O bem comum é cada um ter sua cota-parte e o controle PESSOAL sobre o fluxo da produção, sobre a organização geral da economia

Os bens e o poder político devem ser universalizados, socializados, tendo a participação de todos.

O princípio da destinação universal dos bens aplica-se a todos os bens, tal como ao poder

Os bens e o poder político foram destinados e dados por Deus a sociedade e são naturalmente destinados a todos. Logo, todos devem ter participação nos bens e no poder. O poder é uma espécie de bens e está sujeito também ao princípio da destinação universal dos bens.

Como explicou Fernando de Azevedo, no livro “A cultura brasileira” (4ª. edição, Brasília, Ed. UnB, 1963, p. 200), o caminho ético (correto, racional) da história do Brasil é a “integração… progressiva, de todo o povo, na vida econômica, cultural e política da nação”.

Fernando de Azevedo fundamentava esta opinião nos textos de Pandiá Calógeras, Sérgio Buarque de Holanda, Joaquim Nabuco, Oliveira Lima (grande historiador católico) e de outros grandes católicos.

João Paulo II ensinou, em seus discursos no Brasil (em 30.06.1980 e 10.07.1980), que “o acesso de todos” aos bens (inclusive ao poder) “constitui” “condição indispensável da liberdade e criatividade do homem, aquilo que lhe permite sair do anonimato e da alienação” e “colaborar com o bem comum”. Para este fim, o papa ressaltou a necessidade de “reformas audazes”. Como ensinava Santo Tomás, “difundir-se é próprio da natureza do bem” (“bonum dicitur diffusivum sui est”).

A idéia de um direito vivo, adequado à consciência e às necessidades do povo, que difunda os bens, o poder e o saber, faz parte do jusnaturalismo e das teses do direito alternativo.

Por isso, José Geral do de Sousa Júnior, no livro “Para uma crítica da eficácia do direito” (Porto Alegre, Ed. Sérgio Antônio Fabris, 1984, p. 136), acolhe os textos de Roberto Lyra Filho (socialista cristão, como seu pai, Roberto Lyra) e defende “a instauração de um efetivo poder popular”.

O direito vivo (verdadeiro), para Lyra Filho, é “a centelha” (“sinderesis”, cf. São Jerônimo) que nasce da sociedade, como “canal condutor” “o cadinho em que se forma o parâmetro da estimativa [no fundo, as melhores idéias para orientar as decisões] e, portanto, o guia da praxis humana progressista” (cf. p. 135, do excelente livro de José Geraldo).

As lições de Moisés, dos Profetas, de Cristo, dos Apóstolos e de Maria foram esmiuçadas nos textos revolucionários de São Basílio e de Santo Ambrósio, que ensinavam que os bens são destinados a todos, como ensina o princípio da destinação universal, e isso vale também para o “poder”. Os poderes e os bens devem ser regidos pela sociedade, pelos direitos subjetivos naturais humanos.

Os bens, como um rio que deve escoar por pequenos canais (capilarização, cf. Alceu), devem fertilizar as “terras”, todos os membros da sociedade.

Os bens, como o sangue, devem irrigar todo o corpo social (todos os membros), numa boa estrutura metabólica. Os bens devem ser “partilhados”, serem titulados, participados por todos.

Os bens e, assim, também o poder, é como a água que flui mais pura à medida que dela se haure com mais frequência, apodrecendo (e enchendo-se de vermes, como dizia São Tiago), se ficar parada, “acumulada”.

Num sentido parecido, há a mesma tese no livro “Democracia industrial” (1892), do casal Sidney e Beatrice Webb, inspirado em idéias do socialismo cristão da Inglaterra, tal como no tolstoísmo.

Maritain elogiou (no livro “Humanismo integral”, p. 81) os Webb por terem esboçado as linhas de uma “democracia multiforme” sem a “subordinação da força-trabalho humana à fecundidade do dinheiro” e do lucro.

Estas imagens e idéias reaparecem depois nos textos socialistas, especialmente nas metáforas religiosas usadas por Marx, como bem ressalou Enrique Dussel.

Estão presentes nos textos dos socialistas cristãos pré-marxistas, nos de Marx, Bukharin e até em Stalin (que foi seminarista até os 21 anos, pois nasceu em 1878 e ficou no seminário até 1899) etc.

Sobre este ponto, vale à pena ler, do mexicano José Porfírio Miranda, os livros “Marx e a Bíblia” (1971), “Comunismo na Bíblia” (1981) e “O humanismo cristão de Marx” (1978). Numa linha próxima, há as obras de Dussel sobre as metáforas (imagens) cristãs usadas por Marx.

