Interpretação do cap. 13 da Carta aos Romanos, de São Paulo – o poder nasce do povo, para o povo, pelo povo

São Paulo, na “Carta aos Romanos”, resume a teoria cristã sobre o poder. Inicia com a tese do jusnaturalismo (Rm 2,14-15), mostrando que o poder público (impostos, leis, instituições, servidores públicos etc) é bom, em si mesmo. A frase “todo poder vem de Deus” significa que a natureza vem de Deus e é, em si, boa, sendo criação divina. O poder público, a organização da sociedade, também é, em si, bom. Claro que a organização da sociedade, o poder da sociedade, deve ser regrado, estruturado, por boas idéias práticas, como todo ato humano.

O poder deve ser ético, para ser bom. O poder deve ser estruturado pelas idéias práticas em adequação (convenientes) ao bem comum. O poder deve ser regido pelas “leis” (“nomos”, boas convenções), por leis positivas que expressam e detalham as leis naturais, que são as idéias práticas do povo para o bem comum.

O poder vem de Deus quando é um poder-Comunhão, um poder-fraterno, um poder-bom (bondoso), ligado ao bem comum. O poder é bom quando o poder é a realização do bem comum, das idéias do bem comum, idéias geradas pela Aliança (“berith”, Comunhão), pela união do povo, união gerada pelo diálogo.

Desde o início, o cristianismo ensinou que há o dever natural, correlato ao direito natural, de participar da vida pública e de obedecer às leis positivas, desde que estas leis positivas sejam a concretização das idéias do povo (da lei natural). A lei natural é o conjunto das idéias práticas e consensuais correlatas ao bem comum, sendo esta a fonte imediata do poder.

No capítulo 13 da “Carta aos Romanos”, São Paulo, com base na premissa central jusnaturalista, explicitada em Rom 2,14-15, explica que a regra suprema do Amor (querer o bem de todos, o bem universal, geral, comum) expressa a própria essência divina (Deus é amor, cf. São João Evangelista). As pessoas foram feitas para serem membros ativos do Corpo divino, para terem participação no poder divino, em todo poder.

São Paulo, seguindo literalmente e expressamente o ensinamento de Jesus Cristo, resume toda a lei, inclusive a Lei revelada, na regra do amor. O amor é, objetivamente, o conjunto das idéias práticas DO POVO para a realização do bem geral. Assim, o poder deve ser baseado no conjunto das idéias práticas para a realização do bem comum, no Amor, na Comunhão, no Corpo divino, numa Comunidade onde co-governamos com Deus, atuando como co-redentores. O poder público, para ser legítimo, deve ser a concretização do Amor, do Bem comum, das ideias práticas do povo, que expressam as necessidades, os anseios, projetos e aspirações do povo, das pessoas.

A essência da ética cristã e natural foi resumida por São Paulo assim: “amai-vos uns aos outros, pois quem ama o próximo cumpre plenamente a lei”. São Paulo repetiu a mesma lição no versículo seguinte, destacando que os Dez Mandamentos e todas regras éticas “estão resumidos numa só frase: amarás o teu próximo como a ti mesmo. O amor não faz mal ao próximo [só faz o bem].

A fórmula de São Paulo é a fórmula de Cristo, exposta na regra áurea ensinada por Cristo , quando resumiu os “Dez Mandamentos”: toda a ética, na fórmula da “regra áurea”, significa, no final das contas, usar a razão para o bem comum. A forma mais simples de obter boas decisões é gerar um diálogo que abarque cada razão particular, unificando as consciências pessoais pela via do diálogo racional, para que as decisões sejam razoáveis.

O poder nasce do Bem, de Deus, pelo bem (união, “berith”, “aliança”, consenso), por meio da união das pessoas (do povo, da sociedade), para o bem comum, para a Comunhão. O bom poder são as regras razoáveis e dialógicas, as ideias práticas do povo, para gerar a Comunidade, a Vida em Comum, em plenitude. A sociedade ordenada, baseada na ordem verdadeira, é uma sociedade movida pelo Diálogo do povo. O diálogo é a Dialética verdadeira, o Logos, a Comunhão de almas, a união das almas pelo diálogo, formando o Corpo divino, de Cristo.

