O Jusnaturalismo é intrinsecamente democrático e popular

Há uma distinção muito importante entre as palavras, que gera a figura de linguagem chamada metonímia. Esta figura ocorre quando substituímos a causa pelo efeito ou vice-versa. Esta distinção (nuance) fica clara nas palavras gregas “nous” e “logos”, que significam “consciência”. A distinção é fundamental para clarificar a relação entre o jusnaturalismo e a democracia e para explicar a doutrina social da Igreja (do cristianismo) sobre o poder público. A metonímia gera dupla acepção de palavras essenciais na terminologia política: “razão”, “consciência”, “cultura”, “sabedoria”, “conhecimento”, “doutrina”, “entendimento”, “fé”, “afetos” e “poder”. Assim, a frase: o poder deve ser baseado na razão quer dizer que o poder deve nascer da razão das pessoas, do diálogo, do povo. 

A distinção entre os dois sentidos (significados) da palavra “consciência” (os gregos usam duas palavras, “nous” e “logos”) nasce da relação entre a causa e o efeito e, assim, da forma como conhecemos as causas, todos os seres. Como ensinaram Santo Tomás e outros neoescolásticos, o cristianismo não é idealista ou materialista, e sim realista.

O realismo (cf. Maritain e Etienne Gilson) é a concepção cognitiva (epistemológica) própria do cristianismo, ponto que fica bem evidente nos textos de Santo Tomás de Aquino, Locke e outros.

Há, no jusnaturalismo democrático adotado pelo melhor da Paidéia e pela Igreja, a maior de todas as apologias do poder da consciência (da razão, da ciência, da filosofia), de conhecer (de compreender, de inteligir) a realidade. A doutrina da Igreja parte do elogio da consciência humana, especialmente da luz natural da razão.

O realismo foi bem exposto por autores da Escola de Lovaína e por grandes luminares católicos como: o cardeal Desidério Mercier (1851-1926), o padre Joseph Marechal, S.J. (1878-1944), Reginaldo Garrigou-Lagrange (1877-1964), Jaques Maritain (1882-1973), Deploige, De Wulf, Nys, Thiéry, Léon Noel (1878-1953) ou os textos de Etienne Gilson (1884-1978).

Etienne Gilson demonstrou que a filosofia cristã é sempre realista (na questão da teoria do conhecimento) e sempre humanista. Dentre as obras de Gilson, merecem boa memória: “Realismo tomista e crítica do conhecimento” (1939), “O ser e a essência” (1948) e “Estudos sobre o papel do pensamento medieval na formação do sistema cartesiano” (1930).

O conhecimento humano inicia pelos efeitos, pela apreensão da realidade, que é a criação, a natureza. Avançamos dos efeitos às causas, pela apreensão da realidade (natureza) material, empírica. Este ponto está bem explanado nos livros de Aristóteles, Tomás de Aquino e nas estórias sobre investigações de Conan Doyle, Rex Stout (especialmente o grande Nero Wolfe), Ellery Queen e outros.

A expressão “tabula rasa”, para designar a consciência antes dos dados dos sentidos, vem de Aristóteles. Foi cunhada por Santo Tomás, sendo aceita por Locke. Conhecemos a realidade pelos dados dos sentidos (dados empíricos), da experiência sensorial (cf. destacou Karl Rahner, Balmes, Leibnitz, Santo Tomás, Aristóteles e outros). Messner lembra o brocardo latino e escolástico “omnis cognitio incipit a sensibus” (“todo conhecimento começa pelos sentidos”).

Com base na massa de dados empíricos, a inteligência efetua abstrações (elaborando idéias gerais), por induções (silogismo que parte do particular para o geral). Depois, por deduções (outra forma de silogismo, em regra, na forma de sorites e entimemas, que são raciocínios sob formas mais simplificadas), deduzimos outros fatos adicionais. Assim, a inteligência chega às causas pelos efeitos.

