A doutrina da Igreja exige o fim da Alienação, da reificação dos trabalhadores

A Fórmula (síntese) principal da Doutrina social da Igreja é a Democracia na economia e em todas as relações sociais. 

Os trabalhadores (produtores diretos) devem controlar os meios de produção, o processo produtivo e social.

A doutrina da Igreja defende a democracia industrial ou econômica, suprimindo gradualmente o regime salarial, para que os trabalhadores controlem os processos produtivos e de distribuição dos bens.

O Bispo e Cardeal Pietro Pavan (1903-1994) foi professor na Universidade Pontifícia de Latrão, em Roma. Foi considerado como “qualificado intérprete dos ensinamentos sociais da Igreja”, segundo o grande frade domicano Van Gestel. Auxiliou na redação da “Mater et Magistra” e também na gestão de Pio XII e de João XXIII.

Vejamos a opinião de Pio XII sobre o direito natural de participação dos trabalhadores (“voz ativa”) nas unidades produtivas, opinião que faz parte da doutrina social da Igreja:

“Alguns pensam que conceder aos trabalhadores voz ativa nas empresas é resvalar para formas de coletivismo. (…). Muitos admitem, entretanto, que a raiz mais profunda de todos os totalitarismos se encontra na “massificação” das classes operárias.

Se este processo for suspenso, os totalitarismos podem ser conjurados; se continuar, todas as precauções para evitá-los terão apenas um valor tático.

Ora, onde encontra alimento sólido este processo de massificação das classes operárias? No fato de que uma percentagem muito elevada de trabalhadores é obrigada a desempenhar, durante dias, meses, anos, sua atividade laboriosa numa atitude de execução passiva, isto é, na própria essência do regime salarial.

Entre o plano econômico, o plano moral e psicológico e o plano político existe sem dúvida uma relação real, se bem que não da natureza que supunha Marx. A estrutura capitalista do mundo econômico acaba por empobrecer psicológica e moralmente a personalidade dos trabalhadores, que inconscientemente vão se tornando uma massa e sobre a massa viceja a tirania”.

Segundo o bispo Pavan, somente existe democracia real (verdadeira) se os trabalhadores tiverem voz ativa, se participarem da gestão e dos lucros (resultados) das unidades produtivas, se fundem em si mesmo o trabalho intelectual (de gestão e decisão) com o trabalho braçal.

O Estado deve fazer tudo para qualificar a mão de obra, para elevar o nível intelectual dos trabalhadores, aumentando a produtividade e também o controle dos trabalhadores sobre a gestão dos bens produtivos, das unidades produtivas. 

Pavan redigiu obras como “A ordem social” (1953), “A democracia e a sua razão” (1958), “O laicismo hoje” (1961) e “A liberdade religiosa e o poder público” (1965) e foi muito estimado por papas como João XXIII e Paulo VI.

Beatrice e Sidney Webb, se estivessem vivos, apreciariam estes textos de Pavan, na linha de Buchez e Ketteler, de uma democracia real, popular, participativa, cooperativista.

Os Webb também escreveram boas obras como “Democracia industrial”, “A organização pública do mercado de trabalho”, “A história das rodovias reais”, “A política das leis de ajuda aos pobres na Inglaterra”, “O movimento cooperativo na Grã-Bretanha”, “Socialismo na Inglaterra”, “Rumo à democracia social?”, “Socialismo e mínimo nacional” e outras, que deveriam ser editadas no Brasil.

O “Diário” de Beatrice Webb, tal como a “autobiografia” de Eleanor Roosevelt, mostram duas mulheres que combinavam religiosidade, apego à democracia e aos pobres, ao bem comum, aos direitos humanos.

O trabalhismo inglês constitui uma forma de socialismo prático. Esta forma de socialismo foi aceita pela Igreja, pois nasce de fontes cristãs pré-marxistas e admite uma economia mista, onde o povo tenha bens e direitos. A Igreja apoiou o trabalhismo no Brasil, na Argentina (nos melhores textos do peronismo) e também em vários países. Basta ver os documentos dos bispos católicos da Inglaterra, tal como da Austrália, da Nova Zelândia, do Canadá.

Os bispos católicos da Inglaterra, da Austrália e outros países ensinaram que o socialismo trabalhista, por ser democrático, não era condenado pelos textos papais.

