A doutrina democrática de Bento XIV e Pio VI

Como demonstrei no outro livro (“Socialismo, utopia cristã”), a maior parte dos textos dos papas não são infalíveis. Os papas exercem o magistério ordinário, como regra e raramente o extraordinário, cf. explicou Dom Estevão Bettancourt. Obviamente, os textos papais, em geral, contêm boas verdades. Neste sentido, Pio VI, mesmo nos documentos mais críticos, expôs boas verdades. Isto fica patente inclusive na carta de 10.03.1791, ao Cardeal de La Rochefoucauld, quando criticou corretamente a ingerência indevida do Estado francês na organização da Igreja.

Vejamos alguns textos da carta de Pio VI ao Cardeal Rochefoucauld: “para que os homens pudessem reunir-se em sociedade civil, foi preciso constituir uma forma de governo, em virtude da qual os direitos da liberdade fossem circunscritos [limitados] pelas leis e pelo poder… dos que governam”. As limitações legítimas são as que visam o bem de todos. Pio VI completa: “o homem constituído em sociedade” não deve ter “omnímoda liberdade”, pois deve “levar em conta a razão, com que a natureza dotou especialmente o gênero humano e pela qual ele se distingue dos outros animais” e pela qual deve reger sua vida pessoal, familiar e social.

Pio VI, neste documento, citava um texto de Santo Agostinho (da obra “Confissões”, livro III, capítulo VIII), onde este Doutor da Igreja escreveu: “é, pois, um pacto geral da sociedade humana obedecer” aos agentes públicos, governantes etc. Agostinho morava numa província romana, na África, sujeita a Roma, uma mistura de República com Império. Em seus textos políticos, Santo Agostinho segue a concepção jusnaturalista e democrática de Cícero e de outros grandes juristas romanos.

A obediência ao poder constituído, exigida pela fé cristã, depende da racionalidade e da bondade (da adequação ao bem comum) das ordens, dos preceitos positivos, das leis positivas (e isso vale inclusive para o pátrio poder, os pais têm autoridade, desde que as regras e ordens sejam racionais e adequadas ao bem das crianças e do bem comum). O poder constituído, para ser legítimo, deve ser racional, limitado pelos ditames da razão (presentes em todas as pessoas, no povo, as regras, pois ditames são regras da razão popular, da razão de todas as pessoas), que expressa as exigências do bem comum. Só devemos obedecer se as leis e as ordens positivas forem racionais e estiverem em harmonia com o bem geral.

Em outros termos, só devemos obediência às leis positivas que estiverem de acordo com ética natural, presente em todas as pessoas, na consciência do povo. Só obedecemos se as leis positivas forem o reflexo das melhores idéias presentes na consciência do povo, idéias estas conexas e que expressam as exigências (necessidades, anseios, aspirações) do bem comum, do bem social. Como ensinou Leão XIII, na “Libertas”, “os princípios naturais” (as regras mais importantes da vida pessoal e social) constituem “um nobre patrimônio” de “toda a humanidade”. São luzes espalhadas no mundo, as luzes naturais da razão, sempre banhadas também pela luz sobrenatural do Espírito Santo, que atua em toda parte, especialmente por dentro da natureza, elevando-a.

Pio VI, na carta a Cardeal Rochefoucauld, concluiu que a “origem deste poder deve ser buscada menos num contrato social, do que no próprio Deus, autor do que é reto e justo”. O consenso é uma fonte legítima, se expressar as exigências do bem comum, o que, em regra, ocorre (o consenso, em regra, é um sinal veemente da verdade).

A teoria do pacto social, já presente em Agostinho (por influência de Cícero), pode ser aceita (“deve ser buscada menos”) se for dosada com considerações éticas, especialmente os dois critérios principais: a racionalidade e o bem comum (no fundo, trata-se do critério das regras racionais do bem comum).

A soberania da sociedade tem limites éticos e racionais, ou seja, as leis positivas somente são válidas se estiverem de acordo com “o que é reto e justo” (com a ética, a razão e o bem comum), como explicou Maritain. Em geral, o consenso é um sinal, um indício veemente da verdade, ou seja, reflete, em geral, o que convém à sociedade. Por isso, o método mais eficaz de obtermos decisões políticas em harmonia com o bem de todos é com a participação de todos, por decisões consensuais, de sínteses amplas, multilaterais, obtidas pela via do diálogo.

Uma das razões do consenso refletir, em geral, as melhores idéias deve-se ao poder do trabalho associado da razão (a união faz a força). Como explicou Aristóteles, na “Política”, ao justificar a democracia, a combinação de várias razões pessoais numa “razão social” é mais eficiente e profunda que o trabalho individual.

Como ensinou Clemente XII, em 1738, no documento “In Eminenti”, “a natureza do crime” (dos atos e idéias falsas) é tamanha “que se trai a si mesmo”, “os próprios esforços que se fazem para ocultar [o mal, o erro, as injustiças etc]” faz com sejam “notados melhor”. Os “olhos das pessoas sensatas e honradas” (a maior parte do povo) não se enganam, em regra. Por isso, o mal moral tem “tão grande horror à luz”. Há nesta proposição um elogio à imprensa, à opinião pública, ao bom senso que é, em geral, o senso comum. O mal, revelado, gera uma “reprovação universal”, reprovando idéias, regras ou instituições que prejudicam o bem comum. Da mesma forma, as idéias boas e verdadeiras têm, em regra, amplo consenso. Por isso, o consenso é um dos sinais claros da verdade, ponto que foi destacado por Lamennais (1782-1852) e também por Bonald.

O poder salutífero da razão foi também destacado por Bento XIV, que aprovou, em 1751, na “Providas”, a frase de “Cecílio Natal, referida por Minúcio Félix, “as coisas boas amam sempre a publicidade [a luz, a vida pública, às claras], os crimes se cobrem com o segredo”. Isto ocorre porque a maior parte das pessoas é boa, medianamente boa e a aprovação da maior parte é um sinal claro da legitimidade da conduta. Trata-se de um grande fundamento antropológico da democracia. Como a Bíblia ensina, no “Genêsis”, ao tratar da criação, passo a passo, o próprio Deus elogia a natureza, dizendo que esta é boa, pois é criação divina, controlada pelo próprio Deus, por mediações, mas sob o controle do Amor, do Pai Eterno.