Santo Tomás Morus (Moore ou Mouro, 1478-1535) foi Chanceler da Inglaterra, atuando como “consciência” jurídica (uma espécie de Ministro da Justiça) do rei. Este era o maior cargo do Estado abaixo do rei, como fica claro inclusive nas “Ordenações” Manuelinas” e “Filipinas”, pois existiam pontos semelhantes entre o Estado inglês e o português.
Morus é um dos maiores santos da Igreja. Santo Tomás Morus foi canonizado foi declarado, pelo Vaticano, como o “padroeiro dos políticos e dos governantes”. O Vaticano, ao escolher os padroeiros, elege exemplos. Pois bem, o Vaticano escolheu Santo Tomás Morus como o exemplo dos políticos e dos governantes, o que é extremamente significativo.
João Paulo II, no texto onde nomeia Morus como patrono dos políticos e dos governantes, lembra que Morus deu também o exemplo de como ordens (leis, regras estatais e sociais) iníquas devem ser desobedecidas. Afinal, o que viola as idéias de nossa consciência não têm validez. Morus preferiu a morte a agir contra a sua consciência. Teve a cabeça decepada por ordem de Henrique VIII, o rei que matou várias esposas. Uma morte que lembra a de Sócrates, Sêneca e do próprio Jesus Cristo.
Santo Tomás Morus é o patrono dos políticos e dos governantes. Foi escolhido pelo Vaticano como o exemplo vivo (o espelho) para que os políticos e agentes públicos se espelhassem nele para se santificarem, tendo Santo Tomás Morus como parâmetro para seus deveres de estado (de ofício). Na visão do Vaticano, para que o político seja um bom político, deve pautar-se pelo exemplo de Santo Tomás Morus, tal como os advogados devem seguir os exemplos de São Ivo de Chartres (1040-1116). Assim os bons políticos, no prisma católico, devem seguir os passos, o caminho, de Santo Tomás Morus.
Morus tinha como grandes amigos Juan Luís Vives e Erasmo, dois outros grandes católicos. Estes autores tinham inúmeras idéias em comum com outras estrelas do catolicismo, como Montaigne, Rabelais, Santo Inácio de Loyola e outros. Todo o método de educação do frade François Rabelais (1494-1553), exposto no livro “Pantagruel” (1532), é baseado numa educação ética realista. Rabelais cunhou máximas cristãs como “ciência sem consciência na passa de uma ruína da alma”. Também enfatizou as lições da realidade e a importância da ética e da inteligência prática na educação.
Vives é considerado o pai da psicologia moderna e também da idéia do Estado de bem estar social. A concepção cristã e natural do “Welfare Estate” (“Estado do bem estar social”), ligada ao trabalhismo (basta pensar no casal Webb, William Beveridge ou mesmo Nell-Breuning ), ensina que cabe ao Estado erradicar a miséria pela difusão de bens.
Na década de 70, e mesmo antes, os tenebrosos e vis neoliberais, que são os mesmos liberais, atacaram os pobres atacando a estrutura do Estado do Bem Estar social (o ataque continuou nos anos 80 e 90, a horrenda era neoliberal). No Brasil, basta pensar no horrível Gudin ou em Mário Henrique Simon. Antes da ditadura, estes neoliberais se organizavam na UDN, um partido satélite do imperialismo. Outros neoliberais são Aynd Rand, Hayek e outros da linha “demo” (do antigo PFL, hoje Demo, coxinhas de alto coturno). Como resumiu bem Paulo VI, o liberalismo é a ideologia do capitalismo, que a Igreja condenou reiteradas vezes, inclusive em bons textos de Pio XII.
Erasmo foi um dos maiores renascentistas, seguindo a linha de Petrarca e de Cícero, defendendo o humanismo cristão. Erasmo escreveu um livro defendendo o livre arbítrio (na linha da obra de Orígenes e de Santo Agostinho), a liberdade humana, para refutar erros de Lutero e também escreveu “Elogio da loucura” (1508), com críticas a erros. Estes três expoentes do catolicismo são exemplares. Montaigne também amava o estoicismo, citando pilhas de pensadores da Paidéia.
