Alceu seguiu as melhores lições de Jacques Maritain. Vejamos uns textos de Maritain, para explicar o apreço destes dois astros da Doutrina social da Igreja pela democracia popular.
Jacques Maritain, no livro “Cristianismo e democracia” (Petropólis, Editora Agir, 1945, pp. 56/57), expôs a relação entre cristianismo e democracia:
“Acreditai ou não nesse advento, é para ele que vos voltais se crerdes na marcha para a frente da humanidade. E o que, de qualquer modo, foi adquirido pela consciência profana, caso ela não se volte para a barbaria, é a fé na marcha para a frente da humanidade.
Sob a inspiração evangélica, muitas vezes mal conhecida mas operante, compreendeu a consciência profana a dignidade da pessoa humana e compreendeu que a pessoa, mesmo fazendo parte do Estado, transcende o Estado pelo mistério inviolável de sua liberdade espiritual e por sua vocação a certos bens absolutos.
A razão-de-ser do Estado é auxiliá-la na conquista desses bens e de uma vida verdadeiramente humana.
O que foi adquirido pela consciência profana, se ela se não voltar para a barbárie, foi a fé nos direitos da pessoa humana, na própria qualidade de pessoa humana como pessoa cívica, como pessoa incorporada à vida social e econômica, como pessoa operária. E foi ainda a fé na justiça como fundamento necessário da vida comum e como propriedade essencial da lei, que não é lei se for injusta.
Proudhon acreditava que a sede da justiça é o privilégio da Revolução e o objeto dos temores atentos da Igreja. A sede da justiça foi gravada na alma dos séculos cristãos pelo Evangelho e pela Igreja; foi com o Evangelho e com a Igreja que aprendemos a só obedecer quando a ordem é justa”.
Nas páginas 82/83, ele completou estes raciocínios:
“Segundo uma forma corrente, o regime democrático é descrito, como sendo o regime da soberania do povo. É equívoca essa expressão pois na verdade não existe soberano nem senhor absoluto em uma democracia. Seria melhor dizer que a democracia é o regime em que o povo goza de sua maioridade social e política e a exerce para se dirigir a si próprio, ou ainda que ela é “o governo do povo, pelo povo e para o povo”. Isto significa que o povo então é governado por homens que ele próprio designou para funções de natureza e de duração determinadas e sob cuja gestão conserva ele uma fiscalização regular, antes de tudo por intermédio de seus representantes e de suas assembléias.
O erro do liberalismo individualista fora negar em princípio, sob pretexto de que ninguém deve “obedecer senão a si próprio”, todo direito real de direção aos eleitos do povo. Tornavam-se estes então detentores de um poder sem autoridade, e no próprio instante em que governavam o povo deviam fazer crer-lhe que não passavam de seus instrumentos passivos. Na realidade, recebem eles sua função do povo e devem governar em comunhão com ele, mas desfrutam de uma autoridade verdadeira nos limites de suas funções. O erro do liberalismo individualista era também reduzir a comunidade e uma poeira de indivíduos em face de um Estado todo-poderoso, no qual a vontade de cada um se supunha aniquilar-se e ressuscitar misticamente sob a forma de vontade geral. O erro do liberalismo individualista era excluir a existência e a autonomia, a iniciativa e os direitos próprios a todo grupo ou comunidade de nível inferior ao Estado, e finalmente de suprimir a própria noção de bem comum e de obra comum. Esses erros, que correspondiam ao advento da classe e da ideologia burguesas, longe de participarem da essência da democracia, são destruidores da democracia”.
O “direito natural”, isto é, o conteúdo normativo da consciência (da subjetividade criadora) do homem comum, é a base da democracia e, assim, de um socialismo participativo e democratico. Os textos da Bíblia e os textos da Paidéia (especialmente Protágoras, Péricles, Sólon, Sófocles, Aristóteles ou Cícero) é clara a relação entre o jusnaturalismo, os direitos humanos, a pessoa comum, a democracia, a ética e a religião. Esta mesma relação é a essência dos melhores textos de Rousseau, Vitória, Algernon Sidney, John Locke, Jefferson, Thomas Paine, Suárez, Gabriel Vázquez (1551-1604, tomista eclético, ligado também a Duns Scotus), Mariana, Bellarmino, Grócio, Robespierre, Saint Just, Alceu Amoroso Lima, Rommen, Recaséns, Maritain e de centenas de outros escritores.
Conclusão: a verdadeira democracia exige princípios fundamentais como o da comunhão de bens (destinação universal dos bens), que são exigências do direito natural. O princípio do bem comum (universal) ou da comunhão de bens é o principal princípio de direito natural, um ideal a ser concretizado, que vincula todas as formas de organização social. No fundo, o primado do bem universal é apenas outro nome para o princípio da destinação universal dos bens, sendo este a base do distributismo de Chesterton ou de Alceu. Os bens (materiais, morais, jurídicos, culturais, intelectuais, sobrenaturais etc) devem ser distribuídos para todos, na medida das necessidades de cada um (cf. “Atos dos Apóstolos”, caps. 2 e 4) e devem ser controlados por todos (cf. lição imorredoura de “Genêsis”, exposta nos textos de Moisés).