A linha da Igreja é a linha de Buchez, Ketteler e outros, de um Trabalhismo cristão, pró socialismo democrático

Bento XVI escreveu, na encíclica “Deus caritas est” (“Deus é Amor”), um texto que Marx aprovaria e tem influência de Marx, sobre a influência do processo industrial no século XIX:

26. (…) Isto mesmo sempre o têm sublinhado a doutrina cristã sobre o Estado e a doutrina social da Igreja. Do ponto de vista histórico, a questão da justa ordem da coletividade entrou numa nova situação com a formação da sociedade industrial no Oitocentos.

A aparição da indústria moderna dissolveu as antigas estruturas sociais e provocou, com a massa dos assalariados, uma mudança radical na composição da sociedade, no seio da qual a relação entre capital e trabalho se tornou a questão decisiva — questão que, sob esta forma, era desconhecida antes.

As estruturas de produção e o capital tornaram-se o novo poder que, colocado nas mãos de poucos, comportava para as massas operárias uma privação de direitos, contra a qual era preciso revoltar-se”.

27. Forçoso é admitir que os representantes da Igreja só lentamente se foram dando conta de que se colocava em moldes novos o problema da justa estrutura da sociedade. Não faltaram pioneiros: um deles, por exemplo, foi o Bispo Ketteler de Mogúncia († 1877)”.

O grande bispo alemão, Dom Ketteler, foi chamado, por Marx, de “chefe do partido socialista católico”.

Marx também usou este termo para Buchez. De fato, a linha Buchez e Ketteler foi gestada antes mesmo de Marx. Dom Ketteler escreveu uma Pastoral, autorizando que os católicos alemães se filiassem no Partido de Lassalle, partido que tinha, no programa, pontos oriundos dos textos de Buchez, como o próprio Marx anotou, no livro “Crítica ao programa de Gotha”. 

Bento XVI fez uma justa homenagem a Ketteler. Este grande bispo, em 1877, já mostrava que a parte positiva do ideário socialista tinha origem cristã.

Ketteler correspondeu-se com Lassalle. Marx apontou corretamente que o socialismo de Lassalle era uma cópia das idéias de Buchez e, em 1877, no Congresso de Gotha, houve a fusão do partido de Marx com o partido Lassallista, deixando clara a existência de idéias comuns, católicas e marxistas.

Vejamos o resto da análise de Bento XVI sobre as atribuições (funções, fins) do Estado:

28. Para definir com maior cuidado a relação entre o necessário empenho em prol da justiça e o serviço da caridade, é preciso anotar duas situações de fato que são fundamentais:

“a) A justa ordem [organização, planejamento] da sociedade e do Estado é dever central da política. Um Estado, que não se regesse segundo a justiça [pelo ideal do bem comum], reduzir-se-ia a um grande bando de ladrões, como disse Agostinho uma vez: « Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia? ». Pertence à estrutura fundamental do cristianismo a distinção entre o que é de César e o que é de Deus (cf. Mt 22, 21), isto é, a distinção entre Estado e Igreja ou, como diz o Concílio Vaticano II, a autonomia das realidades temporais. O Estado não pode impor a religião, mas deve garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiões; por sua vez, a Igreja como expressão social da fé cristã tem a sua independência e vive, assente na fé, a sua forma comunitária, que o Estado deve respeitar. As duas esferas são distintas, mas sempre em recíproca relação”.

Bento XVI também destacou bem o agostianismo político, no bom sentido, da doutrina da Igreja. Como destacou Santo Agostinho, o Estado deve estar sujeito às regras éticas. Em outras palavras, o Estado deve estar sujeito às idéias práticas do povo, às idéias do bem comum, e se infringir estas regras, cometendo iniqüidades, mesmo que veiculadas na forma de leis e sentenças, estas serão como que atos de força, como que atos de “grande bando de ladrões”.

Se o Estado permite a espoliação do povo, a exploração do povo, é um Estado ladrão e neste sentido Cristo chamou os banqueiros e cambistas de ladrões, de exploradores.