A obra mais importante de Morus é o livro “Sobre a melhor condição do Estado e a nova ilha Utopia”. Em geral, esta obra é editada com o título resumido de “A utopia” (São Paulo, Editora Martin Claret, 2002, p. 56). O texto foi redigido em 1516, com base em textos portugueses, que descreviam os indígenas brasileiros. De fato, o regime econômico e político de nossos índios, da América do Sul (especialmente do Brasil), foi o exemplo para Santo Tomás Morus e também para Rousseau, como demonstrou Afonso Arinos de Mello Franco, numa velha obra.
Morus destacou a importância da jornada de trabalho reduzida de seis horas e também a importância da educação pública e da democracia numa república ou sociedade bem constituída, de acordo com os ideais cristãos, naturais.
Vejamos as linhas gerais de uma sociedade justa, bem harmônica e equilibrada, pautada pelas regras racionais do bem comum, na visão de Morus, especialmente a forma que deveria ser adotada para a escolha dos agentes públicos:
“Dos Magistrados [agentes públicos, na terminologia atual]. Cada trinta famílias escolheram anualmente um magistrado, denominado na antiga língua do país “sifogrante”, e na moderna “filarco”. Cada vez sifograntes, com as trezentas famílias que chefiam, obedecem a um magistrado, outrora chamado “traníboro” e agora denominado “protofilarco”. Quando se trata da eleição do príncipe, todos os sifograntes, em número de duzentos, depois de prestarem juramento de elegerem o cidadão mais experiente e apto, proclamam príncipe, em escrutínio secreto, um dos quatro propostos anteriormente pelo povo. Cada uma das quatro seções da cidade elege um representante à eleição, para tomar um lugar no conselho. O principado é vitalício, a menos que o príncipe seja deposto por suspeita de tentar instaurar a tirania. Os traníboros são nomeados todos os anos, mas quase nunca são substituídos. Os outros magistrados são também nomeados atualmente. De três em três dias, ou mais frequentemente, em caso de necessidade, os traníboros reúnem-se com o príncipe, em conselho, para decidir dos negócios públicos.
No caso de processos entre os cidadãos, processos, aliás raros, deliberam e concluem-nos com rapidez. A cada sessão do conselho assistem dois sifograntes, mas nunca os mesmos de sessão para sessão. É da lei que os assuntos de interesse geral sejam discutidos no conselho durante três dias antes de serem votados, e convertidos em lei. É punida com a morte a reunião fora do conselho para deliberar sobre assuntos públicos, ou então fora dos locais normais de assembléia. Esta determinação tem por fim impedir que o príncipe e os traníboros facilmente conspirem para oprimir o povo com a tirania ou que alterem a forma de governo. Assim os assuntos de alta importância são enviados à assembléia dos sifograntes, que os comunicam às famílias. Em seguida, de consulta geral, apresentam a sua opinião ao Senado. Em certos casos, o assunto é levado à consulta da assembléia geral de toda a ilha. Também é de uso que não se discuta no Senado assunto algum no próprio dia em que é apresentado, sendo a discussão marcada para a sessão seguinte. Deste modo, ninguém se encontra em situação de, depois de ter dito o que lhe veio à cabeça, se obstinar na defesa da sua opinião errada e repentina, sem qualquer meditação na sua utilidade para o bem comum; preocupando-se mais com o seu orgulho e amor-próprio do que com o prejuízo ou mal que advirá da aprovação de tal matéria, para o interesse público, levado pela vergonha disparada da retratação da sua opinião irrefletida. Deste modo, preservam-se a reflexão e a sabedoria, impedindo-se precipitação obstinada”.
As bases da doutrina da Igreja foram bem expostas pelo “Mouro”. Especialmente a tese do primado da “utilidade para o bem comum”, ou seja, a tese que todos os bens (inclusive os bens públicos, o poder público) devem ser dispostos e regrados para atender às necessidades humanas racionais.
