Emile Zola, em seu livro “Roma” (Lisboa, Ed. Guimarães, sem data, pp. 30 e 31), descreveu o movimento da reconciliação da Igreja com a democracia e o socialismo, movimento que foi acentuado principalmente por Leão XIII. Os últimos textos de Zola têm intensa ética social, são escritos como Evangelhos, mostrando a aproximação de Zola da religião, numa evolução parecida com a de Eça de Queiroz, outro autor que terminou bem próximo da Igreja.
Zola detalhou o movimento de reconciliação entre Igreja e operários, colocando na boca de seu personagem principal, o padre Pierre Froment, os seguintes textos:
“E é aqui que aparece a idéia social de Leão XIII. Ainda bispo de Perúgia [na Itália], escrevera uma carta pastoral, em que mostrava um vago socialismo humanitário. (…). Ouve os bispos populares dos países de propaganda, cessa de intervir na questão irlandesa, retira a excomunhão com que fulminara nos Estados Unidos os Cavaleiros do Trabalho, proíbe que se ponham no Index os audaciosos livros dos escritores católicos socialistas. Encontra-se esta evolução para a democracia nas suas mais famosas encíclicas: “Immortale Dei”, sobre a constituição dos Estados; “Libertas”, sobre a liberdade humana; “Sapientiae”, sobre os deveres de cidadãos; “Rerum novarum”, sobre a condição dos operários; e é particularmente esta última que parece ter rejuvenescido a Igreja. O papa verifica nela a imerecida miséria dos trabalhadores, as excessivas horas de trabalho, o reduzido salário. Todo homem tem o direito de viver e o contrato extorquido pela fome é injusto. Além do que, ele declara que se não deve abandonar o operário sem defesa, a uma exploração que transforma em fortuna para alguns a miséria do maior número”.
Zola descreveu a atuação dos católicos “nas nações” não católicas, onde “os padres lutavam pela vida com uma paixão extraordinária”, com “teorias audaciosamente democráticas”. Zola era amado mesmo por Lenin. Seu testemunho tem grande valor. Se Zola tivesse conhecido Papas como João XXIII e Francisco I, na certa morreria como um grande católico.
O anticlerical Zola registrou corretamente que Leão XIII continuou o movimento de reaproximação com a democracia, dando continuidade à linha das concordatas, firmadas por Pio IX. Esta era a linha de Pio VII, na Concordata com Napoleão, em 1801, tal como era a linha de Bento XIV, um Papa que Voltaire apreciava e elogiava, tendo dedicado a Bento XIV obras e cartas pessoais.
Leão XIII, nas palavras de Zola, refletiu “advertido pelos fatos”, ouviu “os bispos populares”. Este é o dever dos Papas, ver os fatos e ouvir os bispos populares e os leigos engajados. A carta pastoral do bispo Joaquim Pecci (o nome de Leão XIII, antes de ser papa) é de 1877, com o título “A Igreja e a civilização”, contendo textos bem próximos de grandes bispos franceses, como Félix Dupanloup (1802-1878) e Pie.
Houve uma reconciliação da Igreja com a democracia, pois as matrizes da democracia e do socialismo são, de fato, religiosas e naturais e devem ser sempre renovadas, pelo “aggionarmento” contínuo. No mais, Marx, Engels, Lenin, Trotski, Rosa de Luxemburgo, Kaustsky e pilhas de outros socialistas reconhecem que o cristianismo primitivo era democrático e socialista, considerando o cristianismo como precursor (ou seja, no fundo, tentam dar continuidade às idéias sociais de Cristo).
A doutrina da Igreja (mesmo os textos de Pio IX) foi interpretada corretamente e explicitada por Dupanloup. Dupanloup foi um grande arcebispo, elogiado por Alexandre Herculano. A doutrina social da Igreja desenvolveu-se por etapas, passando por textos de Buchez, Ozanam, Lamennais, Lacordaire, Tocqueville, os participantes no Congresso de Malines (1863), Montalembert, Ketteler e outras grandes estrelas da doutrina social da Igreja, precursores da mesma linha dos grandes teólogos da libertação, hoje.
Emílio Zola também destacou o papel dos “Cavaleiros do Trabalho”, o primeiro grande movimento operário nos EUA (cf. Lenin). Os “Cavaleiros” tinham milhares de leigos católicos e tiveram, como líder, um grande católico, chamado Terêncio Powderly.
Zola registrou também a luta democrática dos católicos irlandeses, que militavam no movimento feniano, no movimento cartista, tal como a luta dos católicos poloneses. Estes tinham líderes como o carmelita Rafael Kalinowski, condenado a dez anos na Sibéria por ser um dos líderes da insurreição de 1863, elogiada por Marx e outros. Marx amava o movimento dos poloneses e dos irlandeses, pois estes combatiam contra os principais poderes da época, contra o poder do Czar das Rússias e contra o poder imperialista da Inglaterra.
Vejamos a descrição destes movimentos na Europa e nos EUA, pela pena de Zola, com bom elogio para Ketteler (elogiado recentemente por Bento XVI, numa de suas principais encíclicas):
“Na Alemanha, a teoria clássica do socialismo, monsenhor Ketteler foi um dos primeiros a falar em sobrecarregar os ricos de contribuições [deveres jurídicos, impostos etc], criou mais tarde uma vasta agitação, que todo o clero hoje dirige, mercê de numerosas associações e de abundantes jornais. [Marx ressaltou que Lassalle seguia as idéias de Buchez, o chefe do “partido católico-socialista”, nos termos do próprio Marx; tal como Robertus seguia Sismondi, um grande precursor cristão de Marx]. Na Suíça, monsenhor Mermillod advogou tão alto a causa dos pobres, que os bispos, agora, quase fazem causa comum com os socialistas democratas que esperam converter sem dúvida no dia da partilha. Na Inglaterra, onde o socialismo penetra com tanta lentidão, o cardeal Manning alcançou vitórias consideráveis, tomou a defesa dos operários durante uma famosa greve, determinou um movimento popular, assinalado, por freqüentes conversões. Mas foi principalmente na América, nos Estados Unidos, que o socialismo católico triunfou, naquele meio de plena democracia, que obrigou alguns bispos, como monsenhor Ireland, a colocar-se à frente das reivindicações operárias. Parece estar aí em germe toda uma igreja nova, confusa ainda e transbordante de seiva, agitada por uma esperança imensa, como na aurora do cristianismo, rejuvenescido de amanhã”.
