Resenha de bom livro de Eugênio Raul Zaffaroni, “Em busca das penas perdidas”

Resenha do cap. I do livro “Em busca das penas perdidas”, de Eugenio Raúl Zaffaroni

Eugenio Raúl Zaffaroni escreveu o livro “Em busca das penas perdidas” (Rio de Janeiro, Ed. Revan, 1996, 2ª. Edição). No capítulo I, o autor explica as razões da “crise de legitimidade” do direito penal atual na América Latina. O capítulo I do livro de Zaffaroni é o tema desta resenha.

Para o autor do livro, o direito penal “na América Latina” perdeu a legitimidade, não sendo considerado legítimo, bom, pelo povo, pois teria vários erros e injustiças.

O direito penal atual estaria cheio de absurdos, pois a América Latina está cheia de atos horríveis que o direito penal não evita. O direito penal deveria proteger a sociedade, mas não faz isso. O autor diz que “duzentas mil crianças” morrem de fome a cada ano. Há milhões de “abortos”, a cada ano. Milhões de crianças crescem com subnutrição e problemas incuráveis. Haveria milhares de homicídios impunes. Milhares morrem em homicídios de trânsito ou mortos pela polícia. Há milhões de pessoas em situação de miséria, de pobreza horrível (cf. p. 13 do livro).

O direito penal não evitaria estes males. E ainda criaria várias coisas ruins. Zaffaroni diz que a polícia mata milhares de pessoas, tortura etc. A violência da polícia é tão grande que a polícia mataria mais pessoas do que os assassinos (cf. p. 13). O “nível alto de violência” não é evitado pelo direito penal atual, sendo mesmo aumentado. O sistema penal ajudaria a manter injustiças sociais, mata mais do que a polícia e ainda seria baseado no terror, no terrorismo, pois é feito para gerar terror nos pobres.

Zaffaroni chama o atual discurso jurídico penal atual de “falso”. Falso, pois não protege a sociedade, sendo “seletivo”, pois selecionaria e puniria apenas pessoas pobres, negros e analfabetos, escolhidos para serem punidos, deixando os ricos impunes.

O atual direito penal não puniria e nem destruiria a “corrupção institucionalizada, a concentração de poder, a verticalização social e a destruição das relações horizontais ou comunitárias” (cf. p. 15).

O discurso penal atual seria “falso” e “perverso” (p. 19), na opinião de Zaffaroni, pois “os órgãos policiais, judiciais, do ministério público, os meios massivos de comunicação social” não protegem a sociedade e geram violência e terror contra as pessoas pobres.

A “legalidade” não basta para justificar o direito penal. A “legalidade” também está em crise, porque a “legalidade formal” (p. 20) também mantém e não elimina as injustiças sociais. As leis atuais não evitam o sofrimento de milhões de pessoas, não sendo, assim, consideradas legítimas, pelo povo. Zaffaroni critica o positivismo jurídico de Kelsen ensinando que somente a “lei” não basta para justificar a aplicação de penas.

Zaffaroni critica a prisão, a perda da liberdade, aplicada a pessoas com problemas mentais, internadas a força em manicômios. Critica a internação forçada de pessoas velhas e indefesas (p. 22). Diz que há pessoas pobres humilhadas e punidas pelo Estado sem nenhuma defesa. Isto ocorre principalmente contra pessoas como os migrantes, os miseráveis, as prostitutas, os viciados etc (p. 22). O sistema penal seria cruel, injusto, não protegeria a sociedade, geraria o terror no povo e ainda provoca mortes.

Zaffaroni ataca propostas de aumento das penas e de criminalização de mais condutas do povo, pois “não haveria habitante que não fosse, por diversas vezes, criminalizado” (p. 26), se as leis penais fossem aplicadas a todos. Ele critica movimentos que tentam “criminalizar” “toda a população” (p. 27). Este movimento apenas aumentaria “o arbítrio seletivo dos órgãos executivos do sistema penal” (p. 27), que teria “poder repressivo sobre qualquer habitante”, mas só operaria “quando e contra quem” os donos do poder quisessem, com base no terror e no arbítrio.

Outro erro que o autor do livro ataca é a “duração extraordinária dos processos penais”, que prende, com “prisão preventiva” (p. 27) milhares de pessoas pobres por anos, mas solta as pessoas ricas.

Outra injustiça, para Zaffaroni, é a falta de “critérios” para a “quantificação” (p. 27) das penas. Os juízes ficam com grande liberdade para fixarem penas, sem critérios claros e terminariam sendo cruéis contra pessoas pobres e brandos com pessoas ricas.

O direito penal atual também não é legítimo, porque nada faz contra um “incrível número de sequestros, homicídios, torturas e corrupção” “cometidos” por “funcionários” do “sistema penal” (p. 29). As torturas feitas pela polícia ficam sem punição. Os abusos policiais ficam impunes.

O livro resenhado também ataca a participação de parte da polícia em coisas erradas, como “o jogo, a prostituição, o contrabando, o tráfico de drogas” (p. 29). Haveria um “altíssimo número de fatos violentos e de corrupção praticados pelos próprios órgãos do sistema penal” (p. 29).

Todos estes erros e injustiças geram a “crise de legitimidade” do sistema penal, do atual direito penal.