Stalin, diante do ataque nazista à URSS, estendeu às mãos à Igreja Ortodoxa, à força moral da religião e do patriotismo. Stalin tinha a seu lado vários ex-seminaristas, como, por exemplo, Anastas ivanovich Mikoyan (1896-1978).

Anastas estudou, por anos, no Seminário Teológico Armênio e, depois, chegou a ser Presidente da URSS, de 1964 a 1965. Ocupou vários Ministérios (Comissariados) de Estado de grande importância, como o de Abastecimento (1926), do Suprimento (1930), da Alimentação (1934), presidente do Comitê de Abastecimento durante a II Guerra e Ministro do Comércio Nacional e Internacional no pós-guerra.

A III Internacional Comunista, desde 1935 (dezoito anos após a Revolução Russa, de 1917), com as teses do VII Congresso, com base em Dmitrov, preconizou a aproximação com as organizações operárias católicas.

Em 15.07.1935, a Junta Central da Internacional comunistas dos jovens recomendava “amiudar os acordos fraternos com os jovens trabalhadores cristãos e as suas organizações, para o incremento da união da mocidade contra o fascismo”.

No início de 1936, tendo como marco-símbolo o discurso de Thorez (encontrava-se com João XXIII, quando este era núncio, em Paris, depois de 1944), em 17.04.1936, a Internacional orientou seus militantes a estender às mãos aos católicos, na política das mãos estendidas.

Thorez proferiu o discurso pela Rádio Paris, sendo este o marco da “politique de la main tendue” (“política das mãos estendidas”) aos católicos.

Pio XI, na “Divini Redemptoris” (19.03.1937), descreve esta política: os comunistas “convidam os católicos a colaborar” no “campo humanitário e caritativo, propondo por vez coisas em tudo conformes ao espírito cristão e à doutrina da Igreja”.

Os comunistas chegavam ao ponto de dizer que “em países de maior fé ou de maior cultura”, o socialismo “não impedirá o culto religioso e respeitará a liberdade de consciência”. A Internacional também mencionava as “mudanças introduzidas” na “legislação soviética”, especificamente na Constituição da URSS, de 1936.

No fundo, Stalin e a Internacional, a partir de 1935, tendo como expoente Dmitrov, lançaram um movimento de aproximação com os católicos, os muçulmanos, a religiosidade africana e com os socialistas democráticos.

A “apropriação” social ou socialização dos meios de produção se aplica para os grandes poderes sociais e exige a estatização-socialização dos meios de produção (bens) que contenham grande poder, tal como de outros bens que também gerem poder.

O ponto central é que as grandes decisões, que concernem a todos, devem ter a participação de todos, como explicavam os Santos Padres.

O processo decisório deve ter como marcos a “lei natural”, ou seja, o conteúdo da consciência de todas as pessoas, como explicava São Paulo, o poder deve ser a expressão das regras sociais e razoáveis de conduta, regras consensuais.

A socialização dos meios de produção implica na adoção de idéias racionais, consensuais e benéficas a todos no processo decisório da sociedade, em formas de planejamento participativo.

Este ponto foi bem explicado por Pio XI na “Quadragesimo anno”, em 1931; por Pio XII, em 11.03.1945; nas encíclicas de João XXIII; nos textos do Vaticano II; nos textos de Paulo VI; e também por João Paulo II, na “Laborem exercens”, 1981, onde ensinou que a “socialização” dos “meios de produção” era “satisfatória” no prisma ético, desde que estes meios de produção estivessem sob o controle dos trabalhadores e da sociedade e servissem às necessidades humanas. Em outras palavras, desde que a gestão destes bens fosse feita de forma participativa, baseado em idéias consensuais, que asseguram o bem comum.

Os bens pequenos – especialmente moradias, renda cidadã básica para bens de consumo, ferramentas etc, tal como os pequenos poderes – devem ser difundidos entre todas as pessoas (moradia para todos, renda cidadã, boa remuneração do trabalho etc).

Sobre a importância da difusão de moradias, há o documento “A Igreja ante a carência de moradias”, da Pontifícia Comissão de Justiça e Paz, de 27.12.1987:

“Cada nação e a comunidade de nações estão perante um desafio da humanidade: desenhar [projetar, planejar} uma sociedade onde nenhuma pessoa fique sem satisfazer as necessidades essenciais para viver com dignidade; onde ninguém fique privado de uma moradia [vivenda] digna, como fator principal do progresso humano”.