Os leigos católicos, na Inglaterra, em geral, militam no Partido Trabalhista. Nos EUA, militam, em regra, na ala esquerda do Partido Democrático (um bom exemplo foi Ted Kennedy).

Dom Hélder Câmara, no Concílio Vaticano II, teve várias reuniões com Pavan, para tentar convencer o Papa a redigir uma terceira encíclica, complementando a “Mater et Magistra” e a “Pacem in Terris”, específica para o Terceiro Mundo, que esboçasse idéias de ecumenismo até com os ateus de boa vontade e que aceitasse formas de socialização com personalização, um tipo de socialismo personalismo. Parte destes esforços foram fatores essenciais para a redação da “Populorum progressio”, em 26.03.1967, de Paulo VI.

Dom Hélder atuava na linha dos Cardeais Lercaro e Suenens.

Basicamente a mesma linha de expoentes como Congar, De Lubac, Jean Guitton (1901-1999), Cottier, o padre Louis Joseph Lebret (1897-1966), Ivan Illich, Voillaume, o abade Pierre, Chenu (ver “Santo Tomás de Aquino”, Rio, Agir, 1967), Alceu Amoroso Lima e outros.

Dom Hélder escreveu, em 13.10.1963, que encontrara o “querido Monsenhor Pietro Pavan, autor do esboço da Mater et Magistra e da Pacem in Terris” e estava em boas relações com Pavan.

Paulo VI, num discurso à União de Empresários e Dirigentes católicos (publicado na revista “Ecclesia”, n. 24, em 1964, p. 889), disse que a luta de classes tem origem na cisão existente nas unidades produtivas (e na sociedade), pela “unilateralidade da possessão dos meios de produção”, que “não traz a perfeição, não traz a paz, não traz a justiça”, pois “continua dividindo os homens em classes irredutivelmente inimigas”, “caracterizando a sociedade pelo mal-estar profundo e lacerante que a atormenta”.

O ordenamento jurídico liberal-capitalista dá ao capitalista o monopólio do controle sobre os meios de produção, a propriedade unilateral e a apropriação particular dos lucros (do rédito). Isso ocorre por causa do instituto da propriedade quiritária, denunciada por Ketteler e Pio XI.

Como o próprio Marx reconheceu, o direito de propriedade quiritário teve sua matriz na parte ruim do Direito Romano:

até na Inglaterra foi necessário, para o ulterior desenvolvimento do direito privado (sobretudo no concernente à propriedade mobiliária), fazer apelo aos princípios do direito romano” (…). O jus utendi et abutendi enuncia por um lado o fato de que a propriedade privada tornou-se absolutamente independente da comunidade…” (cf. Marx, “Crítica da economia política”, Rio de Janeiro, Ed. Melso, 1963, p. 228).

Antes do bispo Ketteler, o direito de propriedade quiritário foi denunciado por Thomas Hodgskin, no livro “O direito natural de propriedade contrastado com o direito artificial de propriedade” (Londres, 1832), com fundamentação teísta, religiosa.

Hodgskin foi citado por Marx como precursor e, como quase todos os socialistas ricardianos e utópicos, era teísta. O mesmo ocorria com os socialistas utópicos, deixando claras as matrizes cristãs do socialismo democrático.

Frei Clodovis Boff, a propósito, escreveu que “o moderno socialismo nascente, na primeira parte do século passado, tinha raízes claramente cristãs”, indicando um esboço deste fato histórico na “Rev. de Cultura Vozes”, de maio/junho 1990, pp. 283-288.

Hogskin escreveu: “essa mudança na propriedade é o resultado da usura. E é de notar que os legisladores de toda a Europa quiseram impedir esse resultado por leis contra a usura… O fato que deu ao capitalista o poder sobre toda a riqueza do país constitui uma revolução total do direito de propriedade. Por que lei, ou melhor, por que série de leis essa revolução se efetuou?”.

João Paulo II, na “Laborem exercens”, ensinou que a tradição e a ética cristãs (e natural) não aceitam a propriedade quiritária (a base jurídica das fortunas privadas):

“A tradição cristã nunca defendeu tal direito como algo absoluto e intocável; pelo contrário, sempre o entendeu no contexto mais vasto do direito comum de todos a utilizarem os bens da criação inteira: o direito à propriedade privada está subordinado ao direito ao uso comum, subordinado à destinação universal dos bens”.

