeu de Sassoferrato e autores como Jerônimo Vida, que escreveu o livro “De optimo statu reipublicae”, em 1550, com o personagem porta-voz: o cardeal Flaminius.
Bobbio não soube analisar Santo Tomás e Egídio Romano e se o fizesse veria que estes autores trabalham com as mesmas fontes que um Marsílio de Pádua.
Depois, houve a “Segunda Escolástica”, baseada justamente nos textos de Santo Tomás e que foram ressaltados pela Escola de Salamanca e pelo Cardeal Cajetano. Esta linha foi ampliada nos textos de Molina, Bellarmino, Mariana, Suárez e outros monarcómacos católicos.
Os textos de Salamanca (Francisco de Vitória, Las Casas, Domingos Soto e outros), tal como da Segunda Escolástica, são a base do movimento dos “monarcômacos” católicos, tendo como expoentes Salomonius, Fickler, Jean Boucher (prior da Sorbona), Roussaeus, Mariana, Luís Dorleans e outros.
Os monarcómacos protestantes (especialmente François Hotman, Du Plassis, Mornay, Buchanan, Danaeus e outros) seguem a linha bíblica e do melhor da escolástica, utilizando inclusive, como os monarcómacos católicos, as melhores tradições germânicas e gaulesas, pois estes povos antigos tinham formas de governos representativos, como destacou Tácito e mesmo Júlio César.
François Hotman (1524-1590), um dos melhores monarcómacos protestantes, no livro “Franco-Gallia” (Genebra, 1573), expôs a teoria da soberania do povo ou da nação com base nas antigas tradições históricas francesas e sua obra foi elogiadíssima pelo grande historiador Thierry, a quem Karl Marx chamou de “pai da luta de classes”.
Os monarcómacos usavam os termos “contrato”, “pacto etc, adotando explicitamente a teoria do contrato, do consentimento como base da sociedade e do Estado. Buchanan usa a expressão “um pacto mútuo entre o rei e os cidadãos” como uma das leis fundamentais e, por isso, o rei, ao tomar posse no cargo, fazia o juramento de respeitar as liberdades e as leis fundamentais, ficando, assim, sujeito à lei.
Outro marco importantíssimo que Bobbio e Matteucci não examinou bastante foram os textos de Johannes Althusius (1557-1638). Althusius seguia a Bíblia e o melhor do pensamento escolástico, como pode ser visto em seu livro “Política” (1603), onde adota explicitamente as teses escolásticas. Althussius é o principal teórico do federalismo, superando Proudhon, e seus textos são ainda atualíssimos. Uma das principais fontes de inspiração de Althussius foi o livro “Digesto” e o direito romano.
A opinião de Bobbio e de Matteucci é a mesma do jurista italiano, Gaetano Mosca (1858-1941). Também é a mesma de B. Bouthoul, exposta no livro “História das doutrinas políticas” (Rio de Janeiro, Ed. Zahar, 1958), com um bom prefácio de Milton Campos. Esta opinião era ainda compartilhada por expoentes como Bakunin, Trotski e outros, como veremos em capítulos mais adiante. Mosca ensinou que a democracia é o regime que permite a renovação e a circulação das “elites” éticas e intelectuais.
No mesmo sentido, Hannah Arendt, na conclusão de seu livro “Origens do totalitarismo” (1951), lembrou que “os grandes homens da Revolução Francesa” acreditavam “num consenso universal do qual o homem seja uma parte, e cujas leis naturais” ele teria que “imitam e a elas conformar-se”.
A idéia de imitação da natureza e de Deus (no fundo, de lei natural) é essencial na teoria estética, ética e política de Aristóteles e é plenamente respaldada pela idéia bíblica do homem criado à imagem e semelhança de Deus, a quem cabe imitar, seguir etc.
Conclusão: a genealogia ou árvore hereditária da democracia é formada por idéias naturais, hebraicas e da Paidéia (especialmente as idéias gregas), que foram fundidas nos textos dos Santos Padres, na escolástica, na Carta Magna, documento católico, e dali fluíram mais tarde, para autores como Savonarola, Santo Tomás Morus, Suárez, Bellarmino e Locke. Mais tarde, houve as correntes neoclássicas, Montesquieu, Mably, Morelly, Rousseau e outros. Estas foram as correntes de idéias que geraram o padre Condillac, o iluminismo escocês, Thomas Jefferson, John Adams, os Jacobinos, os textos do padre Sieyés e outros. As raízes culturais de todo este movimento estão na Bíblia e nos melhores textos gregos (na Paidéia grego-romana), tal como em idéias racionais e naturais.