Na seqüência, Bento XVI destaca que o Estado deve realizar a “justiça”, ou seja, libertar os oprimidos, amparar as pessoas, realizar o bem comum, pois a “justiça” é principal virtude humana, sendo o conjunto das regras da “razão prática”, exigidas pelo bem comum:

A justiça é o objetivo e, conseqüentemente, também a medida intrínseca de toda a política. A política é mais do que uma simples técnica para a definição dos ordenamentos públicos: a sua origem e o seu objetivo estão precisamente na justiça, e esta é de natureza ética. Assim, o Estado defronta-se inevitavelmente com a questão: como realizar a justiça aqui e agora? Mas esta pergunta pressupõe outra mais radical: o que é a justiça? Isto é um problema que diz respeito à razão prática;

“mas, para poder operar retamente, a razão deve ser continuamente purificada porque a sua cegueira ética, derivada da prevalência do interesse e do poder que a deslumbram, é um perigo nunca totalmente eliminado.

“Neste ponto, política e fé tocam-se. A fé tem, sem dúvida, a sua natureza específica de encontro com o Deus vivo — um encontro que nos abre novos horizontes muito para além do âmbito próprio da razão. Ao mesmo tempo, porém, ela serve de força purificadora para a própria razão. Partindo da perspectiva de Deus, liberta-a de suas cegueiras e, conseqüentemente, ajuda-a a ser mais ela mesma. A fé consente à razão de realizar melhor a sua missão e ver mais claramente o que lhe é próprio. É aqui que se coloca a doutrina social católica: esta não pretende conferir à Igreja poder sobre o Estado; nem quer impor, àqueles que não compartilham a fé, perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta. Deseja simplesmente contribuir para a purificação da razão e prestar a própria ajuda para fazer com que aquilo que é justo possa, aqui e agora, ser reconhecido e, depois, também realizado.

A doutrina social da Igreja discorre a partir da razão e do direito natural, isto é, a partir daquilo que é conforme à natureza de todo o ser humano. E sabe que não é tarefa da Igreja fazer ela própria valer politicamente esta doutrina: quer servir a formação da consciência na política e ajudar a crescer a percepção das verdadeiras exigências da justiça e, simultaneamente, a disponibilidade para agir com base nas mesmas, ainda que tal colidisse com situações de interesse pessoal.

“Isto significa que a construção de um ordenamento social e estatal justo, pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete, é um dever fundamental que deve enfrentar de novo cada geração. Tratando-se de uma tarefa política, não pode ser encargo imediato da Igreja. Mas, como, ao mesmo tempo, é uma tarefa humana primária, a Igreja tem o dever de oferecer, por meio da purificação da razão e através da formação ética, a sua contribuição específica para que as exigências da justiça se tornem compreensíveis e politicamente realizáveis”.

Como o texto mostra, o papel da religião é de purificar (aperfeiçoar, melhorar, por dentro) o papel da razão, é fortalecer a razão (as regras racionais das virtudes aperfeiçoam a natureza, especialmente a razão).

O Estado, todo o “ordenamento social e estatal”, deve tutelar, com as regras racionais da razão prática (oriundas do diálogo), a natureza humana, deve proteger as pessoas, realizar os direitos humanos.

A contribuição da subjetividade, da razão, de cada pessoa, é importante e essencial. Cada pessoa traz consigo algo importante para o edifício social e político. Como ressaltaram Häring e Juan Luis Segundo, Deus inspira, assume e colabora nos “projetos” inspirados no “amor, na solidariedade, justiça, humanização” e Deus atua em cada pessoa, no centro de cada consciência.

Bento XVI, no discurso de 11.05.2007, em São Paulo, disse que “todos os membros da sociedade” devem assumir plenamente as “responsabilidades” (parcelas de “poder decisório”) para eliminar “o déficit histórico de desenvolvimento social” no Brasil e no mundo, para promover “um rosto humano e solidário à economia”. Todos devem agir “segundo critérios de maximização do bem comum”.

No mesmo documento, Bento XVI ensinou que a Igreja “não pode nem deve ser colocar no lugar do Estado”.