Pelos efeitos, conhecemos as causas, especialmente as leis (regras) gerais (formas, regras) que regem a matéria e todos os seres. Esta distinção e o progresso dos efeitos às causas deixaram marcas claras no vocabulário, no sentido das palavras que usamos, principalmente nos termos “razão”, “consciência”, “lei”, “cultura”, “fé” e outros.

Por exemplo, vejamos o significado do termo “fé”. A fé é um conjunto de idéias, no sentido objetivo. As idéias corretas objetivas sobre Deus praticamente geram e induzem o diálogo com Deus.

No sentido subjetivo, fé é uma adesão, um ato da vontade, que dá o assentimento às idéias (e à relação dialógica com Deus), pois todo ato da vontade pressupõe uma idéia prévia e as idéias exigem atos da vontade correlativos (tal como atos corporais, imagens, palavras etc). No sentido subjetivo, a fé também é um conjunto de sentimentos (emoções, paixões) ligados a estas idéias (idéias-forças), pois toda virtude (toda idéia) vem acompanhada de sentimentos (emoções, afetos, paixões).

Sobre o poder dos afetos, vide o padre José Antônio de Laburu (1887-1971), em obras como “Los sentimentos, su influjo em la conducta del hombre” (Montevideu, Ed. Mosca, 1946) e “O poder da vontade na conduta do homem”. Laburu lecionou na Universidade Gregoriana, em Roma, dos Jesuítas. Ainda no sentido subjetivo, a fé é uma capacidade de conhecimento, uma iluminação, uma contemplação, uma cognição, um diálogo com Deus (a fé significa consciência da Presença de Deus e diálogo). Nas frases onde há o termo “fé”, em geral, há um ou mesmo dois dos significados acima, que são, no fundo, etapas (fases, momentos) de um único processo, momentos e etapas do procedimento da fé.

O mesmo ocorre com o termo “consciência”. O termo “consciência”, no sentido subjetivo, significa a “faculdade de conhecer”, a causa eficiente do conhecimento. No entanto, a palavra “consciência”, no sentido objetivo, significa o “conjunto de idéias conhecidas, presentes na consciência, como o efeito, o fruto do processo cognitivo, de conhecimento.

Assim, nas duas acepções da palavra “consciência”, a fonte direta, imediata, do poder público e de todo o poder é a consciência, a razão, o entendimento (cf. Leibnitz, Suárez e Santo Tomás de Aquino) de cada pessoa, logo, da sociedade, do POVO. A principal fonte de conhecimento é o diálogo, pois quase tudo o que sabemos, conhecemos por ouvir dizer, por provas testemunhais. Não vemos com nossos olhos diretamente a China, mas sabemos sobre ela, por ouvir dizer e por imagens. Da mesma forma, nunca vimos milhares de figuras públicas, mas ouvimos e lemos sobre elas etc.

Também há esta polissemia no termo “lei eterna”, que significa que Deus, a Causa das causas, a Inteligência Suprema, é esta Lei, Viva e consciente. A “lei” é a “Inteligência” de Deus (tal como a lei natural é a razão natural prática). Os preceitos (regras) são o efeito. Por esta razão, a “lei eterna”, no sentido de efeito, significa o conjunto de preceitos (regras inteligentes e benéficas a todos), tal como “lei natural” significa, no sentido objetivo (de efeito), o conjunto de regras racionais e benéficas a todos, o conjunto das regras do bem comum.

Deus é o Legislador da lei eterna. Deus não opera de forma arbitrária, como ensinava os erros nominalistas, e sim de forma inteligente, objetiva, comunicativa e por diálogo. Da mesma forma, as pessoas são as legisladoras naturais da própria vida pessoal, familiar e social, operando normalmente pelo diálogo, pelas palavras.