Este documento frisa que todas as pessoas têm o direito à moradia e que a “carência ou privação” “de algo devido” é “uma injustiça”. A justiça manda dar “a cada um o que lhe é devido” e o que é devido são os bens e os poderes necessários a uma vida digna, ou seja, há justiça quando os direitos humanos naturais são atendidos.

Logo, “toda pessoa ou família que, sem culpa direta carece uma vivenda decente é vítima de uma injustiça”, de “uma injustiça estrutural, causada e mantida por injustiças pessoais”.

O mesmo princípio vale para o poder: nenhuma pessoa deve ser tratada como pária, como escravo, como coisa, todos devem participar no poder, sendo esta a forma de controle popular do poder e de assegurar o bem comum.

O cooperativismo – tendo como precursores Buchez, Ozanam, Ketteler, recomendadas por Pio IX, Leão XIII, Pio X e demais papas – e o planejamento participativo permitem que as pequenas atividades econômicas sejam socializadas e organizadas para o bem comum.

Estas liberdades, ao lado da difusão das moradias familiares e outros bens fundamentais (distributismo de Chesterton etc), são importantes para assegurar inclusive o controle social sobre o Estado e sobre as estatais, que devem ser organizadas com a co-gestão dos trabalhadores, com a democratização das unidades produtivas.

Estas liberdades também são essenciais para assegurar formas de planejamento participativo das atividades econômicas, cingindo-as aos limites do bem comum.

Pio XII, no “Discurso de 11.03.1945”, deixou clara a licitude e mesmo a necessidade de que o Estado decrete a expropriação de bens privados, para difundir os bens entre todos e para constituir patrimônios públicos necessários aos fins gerais da economia nacional.

Com base nestas idéias, no Brasil, a Frente Nacional do Trabalho queria a expropriação das grandes fábricas para entregá-las aos operários como propriedade social, utilizando a mesma estratégia da CPT, da Pastoral da Terra.

Durante a própria Idade Média – como foi apontado pelo próprio Marx, no início do livro “O Capital”, onde cita Santo Tomás Morus, o padroeiro dos governantes e dos políticos –, existia uma constelação de propriedades comunais e estatais sob o controle dos trabalhadores.

Existiam estruturas municipais (comunas), terras comunais e as Universidades sob o controle dos professores e dos alunos etc.

Marx, no livro “O Capital”, relata como o capital (os capitalistas) foram destruindo estas propriedades estatais, comunais e comunitárias.

A socialização exige, sim, a planificação participativa de toda a economia. Esta é a função normal (racional) e ética do Estado de “coordenar” (regulamentar, planejar, de forma participativa) as “atividades para o bem comum nacional”, nas palavras textuais de Pio XI.

A socialização também exige a estatização dos grandes meios de produção, ou seja, dos meios de produção com poderes excessivos, próprios da sociedade, cuja posse privada geraria ditaduras e tiranias privadas.

Afinal de contas, não pode haver planejamento participativo com a sociedade dividida, com miséria e riqueza concentrada.

A estatização dos meios de produção que trazem muito poder e o planejamento participativo foi elogiada e recomendada por Pio XI, na “Quadragesimo anno” (1931, com o respaldo de Pio XII, João XXIII e Paulo VI, mais tarde).

Nesta encíclica, Pio XI destacou a convergência entre as opiniões dos católicos e dos socialistas democráticos, em vários pontos, tal como a aproximação dos socialistas das idéias da Tradição cristã.

Sobre este ponto, vale à pena a leitura dos livros e textos de autores como Clemente Attlee, G. D. H. Cole, Hobson, Laski, Fernando de los Rios (“El socialismo humanista”, Madrid, 1926, um socialismo aberto aos católicos, que inspirou parte relevante dos revolucionários espanhóis, em 1931), Somerville e outros.

Conclusão: na linha de Buchez/Ketteler (esposada também por Lassalle, Luís Blanc e outros), a doutrina da Igreja, ao aceitar as pequenas propriedades familiares, não aceita a estrutura egoísta e autocentrada do Estado atual e da propriedade quiritária (não sujeita ao controle social).

Mesmo os pequenos meios de produção e outros bens (moradias, veículos e outras atividades etc) devem estar sujeitos ao domínio (controle) eminente da sociedade, ao direito amplo de gestão (da autogestão ampliada) da sociedade, que é a titular e o sujeito do bem comum.

A sociedade – especialmente por sua ferramenta, Estado, que deve ser controlado pela sociedade organizada – deve regular o uso e a distribuição dos bens para que estes também sirvam ao bem comum, para a promoção da igualdade social (mediania), eliminando a miséria e também as fortunas privadas.