O grande Padre Francisco Olgiatti, apologista da Democracia popular

Monsenhor Francisco Olgiati teve o mérito de escrever uma biografia de Karl Marx em 1918 (“Carlo Marx”, Milano, Ed. Vita e Pensiero, com cinco edições, em 1918, 1920, 1922 e duas em 1948, tal como outras nos anos posteriores).

A biografia de Marx, deste padre, disputa o primeiro lugar com a biografia, também de 1918, redigida por Franz Mehring (1846-1919). As duas são quase simultâneas. A de Olgiati tem o “nihil obstat”, com mais de 500 páginas.

Na biografia de Karl Marx, Olgiati reconheceu os méritos do socialista. Consegui adquirir a segunda edição, de 1920, com o prefácio de Frei Agostino Gemelli (“Carlo Marx”, Milano, Ed. Società Editrice Vita e Pensiero, 1920). Tenho também uma edição de 1948. Num parêntese, Frei Agostino Gemelli (n. 1880) foi um dos líderes do tomismo na Itália, tendo elaborado boa síntese do tomismo com as idéias da psicologia experimental.

O padre Olgiati foi um sacerdote do círculo mais interno do Vaticano. Suas idéias refletem, assim, algumas idéias presentes no Vaticano. Olgiati defendia um modelo de democracia popular participativa, bem próximo dos melhores textos do populismo russo, americano, tal como dos radicais etc.

O livro de Olgiati, “A questão social” (Rio de Janeiro, Ed. Fides Brasileiae/Gráfica Sfreddo, 1939), foi impresso no Brasil com a recomendação do Cardeal Leme, o principal líder da Igreja católica no Brasil. Teve também amplos elogios de grandes leigos como Felício dos Santos (positivista republicano que se converteu e foi um grande leigo) e de Alceu. Com a recomendação do Cardeal Leme (vide, a propósito, a bela biografia deste cardeal, redigida por Alceu) e o apoio de Felício dos Santos, é óbvio que a doutrina social da Igreja, como foi exposta por Olgiati, foi endossada pela cúpula da Igreja, no Vaticano e no Brasil. Afinal, o Cardeal Leme não se mexia sem o aval do Vaticano, do Núncio. Vejamos a seguir o “programa” de Olgiati, que expressa bem o ideal social histórico da Igreja.

Na parte programática (sobre “o futuro”), Olgiati expunha os pontos programáticos referentes ao setor agrícola e urbano. Na parte sobre a área agrícola, Olgiatii defendia a reforma agrária, defendendo o controle camponês sobre a terra, sempre com a ajuda do Estado, através de “cooperativas entre camponeses, os quais assumem diretamente a gestão do negócio, mediante administração coletiva, integrada pela forma cooperativa, para aquisições e vendas coletivas”. O MST concordaria. Olgiati queria uma democracia rural, agrária, que alegraria Moisés e os irmãos Graco.

Na parte sobre a indústria, Olgiati recomendava a “participação nos lucros”, a ampliação da legislação trabalhista e securitária e “a administração direta das fábricas, assumidas sob a sua responsabilidade por cooperativas de produção e de trabalho, isto é, por grupos de trabalhadores que sejam os proprietários dos meios de produção e recebam inteiramente o fruto do seu trabalho”. Olgiati queria milhões de pequenos proprietários e transformar gradualmente as grandes empresas privadas em cooperativas de produção, nos moldes do ideal de Buchez e do Sillon. O mesmo projeto de De Gaulle, de François Mauriac e outros grandes católicos. Todas as grandes unidades econômicas devem ter estruturas cooperativas, com controle do Estado, e as pequenas unidades devem ser unidas por cooperativas, para termos uma economia autogovernada pelos trabalhadores, sob o controle também do Estado democrático, participativo. 

Em suma, Olgiati defendia a fórmula de Buchez, de difusão do cooperativismo, de transformação das unidades produtivas capitalistas em unidades cooperativas, com planejamento estatal participativo. As estatais também teriam co-gestão.

Olgiati transcreve, na p. 242, um trecho do Manifesto do Episcopado católico dos EUA (pró-Roosevelt), com o seguinte texto: “Acreditamos, olhando para o futuro, que mudanças sejam necessárias na nossa ordem social, mudanças que chegarão até à abolição do sistema de salários”. A Igreja nunca apreciou o regime assalariado, que avilta o trabalhador, pois o submete a uma servidão que destrói e prejudica a natureza humana.