A forma de escolha dos agentes públicos deve ser a eleição por círculos ou colégios, de baixo para cima, com amplo controle popular, misturando, ao máximo, institutos da democracia direta e indireta. A eleição por círculos, diga-se de passagem, não é contrária ao voto proporcional. O sistema proporcional de votação é um aperfeiçoamento do sistema majoritário, existente na Idade Média, pois aproveita o quociente eleitoral, os votos dados às minorias e também ocorre em círculos (no Brasil, nas 26 Estados-membros e no DF).
O núcleo das idéias democráticas e socialistas de Morus tem origem nas idéias dos indígenas do Brasil (que também influenciaram Montaigne e Rousseau) e também nas leis de Moisés. Moses Hess considerava Moisés como o patriarca dos socialistas, de uma forma de socialismo como democracia social. Spinoza e Moses Mendelssohn também souberam demonstrar a raiz das idéias democráticas na Bíblia. As idéias bíblicas, especialmente do Novo Testamento, inspiraram os Santos Padres, Morus (1478-1535), Tomás Campanella (1568-1639), Sébastien Vauban (1633-1707, autor de “O dízimo real”), Fénelon, Mably, Morelly, Babeuf e a maior parte dos socialistas utópicos (especialmente Saint Simon, Fourier, Leroux, Owen e outros), todos homens profundamente religiosos, diga-se de passagem.
As idéias agrárias de José do Egito e de Moisés inspiraram, mais tarde, as leis agrárias socialistas, implantadas no Egito (por José, filho de Jacob, como ensina a Bíblia). Estas leis egípcias, que a Bíblia atribui a José, influenciaram as leis agrárias de Creta, Esparta, gregas e romanas, fazendo parte relevante do movimento popular democrático da época. O direito dos pobres à respiga (cf. Lev 19,9-10; Deut. 24; Rut 2,2; e o tratado “Peah”, do Talmud) é apenas uma forma para expressar e realizar a destinação universal dos bens.
As idéias sociais e políticas de uma democracia social estão nos textos dos dramaturgos gregos e reaparecem nos textos de Platão (“A república”, “O político” e, principalmente, “As leis”, 357 a.C.), nos livros de Aristóteles e também está na obra dos grandes historiadores gregos e romanos (Heródoto, Tucidídes, Tito Lívio, Plutarco e outros). Depois, ressurgem novamente, com ênfase, nos textos estóicos, nas sínteses de Cícero, nos textos de Virgílio, tal como nos grandes juristas romanos. Além destas, há ainda outras fontes hebraicas, gregas e de outros ramos da Paidéia (presente nos cinco continentes).
O nome “Morus” significa “Mouro”. Em alemão, é “Mohr”, justamente o apelido familiar de Karl Marx. É provável que Marx tenha adotado este apelido em homenagem a Morus e talvez por influência também do abade Morelly (que significa “o pequeno Morus”, em homenagem a Morus), outro autor muito elogiado pelo jovem Marx, especialmente quando estava na Liga dos Justos. No livro “O capital”, Marx cita amplos textos de Santo Tomás Morus, explicitando, assim, seus precursores, algumas das várias fontes religiosas de seus textos. “Mohr”, o Mouro, era o apelido familiar de Marx, que era chamado assim pela esposa, pelas filhas e por Engels, durante mais de trinta anos. Marx citou extenso texto de Santo Tomás Morus, do livro “A utopia”, na abertura de seu livro principal, “O Capital”. O velho Marx também considerava como seus precursores homens como Morus, Campanella, Mably, Morelly, o Círculo Social (formado por vários padres) e outras pessoas ligadas à Igreja. Marx e Engels também elogiaram o cristianismo primitivo, como movimento precursor. As idéias cristãs eram a principal influência no socialismo utópico, precursor do socialismo marxista.