A “regra áurea” da ética é o movimento da consciência, do diálogo, em prol do bem comum. Na fórmula ensinada por Jesus: “tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-lho também a eles, porque esta é a Lei e os Profetas” (cf. Mt 7,12); “façam aos outros aquilo que vocês gostariam que fizessem a vocês” (cf. Lc 6,31). Esta lição estava também no Antigo Testamento, em “Levíticos”, tal como no livro de “Tobias”.

A regra áurea também foi exposta por Hillel, o rabino mais destacado no Talmud. A “regra áurea” está em várias religiões, pois a ética cristã é a ética natural e humana, exposta da forma mais completa. A completude é a especificidade da ética cristã, que é a ética natural e humana.

A “regra áurea” significa que todo o movimento da consciência deve ser pautado em prol do bem comum: “tudo o que” nosssa razão (discursiva, consciência) natural preceitua para nós, também vale para o próximo. A igualdade fundamental da natureza humana faz com que as regras (idéias) racionais sejam a base da vida ética e também sejam a fonte imediata do poder.

O poder torna-se justo, bom, na medida exata em que se pautar de forma racional (dialógica), em prol do bem comum, do bem de todos. O poder nasce do diálogo, da comunhão das psiques, em prol do bem comum, da plenitude da criação, que é a glória de Deus.

O termo “amor” é complexo. Amor significa um conjunto de idéias para o bem de todos, os atos volitivos correlatos, tal como os atos afetivos e instintivos também correspondentes. O “amor” (as idéias práticas para o bem de todos) é a base do “pleno cumprimento da Lei” (cf. Rom 13,8-10). Amor é também o conjunto das idéias boas, das idéias em adequação ao bem comum, das idéias geratrizes do bem comum.

A ação divina é pedagógica e assim é a essência da vida e da política, que são também criações divinas. Como resumiu bem Arthur M. Schlesinger, no prefácio da biografia de Franklin Delano Roosevelt, biografia feita por Lord Roy Jenkins, “A política… é, em última análise, um processo educacional [pedagógico], uma aventura de persuasão e aprovação” (p. XVIII do livro “Roosevelt”, de Jenkins, Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 2005). Paulo Freire e São João Bosco iriam concordar com esta síntese.

O Céu é uma grande Democracia, uma grande República, movida pelo diálogo, em prol do bem comum, pela expansão do bem universal, da criação, do universo. Como explicou João XXIII, na “Pacem in terris” (1963), “é um direito inerente à dignidade das pessoas” o de “tomar parte ativa na vida pública” e social, tal como na economia etc.

João XXIII apenas desenvolveu o conteúdo da frase de Pio XII, no Natal de 1944, quando lembrava que a democracia era o regime mais condizente com a dignidade humana. A ação divina é divinizadora, visa transformar cada pessoa num co-governante do universo, num misto de pessoa humana com Anjo e também ser divino, por participação na Trindade, na Comunhão mística, no Corpo de Deus.

Conclusão: a teoria cristã sobre o poder é uma teoria pedagógica, de preceitos, de regras de como deve ser o poder, como bem explicou Leão XIII. O poder deve nascer do diálogo amoroso, da concórdia, deve expandir o amor, o bem comum. Em outras palavras, o poder deve ser pautado pelas idéias do bem comum (geral, universal), que são as idéias de amor ao próximo como a nós mesmos, como ensinou textualmente o próprio Jesus Cristo, ao resumir toda a ética (e política, pedagogia, economia etc) nesta fórmula magistral.

A Igreja ensina que a melhor forma de produzir as idéias práticas necessárias para manter, proteger e aumentar o bem universal é difundir o poder, é tornar cada pessoa uma fonte viva num grande diálogo, acatando a participação de todos, como numa grande sinfonia. Por esta razão, a Igreja sempre amou a educação do povo, dedicando a maior parte das obras sociais da Igreja à educação do povo. Isto fica claro no trabalho de várias ordens e congregações, como os Jesuítas, os Dominicanos, os Franciscanos, os Salesianos, os Lassalistas, os Irmãos Maristas e centenas de outras congregações que operam em colégios sem fins lucrativos ou nas estruturas estatais de ensino.

A Igreja é o Povo de Deus, a República divina e popular, a máxima Comunhão das vidas e almas, o máximo de união do povo, o Corpo vivo e visível de Deus (tendo como mediação a Eucaristia, a Ceia Comum). A difusão da Igreja exige um Estado e uma organização social (da sociedade, inclusive a economia etc) democrática, sob o controle do povo organizado.