O ideal democrático popular e socialista da doutrina social da Igreja

Os padres jesuítas Pierre Bigo e Fernando Bastos de Ávila, no livro “Fé cristã e compromisso social” (São Paulo, Editora Paulinas, 1982, pp. 97-98), demonstraram que o ensinamento tomista, com base na Bíblia e na Patrística, foi abonado pela Igreja. Demonstraram também que este ensino, o ensino da Tradição da Igreja, é, no fundo, democrático e popular.

Vejamos as proposições centrais do raciocínio de Bigo e de Ávila, citando o texto fundamental da Bíblia, onde Jesus Cristo ensina como deve ser o poder na visão cristã, um poder-serviço (cf. Lc 22,25-26). Na obra acima referida, Bigo e Fernando Bastos de Ávila destacaram as palavras fortes de Jesus Cristo, de Deus, sobre o poder humano, sobre a autoridade, palavras transcridas por São Lucas, no Evangelho (Lc 22,25-26):

“Deus não legitima o poder de ninguém: a função de designar e organizar a autoridade é uma função humana. (…) A autoridade emana do conjunto dos súditos e deve ser exercida em serviço deles. “Os reis das nações governam como senhores absolutos… Não assim convosco: o que manda seja como o que serve (Lc 22,25-26). Os direitos das pessoas e das associações devem ser reconhecidos pelo Estado, em estatutos [estruturas normativas positivas] que os definam e não possam ser anulados por decretos ou atos arbitrários”.

A lição de Santo Agostinho e de São Tomás de Aquino, de todos os Santos Padres, foi ratificada nas encíclicas luminosas de João XXIII (desenvolvendo bons textos das Mensagens de Natal de Pio XII), na “Gaudim et Spes”, em Medellín, Puebla e em outros documentos da Igreja, inclusive o “Catecismo do Vaticano”.

Com base nestas idéias, o padre Fernando Bastos, no livro “Introdução à sociologia” (Rio de Janeiro, Ed. Agir, 1987, p. 379), apontou a convergência entre socialismo com liberdade e catolicismo, defendendo a socialização dos bens, inclusive do poder:

“sociedade planificada, segundo um tipo qualquer de coletivismo pluralista, fundado sobre o equilíbrio da democracia política e da democracia econômico-social, ou segundo um tipo de estrutura inspirado nos princípios da doutrina social da Igreja”.

Marciano Vidal, no livro “Dicionário de moral” (São Paulo, Ed. Santuário, p. 55), também lembra que “o conteúdo do bem comum não se restringe aos” aos bens econômicos, “mas abrange todos os âmbitos da vida social (cf. Pio XII: AAS 35, 1943; MM, 65; PT, 60;GS, 74; DH, 7)”, inclusive outros bens como o poder, o prazer racional etc. Há o mesmo ensinamento em Alceu, Pontes de Miranda (que morreu católico e socialista, como Alceu), Barbosa Lima Sobrinho, tal como em Teilhard de Chardin e em milhares de grandes autores católicos. 

O solidarismo esboçado pelo Padre Fernando Bastos tem basicamente o mesmo conteúdo que o socialismo democrático, ponto que o próprio Padre Fernando frisou e que já tinha sido constatado por Pio XI, na “Quadragesimo anno”, em 1931; e também foi apontado por Lebret. A Igreja criticou os erros do neoliberalismo e do socialismo marxista, mas aceita uma síntese, um modelo democrático-participativo (popular) e distributista, que está na origem da parte boa do liberalismo e da parte boa do marxismo. Trata-se de um ideal bem mais antigo, um veio, um rio, às vezes submerso, com correntes vivas, o Rio da Tradição Viva da Igreja.

Marciano Vidal acrescenta que, “pelas características do bem comum”, uma opção válida é “o sinal humanista e socialista – humanismo socialista ou socialismo humanista”, pois este pode gerar um “ambiente adequado” para o florescimento da vida e dos valores naturais e cristãos.

Conclusão: o ideal histórico concreto da Igreja, como ensinavam Jacques Maritain e Alceu Amoroso Lima, é uma democracia real, econômica, social, popular, comunitária, pedagógica, política, cultural etc. Trata-se de um ideal de economia mista, com ampla difusão de bens, poderes e atribuições, onde o povo possa controlar os processos decisórios, os processos produtivos e o próprio destino. A sociedade deve ter “múltiplas formas de convivência social”, “reconhecidas pelo direito privado e pelo direito público” (cf. João XXIII, na “Mater et Magistra”, 1961).