Num parêntese, friso que a consciência objetiva da sociedade não se limita às idéias dentro da consciência, estendendo-se também aos seres criados como objetivações (realizações, execuções, concretizações) das idéias, como explicaram Álvaro Vieira Pinto e outros autores.

Em termos antropológicos, os produtos da atividade (trabalho) consciente são produtos culturais, concretizações de planos, projetos, idéias, pré-existentes. A ação humana é naturalmente planejada, premeditada, pois nossa consciência é naturalmente planejadora, pensamos e projetamos, antes das principais condutas da vida.

O termo “nous” foi usado principalmente para designar a “faculdade ou atividade” (em alemão, “Vernunft”) de pensar, de conhecer, de entender, de inteligir. O termo “logos” significa principalmente “o conteúdo do nous” (o efeito do conhecimento), ou seja, a “verdade” (“grund”, em alemão), o “conhecimento” objetivo, o conjunto das idéias verdadeiras, geradas pelo “nous”, pela inteligência. Estas idéias podem ser teóricas ou práticas. As idéias verdadeiras práticas, como demonstraram Aristóteles e São Tomás de Aquino, são quase sempre exigências práticas e racionais do bem comum, são necessidades e interesses inteligidos, conexos com os bens almejados.

A “consciência” abrange a inteligência (e nesta a razão e a memória), a vontade, os afetos, a imaginação e mesmo os instintos, sendo a inteligência a luz da consciência, a principal faculdade. Estas idéias também estão nos melhores textos do padre Vieira, de Alceu e de milhares de autores cristãos, especialmente nos católicos. Em cada ato de conhecimento, estas faculdades interagem.

A imaginação e os afetos afetam profundamente cada percepção humana (isto explica o olhar do apaixonado, que considera a criatura amada como a mais bela e boa do universo). Montaigne e Flaubert destacaram bem o poder da imaginação no ato de conhecimento. Até mesmo Sartre trouxe subsídios a este ponto, seja dito entre parênteses.

Na língua portuguesa, o termo “consciência”, no sentido subjetivo (causal), significa a “faculdade de conhecer a realidade”, a verdade, as idéias em adequação com a realidade. No sentido objetivo (do efeito), “consciência” significa também o efeito da causa, ou seja, “o conjunto de verdades”, de idéias verdadeiras presentes na consciência, o patrimônio cultural da humanidade, sempre em expansão. Em expansão, o que também explica a variabilidade da “lei natural”, que também nasce da variabilidade das circunstâncias e das peculiaridades de cada pessoa e povo.

A nuança dos significados da palavra “consciência” ocorre pela confusão entre a causa e o efeito da causa. Há a mesma ambigüidade nos termos “razão”, “cultura” (Paidéia), “inteligência”, “entendimento”, “sabedoria” etc.

Em uma palavra, para resumir tudo num parágrafo: a frase “o poder só é verdadeiro (legítimo, justo) se for regido pela verdade” equivale a “o poder só é legítimo se for regido pela consciência ativa da sociedade”, pelo diálogo.

Noutra fórmula: o poder é legítimo se expressa e realiza o bem comum, as aspirações, os interesses, as idéias, as necessidades da sociedade. De forma mais concisa ainda: o poder só é justo (justificado, bondoso, legítimo) se for pautado pela justiça natural, pelos direitos naturais de cada pessoa e da sociedade, pelas exigências (regras, idéias práticas) racionais e sociais do bem comum.

O poder só é justo quando é difundido no povo, em cada pessoa, quando todos têm participação no poder, como queriam Aristóteles, Santo Tomás de Aquino e Santo Tomás Morus (vide “Utopia”, 1519). Por esta razão e outras, São Tomás Morus é o Padroeiro dos Políticos e dos Governantes, como ensinou João Paulo II. O poder só é justo quando é picado como uma salsicha, uma linguiça, dividida para dar a cada pessoa um pedaço, num bom morcilhismo (um pedacinho da morcilha, para cada pessoa, uma fração de poder, para cada pessoa).