Há várias formas de transição para uma economia cooperativa e participativa, para uma democracia social e participativa.

Por exemplo, a co-gestão, o sindicalismo, a participação nos lucros, a ampliação dos direitos trabalhistas, a planificação estatal participativa, o combate ao assédio moral e sexual, as leis ambientais, o controle estatal sobre os lucros, os contratos coletivos, a magistratura especial do trabalho e centenas de outros mecanismos. Os trabalhadores devem ter a primazia, por direito natural. A Igreja ensina que o Trabalho É O FATOR PRINCIPAL DA PRODUÇÃO, devendo toda a estrutura produtiva ser organizada para dar dignidade ao trabalhador, para erradicar a reificação, para dar uma renda maior e principal para cada trabalhador.

A importância da co-gestão foi elogiada também por socialistas religiosos como Largo Caballero. Nas hostes republicanas da Espanha, lá pelos anos 30 do século XX, as idéias de democracia social eram também baseadas no jusnaturalismo cristão e krausista, especialmente de Fernando de Los Rios e de outros krausistas. Caballero disse, em 1931:

“o controle [operário da produção] é o primeiro passo para a socialização dos meios de produção; logo, virão as guildas, para fazer desaparecer os patrões; depois, será possível a socialização dos instrumentos do trabalho”.

Basicamente, esta era a mesma idéia de democracia social e participativa de Maritain, Alceu, Simone Weil e outros.

Simone Weil (1909-1943) redigiu duas grandes obras: “Condição operária” e “A gravidade e a graça”. Estes autores católicos apoiaram a esquerda espanhola, inclusive os teóricos principais que seguiam os textos de autores como Krause e Francisco Giner de los Rios (1839-1915).

Francisco Giner de los Rios foi professor de Filosofia do Direito na Universidade de Madrid. Giner escreveu obras como “A pessoa social” (1899), “Filosofia e sociologia” (1904), “Princípios de direito natural” (1874) e “Resumo de filosofia do direito” (1898).

O krausismo foi uma corrente próxima do catolicismo, tendo sido difundida por Ahrens e Tiberghiens.

Os textos de Ahrens sempre foram estimados pela Igreja, pois seu jusnaturalismo é extremamente próximo dos textos católicos. No Brasil, houve uma esquerda krausista, descrita, em parte, no livro “Filosofia em São Paulo”, de Miguel Reale, em 1977. Autores como Galvão Bueno (1834-1883) difundiram o krausismo no Brasil. Galvão escreveu o livro “Noções de filosofia, acomodadas ao sistema de Krause”, em 1877. João Theodoro Xavier de Matos (1828-1878) foi outro grande krausista católico brasileiro, tendo deixado o livro “Lições de direito natural” (1877).

A idéia de participação dos trabalhadores na gestão e no controle dos processos produtivos e das unidades de produção foi difundida, no Brasil, pelos católicos e pelos anarquistas.

Entre os católicos, basta citar Alceu Amoroso Lima, Evaristo de Moraes Filho, Paul-Eugène Charbonneau (n. 1925, tendo escrito obras como: “Entre capitalismo e socialismo; a empresa humana”, padre ligado à UNIAPAC), tal como outras centenas ou milhares de obras.

A co-gestão e a autogestão são elogiadas e consagradas na encíclica “Laborem exercens” (1981), de João Paulo II, tal como tinham sido na “Mater et Magistra”, de João XXIII, em 1961.

O livro “Virando a própria mesa”, de Ricardo Semler, tem frases incisivas como: “a democracia ainda não penetrou no local de trabalho” e “ditadores e déspotas estão vivos e firmes em escritórios e fábricas em todo o mundo”. Mais ou menos na mesma linha há as obras de William Ouchi, autor de “Teoria Z”, onde elogia o emprego vitalício (estável) existente nas firmas japonesas, sendo fruto da influência da esquerda nas estruturas legislativas japonesas.

Semler e Ouchi são vozes capitalistas, logo limitadas, mas até eles enxergam os males da reificação. Não estou dizendo que Semler e Ouchi defendem um socialismo partipativo, mas que suas melhores idéias também condenam a reificação e são, assim, anti-capitalistas. Eles é que não tiram todas as conseqüências lógicas de suas boas premissas.

Conclusão: o ideal de Pavan e de Alceu, de uma democracia cooperativista e participativa, é o ideal de Buchez, Ketteler e dos melhores textos papais.