Maritain foi o principal mestre de Alceu Amoroso Lima, sobre democracia popular

Jacques Maritain, o principal autor tomista do século XX, no livro “Os direitos do homem” (Rio de Janeiro, Editora José Olympio, p. 58), colocou às claras a relação entre o jusnaturalismo, o pensamento cristão e o pensamento clássico, demonstrando que a herança hebraica-cristã e o classicismo (a Paidéia, cf. Werner Jaeger) foram as fontes teóricas principais da democracia:

O direito natural. A idéia do direito natural é uma herança do pensamento cristão e do pensamento clássico. Ela não decorre da filosofia do século XVIII que mais ou menos a deformou; procede antes de Grotius, e, antes dele, de Suárez e Francisco de Vitória; e, mais longe, de Santo Tomás de Aquino, de São Agostinho e dos Padres da Igreja, e de São Paulo; e, mais longe ainda, de Cícero, dos Estóicos, dos grandes moralistas da antiguidade e de seus grandes poetas, de Sófocles, em particular. Antígona é a heroína eterna do direito natural, a que os Antigos chamavam a lei não escrita, nome, aliás, que melhor lhe convém”.

Maritain acertou ao apontar as fontes teóricas da democracia, embora tenha omitido os profetas bíblicos, Moisés e, enfim, a tradição jusnaturalista presente praticamente em cada versículo da Bíblia e também no pensamento antigo. O jusnaturalismo hebraico é bem mais forte e profundo que o grego e o romano – bases do pensamento clássico – e foi o manancial principal do rio da democracia, como demonstrou historiadores como Christopher Hill, ao examinar a história da Inglaterra.

Na obra referida acima, nas páginas 60-62, Maritain explica melhor o pensamento jusnaturalista da Igreja:

“A lei e o conhecimento da lei são duas coisas diferentes. O homem que não conhece a lei (se esta ignorância não provém de alguma deficiência) não é responsável perante a lei. E saber que há uma lei não é necessariamente conhecer o que é esta lei. É por esquecimento dessa distinção tão simples que muitas perplexidades tem nascido relativamente à lei não escrita. Ela está escrita afirma-se, no coração do homem. Sim, mas em profundidades secretas, tão secretas a nós, quanto o nosso próprio coração. Mesmo esta metáfora tem causado muitos prejuízos, ajudando a se espalhar a crença de que a lei natural é um código pronto, impresso num rolo de papel depositado na consciência de todos, cada qual tendo apenas que desenrola-lo, e todos os homens devendo ter dele naturalmente um conhecimento igual. A lei natural não é uma lei escrita. Os homens a conhecem mais ou menos dificilmente, e em graus variados, arriscando-se ao erro, como em tudo o mais. O único conhecimento prático que todos os homens têm natural e infalivelmente em comum, é que é necessário fazer o bem e evitar o mal. Este é o preâmbulo e o princípio da lei natural, não é esta lei propriamente. A lei natural é o conjunto das coisas que se devem e que não se devem fazer, dele decorrentes de uma maneira necessária e pelo fato somente de que o homem é homem, abstraindo de qualquer outra consideração. Que todos os erros e todas as aberrações sejam possíveis na determinação dessas coisas sejam possíveis na determinação dessas coisas, isso prova somente que nossa visão é fraca e que nosso julgamento pode ser corrompido por acidentes sem conto. Observava Montaigne maliciosamente que o incesto e o latrocínio têm sido considerados ações virtuosas por certos povos, com o que Pascal se escandalizava; e nós nos escandalizamos de que a crueldade, a denúncia dos pais, a mentira ao serviço do partido, o assassínio dos velhos ou dos doentes sejam levados a conta de ações virtuosas pelos jovens educados segundo os métodos nazistas. Nada disto prova contra a lei natural, do mesmo modo que um erro de soma nada prova contra a aritmética, ou que os erros dos primitivos, para quem as estrelas eram buracos na tenda que recobria o mundo, nada provam contra a astronomia”.

A lei natural é uma lei não escrita – no fundo, a lei natural é o conjunto dos ditames da razão, das regras de conduta que nascem do movimento natural das consciências, da inteligência humana –, que aumenta com o aumento das luzes e da ciência.

Conclusão: como bem explicou Maritain, “o conhecimento que nossa própria consciência moral tem desta lei é, sem dúvida, ainda imperfeito”, ele “se desenvolverá e se afinará tanto quanto dure a humanidade. Quando o Evangelho tiver penetrado até o fundo da substância humana é que o direito natural aparecerá em sua flor e perfeição”.