O autor resenhado examina, em seguida, vários “teóricos” da América Latina. Critica erros de um escritor chamado Novoa Monreal. Novoa Monreal não adotaria um “positivismo ultrapassado” e estaria certo quando ensina que as leis devem estar submetidas “aos limites dos direitos humanos” (p. 32). No entanto, Novoa cometeria erros ao não saber examinar os erros do atual sistema penal atual.

Outro teórico analisado é Hérnández Veja (p. 33), que também cometeria erros. Mas, Hérnández estaria certo quando diz que “a legalidade” deve ter “um marco ético”, deve ser uma “realidade moral” (p. 34). Hérnández seria jusnaturalista, mas teria cometido o erro de não examinar a realidade, de não ser realista, não tendo entendido a crise atual do direito penal.

O movimento teórico mais elogiado por Zaffaroni é a “criminologia da reação social” (p. 34) que teria “numerosos autores”, citados em nota de rodapé (p. 35). A “criminologia da reação social” teve o mérito de demonstrar “a falsidade do” atual “discurso jurídico-penal” (p. 35), por ser uma criminologia realista.

Em seguida, Zaffaroni ataca os escritores que defendem o atual “discurso penal”, o direito penal que é aplicado hoje. Os defensores do atual sistema penal atacam toda crítica, especialmente da “criminologia da reação social”, fazendo a “satanização” dos críticos. Os que defendem o atual direito penal praticamente dizem que as críticas seriam do diabo (p. 36), rotulando críticos como Zaffaroni de “marxistas” (p. 36).

Zaffaroni explica que as críticas ao atual direito penal não são marxistas (p. 37), não são de comunistas. São críticas nascidas de “um impulso ético”, de pessoas que defendem a “autenticidade do ser humano”, a dignidade humana. A crítica ao atual direito penal nasce da “consciência ética” de boas pessoas diante da “morte” (p. 38) e do sofrimento de milhões de pessoas.

A mídia tentaria “inventar uma realidade” para ocultar a morte e o sofrimento de milhões de pessoas, mas este “esforço” (p. 38) não engana a todos, pois não consegue ocultar a realidade.

A mídia não pode ocultar que a polícia mata mais do que os assassinos, que “o número de mortes causadas” pela polícia supera “o total de homicídios” da “iniciativa privada”, dos bandidos (p. 39). Não tem como a mídia esconder uma realidade horrível, onde a polícia mata mais pessoas do que os bandidos, dos que os assassinos.

A mídia não pode ocultar que o “trânsito” (carros da classe média) também mata mais pessoas do que os assassinos, do que os bandidos. A mídia não pode ocultar os milhões de “abortos” e nem milhões de mortes “por carências alimentares e assistenciais”. Da mesma forma, o cigarro mata o triplo de vezes mais, por ano, que os homicídios, gerando cânceres e centenas de milhares de doenças. 

A mídia não consegue esconder milhões de mortes não evitadas e muitas até causadas pelo sistema penal atual (p. 39). O número imenso de mortes é que gera as críticas, pois estas mortes ofendem a “consciência ética” das pessoas e deslegitimam o atual sistema penal.

O sistema penal é criticado corretamente. Não é legítimo porque há “enorme volume de violência provocada pelos órgãos do sistema penal na forma de corrupção, degradação, morte violenta de seus próprios integrantes, privações de liberdade, extorsões etc”.

Em seguida, Zaffaroni passa a fazer um resumo da história do sistema penal. Diz que, “durante muitas décadas”, o “discurso jurídico-penal predominante” foi o “positivista”. Depois, “superada esta fase” (p. 40), houve uma “base neokantista”, que também não seria realista. Mais tarde, houve o “finalismo” (p. 40). Houve uma melhora, mas estas correntes do discurso penal não seriam realistas, pois não teriam “contato com a realidade” (p. 42).

Zaffaroni compara o sistema penal atual a uma “teia de aranha”, que só pega gente pobre. Uma teia de aranha que “o bicho grande” “destrói” (p. 42). O sistema penal “só aos pequeninos aprisiona”, não atingindo “os ricos” e nem “o que mandam” (p. 42). Por esta razão, o direito penal atual não consegue “a confiança” do povo (p. 42), não tendo legitimidade. Não ter legitimidade significa que o povo não considera o atual sistema penal legítimo, bom, confiável, pois o atual sistema penal só pune pessoas pobres, deixando os ricos e os poderosos impunes.

Para Zaffaroni, a “criminologia”, no início, atuou para esconder a realidade, para criar teorias que atacavam os negros, os indígenas, as pessoas pobres (p. 42). Estas teorias racistas consideravam as pessoas negras e indígenas como criminosas, sendo teorias genocidas, para Zaffaroni.

Para Zaffaroni, apenas uma corrente da criminologia, a “criminologia da reação social”, ajudou a mostrar a realidade. Zaffaroni tenta dar uma opção a estas correntes, criando uma teoria realista, chamada, pelo autor, de “realismo jurídico-penal marginal” (p. 5, na Apresentação do livro).

Em alguns textos, há como que uma simpatia de Zaffaroni pelo jusnaturalismo, embora exija um jusnaturalismo realista, baseado nos direitos humanos.

O realismo penal de Zaffaroni é um “direito penal garantidor e ético”, humanista, um “direito penal humanitário”. Este “realismo marginal”, a proposta de Zaffaroni, é exposto na parte III do livro “Em busca das penas perdidas”, nas páginas 179 a 280