O catolicismo condena o clericalismo, embora o Clero também tenha o dever de aplicar as luzes da razão e da fé às questões importantes da vida humana. O papa completou o raciocínio, dizendo:

“Mas também não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça. Deve inserir-se nela pela via da argumentação racional e deve despertar as forças espirituais, sem as quais a justiça, que sempre requer renúncias também, não poderá firmar-se nem prosperar” (n. 28).

No fundo, trata-se do mesmo ensinamento de Pio XII, como mostra um discurso de 05.10.1957, onde este Papa disse que a “consecratio mundi” (consagração, divinização, santificação, renovação) do mundo deve ser obra principal dos leigos, operando cada um em seus ambientes e meios.

Nos termos de São Pedro, na “Segunda carta” (3,13): “esperamos… novos céus e nova terra, nos quais habita a Justiça”. O termo “esperamos” significa que temos esperança, o cristianismo tem sempre o lado utópico, de lutar para transformar este mundo no Céu, renovando-o.

A parusia é justamente esta transformação, que já está em curso e continua pela Eternidade. O Reino de Deus já está entre nós e deve transformar e elevar, num movimento ascensional, eterno, descrito por Vico e pelos místicos cristãos.

Conclusão: o núcleo da ética é pautar todos os atos em prol do bem comum.

Os bispos católicos de todo o mundo deixaram isso claro, no Concílio Vaticano II, ensinando: “os leigos devem procurar, na medida das suas forças, sanear [aperfeiçoar, no sentido do bem comum] as estruturas e os ambientes do mundo”, para “que tudo se conforme às normas da justiça”, ou seja, às regras exigidas pelo bem de todos.

A “justiça” é a principal virtude cardeal, que tem como objeto, finalidade, justamente orientar todos os atos humanos (as demais virtudes) para assegurar e promover o “bem comum”, que é o bem de cada pessoa e de toda a sociedade. Esta é a lição de Aristóteles, Platão, dos estóicos, da Bíblia e do tomismo.

O ideal clássico, bíblico e tomista do bem comum também era o núcleo da lição do “civismo” do Visconde de Cairu, exposto no Senado, em 05.07.1826: “a principal virtude cívica é o constante hábito de fazer cada individuo o sacrifício do seu interesse particular ao interesse público”, da sociedade (e nesta, a prioridade cabe aos interesses dos que mais sofrem, dos mais necessitados).

O “interesse da comunidade” é a base e a finalidade de todos os institutos jurídicos e políticos, na visão cristã de Cairu, que redigiu o livro “Estudos do bem comum” (Rio, Ed. IPEA, 1975).

Cairu considerava “a boa legislação” e a “boa administração” como as principais bases da “prosperidade” e da “riqueza nacional” de cada país. Cairu escreveu o livro “Estudos sobre o bem comum”, em 1819.

Alceu, num discurso no Teatro Municipal de São Paulo, numa reunião da LEC, em 09.09.1945, lembrou a lição de Cairu, no livro “Estudos de bem comum” (Rio,1919, p. 15): a riqueza real não é “a absorção por alguns dos frutos da produção de todos”, e sim a distribuição. Pois, “o interesse social” proíbe a acumulação enquanto houver miséria.

O elogio de Alceu a Cairu, por exemplo, na conferência publicada na revista “A Ordem” (setembro de 1936), mostra a importância de algumas idéias do velho Cairu, especialmente sobre o papel principal da inteligência no processo produtivo, que exige a democratização de todo o processo produtivo. Uma parte das idéias de Cairu, ligadas a alguns erros de Adam Smith, está superada, mas, em seu tempo, contra o colonialismo, chegavam a ser progressistas.

A parte das idéias de Cairu, relativa à pequena burguesia e ao campesinato, ainda é atual, servindo para desmascarar os males do capitalismo monopolista, que concentra todo o poder nos grandes monopólios privados.

O velho Cairu denunciou esta tirania econômica e política e também denunciaria, se estivesse vivo em corpo, hoje, as novas formas de colonialismo econômico, de imperialismo, que escravizam o Brasil.

Cairu sabia que o desenvolvimento econômico deve ser social, com base na propriedade familiar (onde o trabalhador controla o processo produtivo, ou seja, atividade dos MICROS, PEQUENOS E MÉDIOS) e na intervenção do Estado, para orientar tudo em prol do bem comum.