Zola previu a “aurora do cristianismo rejuvenescido de amanhã”. Destacou a tradição democrática do cristianismo antigo, também descrita por Marx, Engels, Rosa de Luxemburgo, Trotski, Lênin e mesmo por Bakunin. Vejamos o texto de Zola (na p. 26):
“Evidentemente, a Igreja católica nada tinha, em seus princípios, de contrário a uma democracia. Bastar-lhe-ia mesmo retomar a tradição evangélica, tornar a ser a Igreja dos humildes e dos pobres, no dia em que restabelecesse a universal comunidade cristã. Ela é democrática em sua essência…” [É a mesma constatação de Lênin, em “O Estado e a revolução”].
O escritor Zola fez um elogio aos Profetas, a Cristo, aos Santos Padres e à luta abolicionista da Igreja (p. 22 e pp. 25/26):
“Até Jesus, os profetas não passam de revoltados, que surgem da miséria do povo, que dizem os seus sofrimentos, atacam os ricos, a quem profetizam todos os males, em castigo da sua injustiça e da sua dureza. O próprio Jesus não é mais do que o derradeiro deles e surge como a reivindicação viva do direito dos pobres. Os profetas, socialistas e anarquistas, haviam pregado a igualdade social, pedindo a destruição do mundo, se não fosse justo. Ele traz também aos miseráveis o ódio ao rico. Todo o seu ensinamento é uma ameaça contra a riqueza, contra a propriedade; e se se entendesse pelo Reino dos céus, que ele prometia a paz e a fraternidade sobre a terra, nisso haveria apenas um regresso à idade de ouro da vida pastoril, o sonho da comunidade cristã, tal como parece haver sido realizado, depois dele, pelos seus discípulos. Durante os três primeiros séculos, cada igreja foi um ensaio de comunismo, uma verdadeira associação, cujos membros tudo possuíam em comum, à exceção das mulheres. Os apologistas e os primeiros padres da Igreja disso fazem fé, o cristianismo não era então outra coisa senão a religião dos humildes e dos pobres, uma democracia, um socialismo, em luta contra a sociedade romana”.
“Quando do mundo antigo desapareceu o escravidão, para dar lugar ao salariado, foi imensa a revolução; foi, decerto, a idéia cristã um dos fatores poderosos que destruíram a escravidão. Hoje, que se trata de substituir o salariado por outra coisa, talvez pela participação do operário nos lucros, porque não tentaria o cristianismo ter uma nova ação? Esse advento próximo e fatal da democracia é outra fase da história humana, que se abre, é a sociedade de amanhã que se cria”.
Estes autores, citados por Zola, eram justamente os que o padre Llovera elogia. Daniel O´Connell, Lacordaire (1802-1861), Lamennais, Ozanam, Buchez, Villeneuve-Bargemont, Ozanam, Montalembert, Dupanloup, Ketteler, Rafael Kalinowski (mártir da revolução polonesa de 1863), Gaspar Decurtins, Albert de Mun (1841-1914), a escola de Liège, Gibbons, Hitze, De Broglie (1834-1895), o Cardeal Manning (ver “Os direitos e a dignidade do trabalhador, 1874), Toniolo (1845-1918, ver “Conceito cristão de democracia”), Marc Sangnier, o padre Antoine, Pottier, Rômulo Murri, Péguy, Sturzo, Maritain, Mounier e outros milhares de escritores mostram bem que a doutrina da Igreja procurou superar a democracia liberal, para construir uma democracia social, popular, dos trabalhadores, participativa.
Fogazzaro, no livro “O santo”, também teve a mesma compreensão de Zola, vendo que o catolicismo tem pontos “progressistas”, que as idéias cristãs, na situação atual, busca, como ideal histórico, uma democracia social, popular, não-capitalista.
Toniolo, no livro “Tratado de economia social” (1906), também ensinava que a sociedade “harmoniza o útil individual ao útil social” (os interesses pessoais e sociais), pela “normas de moral e de direito”, que devem ser explicitadas no ordenamento jurídico positivo, especialmente no Estado.
A sociedade deve reger (regrar) o Estado e a economia, para que estas duas esferas sejam racionais, úteis a todos (adequadas à “utilidade comum”, nos termos de Leão XIII), para que realizam o bem comum, que é a destinação universal dos bens, a concretização dos direitos humanos naturais.
Conclusão: Emílio Zola descreveu traços relevantes da evolução da doutrina social da Igreja e do “socialismo católico”. Zola, no livro “Roma”, demonstrou que o socialismo católico era baseado principalmente na fórmula de Buchez, Ketteler e da Escola de Liège (e nas idéias de Ozanam, democráticas e pró-socialistas). Marx tinha o mesmo entendimento, pois chamava Buchez de chefe do “partido socialista-católico” e inspirador das idéias principais de Lassalle e do Congresso de Malines. Marx associou, assim, a linha de Buchez e Ketteler, que são os grandes marcos da doutrina social da Igreja, junto com Ozanam, Dom Bosco e outras grandes estrelas, em bom diálogo com o povo.