As idéias distributistas e populistas de Olgiati estavam presentes também em Sismondi (um grande economista cristão, que influenciou Marx e Lenin), tal como estavam também no melhor das idéias de Mably, de Rousseau e outros grandes cristãos, inclusive Mirabeau. O próprio Marx citou, nos textos sobre a acumulação originária do capital, “Mirabeau, o leão da Revolução” (com a ajuda de um antigo jesuíta, que ajudava Mirabeau a escrever seus discursos), onde este ataca “as grandes manufaturas, em que centenas de operários trabalham” para enriquecer “prodigiosamente a um ou mais empresários”. Mirabeau (o pai e o filho), tendo os dois boa religiosidade, defendia o campesinato (as pequenas granjas), os artesãos e pequenos burgueses, considerando os latifúndios e os grandes manufatureiros (grandes capitalistas) como exploradores.

Marx descreveu bem este processo de acumulação: “as grandes manufaturas, assim como as grandes granjas [latifúndios], formaram-se unindo muitos pequenos centros de produção e expropriando muitos pequenos produtores independentes”, destruindo a economia familiar.

Ao lado de Mirabeau filho, que teve imenso papel na revolução francesa, estava o padre jesuíta Cerutti, com grande atuação ao lado do Leão Mirabeau. O padre Cerutti rezou a missa fúnebre na morte do Leão. Este apreço por meios de produção pequenos, controlados pelos trabalhadores, faz parte da tradição cristã, como destacou Alceu Amoroso Lima em inúmeros textos. Tem, no bojo do apreço, o ponto programático que os trabalhadores devem controlar os meios de produção, a natureza, e serem os beneficiários da produção. A subjetividade da sociedade, a possibilidade desta ser sujeito ativo da própria história, depende do controle dos trabalhadores sobre o processo produtivo. Só haverá democracia real com democracia econômica, com o controle dos trabalhadores sobre os meios de produção, sobre os processos produtivos.

Olgiati também defendia a “Sociedade das Nações” (precursora da ONU), como queria Bento XV, “cessados todo o imperialismo cobiçoso e a mútua concorrência fratricida, causa de guerras e de conflitos, se proceda ao desarmamento geral, em terra e em mar”; uma “legislação internacional do trabalho” (sobre remuneração do trabalho, horas de trabalho, sábado inglês–não trabalhar nem nos sábados e nem nos domingos; nascida de “congressos internacionais, representando das classes organizadas de cada nação”. Olgiati queria um Estado dirigente, planificador, mas controlado pelos trabalhadores, organizados em extensa organização sindical-profissional.

Leão XIII, na encíclica ao povo francês, em 08.09.1899, já adotava o populismo, exortando a

Ides ao povo, aos operários, aos indigentes. Procurai ajudá-los, por todos os meios, suavizar-lhes a sorte, moralizá-los. Neste intuito, realizai reuniões e Congressos, fundais patronatos, círculos, caixas rurais… É, ainda, com esta finalidade que vós escreveis livros ou artigos nos jornais e nas revistas periódicas”.

Pio XI, na “Divini Redemptoris”, também usou o antigo lema dos populistas, da linha de Sturzo:

Aos Sacerdotes. É oportuno ir ao povo. Em todas as coisas deste gênero, que tão estreitamente ligam os interesses da Igreja e do povo cristão, se vê qual deve ser a atitude dos que exercem funções sagradas e quão variados frutos será capaz de produzir a sua doutrina, prudência e caridade. Que é oportuno ir ao povo e freqüentá-lo salutarmente, acomodando-lhe ao tempo e às circunstâncias. Nós o afirmamos mais de uma vez falando a membros do clero. Mais vezes ainda, por cartas dirigidas, durante estes últimos anos, a Bispos e a outras pessoas de caráter sagrado (Ao geral dos Frades Menores, 25 de Novembro de 1898), louvamos essa providência afetuosa para com o povo e dissemos que ela convinha tanto ao clero regular, como ao secular”.

Conclusão: Leão XIII e mesmo Pio X usaram expressões semelhantes, deixando claro que o populismo, como fica claro nos textos de um Stédile no Brasil, é a linha anticapitalista da Igreja. É a linha da ação católica (cf. Leão XIII, da Tradição da Igreja), de fazer tudo girar em prol do bem do povo, ponto que exige uma Democracia real, popular, participativa, social.