Pela doutrina de Morus, os bens (a distribuição, a produção e o uso dos bens) devem servir ao “bem comum”, à utilidade, ao atendimento das necessidades de todos. Para isso, o povo deve ter o controle efetivo sobre os bens, para que estes atendam às necessidades de todos. Estas regras são racionais e também bíblicas, como está claro em “Gênesis 1,26-28”, nos “Atos dos Apóstolos” (capítulos 2 e 4), nos demais textos bíblicos, nos Santos Padres etc.
O próprio Marx elogiou o “cristianismo primitivo”, numa carta a Domela, um ex-pastor. Foi seguido, nisso, por Engels. Em Renan há também o elogio do cristianismo primitivo. Infelizmente, estes autores não souberam ver que estas idéias permanecem vivas nos cristãos, nos muçulmanos (pelas raízes hebraicas e cristãs), nos melhores pensadores judaicos, tal como estão presentes nos melhores textos hindus, budistas, da religião chinesa e japonesa etc.
Luís Blanc (1811-1882), no livro “O catecismo dos socialistas” (1849), escrevia que “a finalidade do socialismo é realizar entre os homens as quatro máximas fundamentais do Evangelho: 1º) amai-vos uns aos outros; 2º) não façais a outrem o que não quereis que vos façam; 3º) o primeiro dentre vós deve ser o servidor de todos os outros; e 4º) paz aos homens de boa vontade”.
Os “princípios” (regras racionais, idéias práticas racionais) jurídicos e éticos são nossas melhores idéias racionais e naturais, éticas e jurídicas. O conjunto destas idéias (regras, preceitos) práticas do bem comum foi chamado, por convenção, de “lei natural”, por ser comum a todos, nascendo diretamente do uso natural da razão.
O napolitano Vico, precursor de Hegel, no livro “Ciência nova” (“dignidade”, 104), escrito em 1744, também ensinava que as bases do direito legítimo e do bom poder são “o costume razoável” e “a lei” “animada pela razão natural”, para resumir, a razão natural é a matriz (a fonte, a origem imediata) das leis, do poder e das instituições legítimas.
A razão natural está ligada intrinsecamente à natureza, à realidade, pois a razão é principalmente a faculdade de abstrair idéias da realidade, da criação, controlada e habitada por Deus. A razão é o intelecto, o entendimento, a inteligência. Como ensina a própria etimologia da palavra “inteligência”, inteligir (entender, compreender) significa penetrar na essência dos seres, abstraindo (captando) estas essências, que se tornam idéias, como se fossem imagens (por analogia) dos seres.
A “lei natural” (as idéias práticas e racionais do bem comum, para atender às necessidades de todos) é o cerne da “doutrina social da Igreja”. A lei natural é o conjunto das regras (idéias práticas) nascidas da razão das pessoas (da razão do povo), para que os bens atendam às necessidades racionais de todos. Como fica claro pela cadeia de raciocínios (entimemas) deste blog, a razão (aperfeiçoada pelo diálogo) é a matriz natural para a criação, a interpretação, a execução e a crítica (inclusive na forma de desobediência e revolução) do ordenamento jurídico positivo e do Estado. Em outras palavras, a tese fundamental do jusnaturalismo ensina que as pessoas são legisladoras naturais; devem pautar suas condutas pela luz racional e boa (em harmonia com o bem geral) da razão, para que os bens atendam às necessidades racionais de todas as pessoas.
Morus também tem mérito por ter defendido a liberdade religiosa, antes de Locke ou Spinoza. Em seu esboço de Estado, Morus, no livrinho “Utopia”, ensinou que os cidadãos devem ter liberdade religiosa, havendo uma religião natural, ligada à razão natural, idéia que influenciou autores como Rousseau, Emmanuel Kant (1724-1804), Campanella (1568-1639) e Morelly. Num parêntese, vale à pena lembrar que Constantino, apesar de erros, instaurou, em Roma, a liberdade religiosa, permitindo a coexistência legal do culto pagão e do cristão.