Toda divisão social do trabalho deve ser cooperativa e voluntária, para ser justa

Em 02.09.1954, o Cardeal Adeodato Giovanni Piazza, como Legado Pontifício, proferiu um discurso na 113ª sessão da Câmara dos Deputados do Brasil. Este discurso consta nos “Anais da Câmara dos Deputados” (Rio de Janeiro, Serviço Gráfico do IBGE, 1954, vol. XV, pp. 702/703).

Neste discurso, falando em nome do Papa Pio XII, o Cardeal explicou o conteúdo do texto de “Provérbios” 8,15: “por Mim, governam os reis e os legisladores decretam o que é justo”. Este texto de “Provérbios” é a base do texto de São Paulo, em Rom 13, sendo também a proposição principal da teoria cristã sobre o poder.

O Cardeal Piazza mostrou bem como o texto tem interpretação correta no sentido democrático. Vejamos alguns bons trechos do Cardeal Piazza, falando como representante do Papa Pio XII, no Congresso brasileiro:

A grande nação brasileira está em plena marcha ascensional: povo jovem, rico de energias, sobre um território imenso que abraça quase meio continente, se lança com entusiasmo para o futuro, construindo, dia por dia, sobre as bases sólidas de suas tradições cristãs, o edifício da própria grandeza. (…). No admirável discurso que o Cardeal Pacelli fez nesta mesma Casa, ele indicou a fonte suprema do Direito, a que deve inspirar-se e recorrer todo sábio legislador: “Legislar é colaborar na obra criadora de Deus, é executar nas minudências da vida em comunidade a lei soberana de Deus, é a captação da luz que irradia a lei eterna imanente em Deus”. Não é esta uma paráfrase genial do sublime texto da Escritura: “Per me reges regnant et legum conditores iusta decernuni” (Prov. 8, 15)”.

Legislar (formular regras sociais de conduta, a tarefa mais importante do Estado, do poder constituinte e legislativo) é uma forma de trabalho, logo, é uma forma de colaboração na obra criadora/renovadora de Deus, no trabalho de co-governo do universo, onde participamos, junto de Deus, do trabalho do governo do universo.

A sociedade, na medida em que cresce (em marcha ascensional, cf. Vico, Herder, Turgot e outros católicos), deve adotar formas sociais de trabalho cooperativo-dialógico, onde a divisão social do trabalho seja voluntária, e não impositiva.

As funções sociais na sociedade devem ser voluntárias, distribuídas racionalmente e consensualmente. Esta regra vale para todo trabalho, especialmente para o trabalho social do Estado.

O Estado deve ser uma superestrutura controlada pela base, pela sociedade. Não deve haver imposição estatal através do capitalismo do Estado e nem por milionários, como ocorre no capitalismo.

Pio XI, no “discurso à Federação Universitária Católica Italiana” (18.12.1937), destacou bem a importância do poder público: “nada, poder-se-ia dizer, exceto a religião, é superior ao domínio político, que concerne aos interesses de toda a sociedade e que, neste sentido, é o domínio por excelência da forma mais extensa da caridade: a caridade política”.

No mesmo sentido, Paulo VI, na “Octogesima adveniens” (n. 46), destacou que “a política é uma maneira exigente… de viver o compromisso cristão, ao serviço dos outros”. De fato, na concepção cristã sobre o poder, este é intrinsecamente um “serviço”, estando sujeito aos “interesses de toda a sociedade”, ao bem comum, ao povo organizado, pois o povo é praticamente o bem comum consciente.

Os trabalhadores devem ter o primado na sociedade. Devem controlar o processo produtivo, os bens de produção e também o poder público. Devem ter a primazia no sistema econômico e na vida pública. As pessoas devem compartilhar racionalmente, dialogicamente e consensualmente as funções sociais, inclusive e especialmente as tarefas públicas.

As tarefas (funções, espécies de trabalho) estatais de legislar, de julgar e de executar as leis (gerindo o patrimônio público, do povo) são, no fundo, formas (espécies) de trabalho, tal como ocorre com outras formas. A divisão do poder em três poderes é baseada numa divisão de trabalho, logo, de finalidade, de funções. Mesmo no Poder Judiciário, deve haver mandatos temporários para cargos como Ministros do STF, que devem ser eleitos pelo povo, para mandatos de cinco anos, renováveis por igual tempo, se reeleitos. No mínimo, uma parte das Cortes Supremas deve ter agentes políticos eleitos pelo povo.

Os três poderes são as três funções principais do Estado, como foi bem explicado pelo católico Montesquieu, e esta regra vale para todas as funções, das menores (varrer salas, cuidar dos banheiros, copa etc) até as maiores (legislar etc). Trabalhos específicos, funções, atribuições ou finalidades são expressões sinônimas.

O ponto-chave é que as diversas formas de trabalho devem ser distribuídas racionalmente e consensualmente, pelo diálogo. Devem atender o bem de cada pessoa e também da sociedade, como explicou João Paulo II, na “Laborem exercens”, onde defendeu a superação da divisão da sociedade em classes sociais (este ponto está bem claro em outro capítulo deste blog, em outra postagem).

Para a Igreja, não deve haver classes opressoras e nem classes oprimidas, e sim mediania, extensa classe média, como queriam Aristóteles, os estóicos, a Bíblia e Rousseau. Não deve haver miséria e nem opulência privada, não deve haver oligarquias, nem multimilionários. 

A teologia ensina que não há titulares específicos designados especificamente por Deus para esta ou aquela tarefa, ou para a titularidade deste ou daquele bem (cf. n. 13, da “Rerum Novarum”, de Leão XIII). Mesmo na Idade Média, estava claro que os “reis” ou “imperadores” (chefes do governo, como são, hoje, os presidentes) eram meros titulares de cargos públicos, eram titulares de “ofícios”, de certas “funções”. Mesmo na Idade Média, havia separação dos bens pessoais do rei dos bens da Coroa, do Estado, que eram apenas administrados pelos reis, sendo estes ocupantes de ofícios, de cargos públicos.

Como Gramsci mesmo constatou, o respeito aos titulares de cargos públicos era, no fundo, o respeito às funções sociais enfeixadas nos cargos, de prestações de serviços à sociedade. Os cargos públicos, mesmo na Idade Média, eram considerados como centros de competências, de funções sociais específicas.

Na Idade Média, mesmo os reis estavam vinculados ao direito. Ao tomarem posse, ao serem investidos no cargo, no momento da “investitura”, tinham que prestar um “juramento”, obrigando-se perante às leis fundamentais e as leis costumeiras. Na posse dos reis havia também a cerimônia da “aclamação”, representando o consentimento do povo. Ficavam, desde o início, vinculados às leis fundamentais (constitucionais) do “reino”, da sociedade. Como explicou o padre Mariana, se desobedecessem ao ordenamento, perdiam a autoridade.

Conclusão: o ponto central é que, pelos termos da doutrina política da Igreja, por desígnio divino, cabe à própria sociedade, ao povo organizado, organizar a própria vida, o próprio destino, a partilha de funções, para o bem comum.